julho 05, 2011

"Pós-modismo pós-festivo (2)", por Bruno Cava

PICICA: "(...)nesse mapeamento dos dilemas e desafios contemporâneos para as esquerdas, não há o que ressalvar na réplica de Ivana Bentes. Senão a insuficiência do artigo em avançar na crítica, de modo mais esclarecedor e concreto, sobre a práxis do Fora do Eixo. Pois esse coletivo arte-ativista tinha sido o exemplo tomado pelo Passa Palavra para desqualificar, de maneira mais geral, os movimentos político-culturais 2.0. Refiro-me aos movimentos e grupos aglutinados nas legendas cultura livre, cultura viva, pontos de cultura e cultura digital, que se empoderaram, inclusive com recursos públicos, ao longo do governo Lula, no ministério da cultura de Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10)."

Pós-modismo pós-festivo (2)
Continuo a série de resenhas deste blogue, a respeito do debate da esquerda, iniciado pelo coletivo Passa Palavra, com o texto A esquerda fora do eixo. Na primeira resenha do Quadrado, Sair dos eixos à esquerda (1), dialoguei com aquele artigo inaugural. Neste, passo à apreciação crítica da réplica de Ivana Bentes, no portal Trezentos, A esquerda nos eixos e o novo ativismo.
Quero agradecer: ao Pablo Ortellado, que incluiu o artigo anterior na cronologia ao final do texto no blogue dele, Capitalismo e cultura livre; ao Pìmentalab, que também organizou um catálogo abrangente sobre as ramificações da discussão pela blogosfera; e ao Matutações, que me replicou mais diretamente aqui e a quem pretendo retorquir em breve.
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II. A esquerda nos eixos e o novo ativismo“, Trezentos / Ivana Bentes, 22/06/2011
Numa primeira leitura, podem parecer deslumbramento as exclamativas e palavras em maiúsculas. Essa poética nada acadêmica tem razão de ser. Conhecida pela polêmica que travou contra a cosmética da fome no começo dos anos 2000, sobre filmes-de-favela como Cidade de Deus, a autora tem por referência o cinema de Gláuber Rocha. Daí o transe, à moda tropicalista. Daí a poética delirante, numa verborragia de conceitos, explosões retóricas, divagações e frases de efeito, esse deixar-se errar — tudo isso consiste numa estratégia discursiva.
Em A revolução é uma eztetyka, Gláuber defende que a poética revolucionária envolve a coordenação de uma didática e uma épica. Se a didática visa a informar e conscientizar as massas, a épica as estimula, ao apelar às forças mais instintivas do mito, da criatividade, do desejo. Didática sem épica produz “informação estéril, e degenera em consciência passiva nas massas e em boa consciência nos intelectuais.” Épica sem didática gera “o romantismo moralista e degenera em demagogia histérica”. Talvez aí se mova a autora, nessa brecha entre um discurso enfadonho e ressentido de “esquerda velha”, e a histeria romântica e demagógica de “esquerda nova”.
Descabe ao texto, de qualquer modo, a acusação de pós-modernismo débil. Isto é, esvaziado de lutas concretas e tendente ao lero-lero autofágico. Nos últimos tempos, essa acusação tem aparecido como causa célebre na pena de intelectuais preguiçosos, enjaulados em seus sistemas-mundo, incapazes de metabolizar novas teorias, prontos a vomitar razões pretaportês contra elas. Não é o caso, doutores, não há no texto do Trezentos nenhuma deriva indiferente de signos ou clima de ambiguidade generalizada, nenhum niilismo dogmático, ecletismo dândi ou relativismo modernoso. Primeiro, porque assume uma narrativa. Por sinal, etapista. Do fordismo ao pós-fordismo, percebe as transições, os vaivéns, as tendências, os nexos em termos de causa e conseqüência, as superações críticas, as reconfigurações do modo de produção. Segundo, porque admite a necessidade de constituir um sujeito político, de identificar e potencializar as articulações e os enrodilhamentos das lutas contemporâneas. Ora, que pós-modernismo mais estranho, com sujeito e com história e com revolução social…
Alguns anti-pós-modernistas deveriam mesmo era conhecer e estudar mais, deveriam beber o sangue do dragão e falar a língua dos passarinhos.
