PICICA: No campo da Saúde Mental, há um discurso reformista de araque que circula em Manaus. Ao se apropriar de algumas leituras e iludir os incautos, esquecem que a prática é o critério da verdade, como nos ensinou o filósofo espanhol Adolfo Sánchez Vázquez (1915-2011), discípulo de José Ortega y Gasset e renovador do Marxismo, em sua obra "Ética". O problema é que uma coisa é ler Foucault, outra é praticar Foucault.
O dia em que Foucault se fez
Em História da Loucura, francês propôs uma
nova questão metodológica para a filosofia
Publicado em 04 de julho de 2011
Vladimir Safatle
Há 50 anos, Foucault publicava Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica. Embora não fosse seu primeiro livro (Doença Mental e Personalidade é de 1954), ele era o início efetivo de sua experiência intelectual. Pois, por meio dele, Foucault aparecia no cenário filosófico contemporâneo como portador de uma nova questão de método que estaria, a partir de então, sempre associada a seu nome.
A questão de método dizia respeito a seu modo peculiar de “fazer filosofia”.
Contrariamente ao padrão tradicional do comentário de textos e das grandes dissertações sobre autores, Foucault apresentava um trabalho sobre a lenta transformação da experiência da loucura em doença mental, ou seja, em objeto de um discurso que aspira a cientificidade (a psicologia e a psiquiatria) e que visa fundar modos estabelecidos de intervenção.
Nesse sentido, o trabalho poderia ser visto, na verdade, como pertencente a um setor da epistemologia que, na França, era conhecido como “epistemologia histórica”. Uma tradição que não compreende a tarefa da epistemologia como fundação de uma teoria do conhecimento baseada na análise das faculdades cognitivas e da estrutura possível da experiência.
Antes, nomes como Canguilhem, Bachelard, Cavaillès e Koyré são lembrados por vincularem radicalmente reflexão epistemológica e reconstrução de uma história das ciências.
Tratava-se de esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade presentes nas ciências por meio de uma profunda articulação entre história das ciências e algo que poderíamos chamar, na falta de um nome mais preciso, de história das ideias ou, se quisermos utilizar um termo mais próximo de Foucault, de história dos sistemas de pensamento.
No entanto, o trabalho de Foucault não era apenas um trabalho de epistemologia da psicologia e da psiquiatria. Sua peculiaridade vinha de sua perspectiva profundamente crítica. Tratava-se de perguntar que tipo de experiência se perdera graças à transformação da loucura em doença mental. O que, para nós, não era mais possível ver e pensar por causa do advento de uma forma de racionalidade.
Nesse sentido, História da Loucura era uma peculiar “contra-história da ciência” que visava expor uma análise dos processos de implementação de critérios discursivos de verdade, de construção de limites e de táticas de exclusão que deveriam ser criticados tendo em vista o desvelamento da maneira com que padrões históricos de racionalidade fundamentam e constroem a legitimidade de suas operações.
Fonte: CULT
No interior dessa contra-história da ciência onde era questão do advento da psiquiatria e da psicologia, Foucault lembrava que a discussão sobre decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico é, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.).
Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica.
A distinção entre normal e patológico, entre saúde e doença é o ponto mais claro no qual a razão se coloca como fundamento de processos de administração da vida, como prática de determinação do equilíbrio adequado dos corpos em suas relações a si mesmos e ao meio ambiente que os envolve.
No caso da distinção entre saúde e doença mental, vemos ainda como a razão decide, amparando práticas médicas e disciplinares, os limites da partilha entre liberdade e alienação, entre vontade autônoma e vontade heterônoma.
Assim, a reflexão sobre as ciências (em especial as ciências humanas) aparece como maneira para compreender como a razão moderna impõe normatividades que determinam nosso campo de experiências possíveis. Uma articulação inovadora entre crítica da razão e reflexão epistemológica era inaugurada por Foucault.
Com História da Loucura, a filosofia podia agora encontrar uma nova definição: “discurso crítico em relação àqueles discursos que moldam nossas vidas e aspiram a validade categórica”.
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