agosto 21, 2007

O guardador e os pássaros

ZERO HORA

Porto Alegre, 19 de agosto de 2007. Edição nº 15338

Artigo
O guardador e os pássaros
MARCOS ROLIM/ Jornalista

"Bipo, o guardador" pode ser considerado um parente distante de "Eremildo, o Idiota", criação de Elio Gaspari. Antes de tudo, a ironia, costuma dizer. O apelido veio logo na primeira internação psiquiátrica. "Transtorno bipolar", foi o diagnóstico original. Vieram outros depois, vários. Mas o apelido ficou. O "guardador" foi um anexo, que surgiu na rua, não no manicômio. É que Bipo trabalha cuidando dos carros dos "padrinhos" e das "madrinhas", pelas cercanias do Tribunal de Justiça. Cidadão responsável, oferece contribuição nada desprezível à segurança pública. Outros assim e as estatísticas de furto e roubo de veículos despencariam em Porto Alegre. "Aqui os caras não aparecem, padrinho. Quem chegou se deu mal", diz com o orgulho dos especialistas. Não que Bipo seja violento. Pelo contrário. Sua força é o raciocínio e o que ele dispara são palavras.

Observador atento da realidade e leitor obcecado, Bipo viu os outdoors com a palavra "Loucura" espalhados pela cidade. Ficou curioso, é claro. Só foi entender a história quando uma frase sugerindo mais leitos psiquiátricos apareceu logo abaixo da palavra aquela. Bipo está convencido de que a campanha não é paga pelo Simers, mas por Machado de Assis. "De loucura eu entendo, padrinho. Isso é coisa de Simão Bacamarte, pode anotar." É que Bipo acredita muito na medicina e acha que médicos não recomendam a internação de drogaditos em hospitais psiquiátricos. Preferem que casos graves de dependência química, pelo menos, sejam encaminhados a hospitais gerais, onde intercorrências clínicas não se transformam em óbitos. Em uma das vezes em que esteve internado em prestigiado manicômio local, viu o que ocorreu com um jovem em crise de abstinência de cocaína. O garoto teve parada cardíaca e a providência da tal instituição que prefere ser chamada de "hospital psiquiátrico" foi ligar para o Samu. Nem precisa falar o que aconteceu com o menino. Se perguntarem ao Bipo, ele dá o nome da instituição e o endereço.

Casos menos graves de dependência química devem e podem ser tratados pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps- ad), especializados no tema. Bem, mas aí, diz Bipo, a prefeitura de Porto Alegre deveria implantar muitos Caps. Há verbas do governo federal pra isso. Mas o pessoal prefere culpar a Lei da Reforma Psiquiátrica. Misterioso?

Para Bipo, tudo se passa como na cena do Grande Truque, o filme de Christopher Nolan. O mágico faz desaparecer o passarinho diante dos olhos fascinados da criança. O que a criança não sabe é que a ave foi esmagada mesmo. Por isso "desapareceu". É aqui que surge Bacamarte, o personagem de O Alienista, pedindo mais leitos psiquiátricos quando o que deseja, realmente, são mais hospitais psiquiátricos. A "ave" que se quer esmagar é a Lei da Reforma, que nunca mandou fechar um só leito; que, pelo contrário, mandou abrir leitos - só que em hospitais gerais - e que disseminou Caps por todo o Estado, criando uma rede de atenção que, exceção feita a Porto Alegre, tem lidado com a loucura muito melhor que qualquer outra experiência anterior. "Mas, então - perguntei - , por que a lei é atacada? "Porque loucura deles, padrinho". "Como assim? " "Se não derrubarem a lei, não podem construir a Casa Verde, compreendeu? O outdoor é só a mágica. Loucura mesmo é caminhar pra trás". E saiu assobiando... como um passarinho.

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