No tom glauberiano, o texto de Ivana Bentes responde ao coletivo Passa Palavrano nível da linguagem. Exprime poeticamente que a história das lutas não passa pela linha justa, por alguma dogmática unicamente didática. Mas por uma narrativa esburacada, multidimensional, cheia de fios soltos e coisas inacabadas, — uma narrativa que se debate com a linguagem mesma, atrás de uma alternativa ética, estética e política, simultaneamente. Isso é burilar um discurso que multiplique as lutas sem separá-las, sem perder a sinergia do movimento como um todo, a sua potencialização em comum. A teoria pode ajudar a derrubar os muros que separam as práticas, e a prática derrubar os que separam as teorias. Eis uma preocupação irrenunciável das esquerdas: renovar os modos de lutar e trabalhar e, assim, reinventar ainda outra vez a roda da resistência, para continuar girando.
O artigo no Trezentos sublinha: a resistência ao capital se dá  através da constituição de novas formas de produzir. O o que também implica, no campo do trabalho, uma nova articulação entre didática e épica, em suma, uma novapoética das lutas. Os movimentos sociais mais radicais serão, portanto, aqueles que souberem inventar e reinventar, criativamente, essas formas de trabalho vivo, de autovalorização e organização transversal, em rede. Se o capitalismo incide sobre o trabalho, para dele se locupletar, então trabalhar e produzir em certo sentido, de libertação, já significa imediatamente estar lutando, estar na luta de classe. Lênin nunca cansou de ensinar que uma política insurrecional depende da organização da produção.
Nisso, nesse mapeamento dos dilemas e desafios contemporâneos para as esquerdas, não há o que ressalvar na réplica de Ivana Bentes. Senão a insuficiência do artigo em avançar na crítica, de modo mais esclarecedor e concreto, sobre a práxis do Fora do Eixo. Pois esse coletivo arte-ativista tinha sido o exemplo tomado pelo Passa Palavra para desqualificar, de maneira mais geral, os movimentos político-culturais 2.0. Refiro-me aos movimentos e grupos aglutinados nas legendas cultura livre, cultura viva, pontos de cultura e cultura digital, que se empoderaram, inclusive com recursos públicos, ao longo do governo Lula, no ministério da cultura de Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10). O exame tem de ser caso a caso, mas esse coletivo está no cerne da questão, pelo vulto, simbolismo e referencial prático. Essa análise concreta deve servir não para incensar uns e desqualificar outros, como etiqueta, o que nada acrescenta a nada. E sim para encontrar o ponto em que a luta se concretiza e range, em que a exploração e a resistência se chocam. Para, a partir daí, desse antagonismo crítico e premente, adotar estratégias que fortaleçam o sentido da libertação.
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Vale ressaltar o novo, tão presente na argumentação dela, porque o novo aqui é, sim!, fundamental. Não pode haver processo revolucionário sem a descontinuidade. Toda ruptura implica a irrupção de algo que não existia. Que, aliás, sequer poderia existir, porque não lhe permitiam as condições de existência. Que, precisamente por não ter lugar na ordem vigente, é estimulado ao desejo inestancável de resistir e revolucioná-la. “A tradição não explica a ruptura”. Não é preciso pesquisar muitos momentos históricos para perceber como a esquerda não costuma renunciar ao novo. Paradoxalmente, e com todas as suas aporias, o novo constitui mesmo uma tradição das lutas. E se, ao capitalismo, tanto interessa se apropriar dele, silenciá-lo e lucrar em cima de sua passividade; talvez seja porque, de fato, no novo que se afirma e produz haja potência de vida e geração de valor. É aí que, quem sabe, devamos enxergar o sujeito político. Não deveria a esquerda, que resiste e canta, igualmente batalhar por esse novo? O novo desliza dos velhos problemas sem refutá-los, mas coloca novos problemas, novos horizontes de luta, novas e esquisitas alianças. É preciso reconhecer o prestígio do novo e, ao mesmo tempo, evitar terrorismos teóricos ou superstições deslumbradas. Por isso, menos que fundar uma religião do futuro e substituir o velho, o novo pode servir para reorganizar o velho de modo mais potente, para revitalizá-lo e seguir pensando e seguir lutando. Militantes querem, sim, algo novo e diferente. Como diria Clarice, algo ainda sem nome.

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