julho 07, 2011

"A Marcha posta a trabalhar", por Leo Vinicius

PICICA: "Em meio à revolta que tomou conta das periferias de cidades francesas entre outubro e novembro de 2005, produzindo o espetáculo de milhares de carros queimados e outras coisas destruídas, muitos artigos foram produzidos para tentar analisar ou explicar o fenômeno. Mas o que me pareceu mais interessante passou muito pouco percebido. A certa altura, os próprios jovens locais (ou parte deles, ou alguns deles) filmavam e gravavam os acontecimentos (pois eles melhor do que ninguém sabiam onde iriam ocorrer), criavam equipes de segurança para os jornalistas circularem e agências de entrevistas onde colocavam em contato o jornalista e o perfil que estes buscavam para entrevistar. Tudo cobrado, evidentemente [3]. Seria isso apenas uma histórica tomada de consciência de que sua rebeldia e suas práticas produzem valor, um embrião de “controle operário” do espetáculo ou a formação inicial de uma classe gestora vinda da base, apropriadora de parte do valor econômico que era produzido pela revolta coletiva? Fenômeno talvez muito efêmero para extrair respostas…"

A Marcha posta a trabalhar

5 de Julho de 2011   

Certamente não há nada de novidade em se usar um discurso ou teoria anticapitalista para fundamentar numa ‘razão revolucionária’ práticas de pretensas burocracias e gestores. Por Leo Vinicius
rubens-pintura-barrocaA polêmica em torno do texto A Esquerda fora do Eixo do Passa Palavra gerou um outro de Ivana Bentes, supostamente em resposta. Nele, nitidamente percebe-se que a autora bebe de um referencial teórico vindo do pós-operaísmo, que tem em Antonio Negri, Michael Hardt, Maurizio Lazzarato e Paolo Virno os nomes atualmente mais conhecidos. Enquanto o foco principal do artigo do Passa Palavra parecia ser o de revelar o que seriam gestores, ou empreendimento capitalista em meio a movimentos sociais, o artigo de Ivana Bentes se limitou a descrever o quadro do que seria o pós-fordismo, a partir desse referencial pós-operaísta. Considerando que buscamos uma transformação em direção a uma organização social em que a gestão da vida, em todas as suas esferas, incluindo a econômica, seja feita por todos, o que implica a ausência de classes e de separação entre governantes e governados, exploradores e explorados, subordinadores e subordinados, é fundamental saber distinguir ou ao menos tentar fazer a distinção elementar entre um empreendimento capitalista e um movimento social, seja de qual referencial teórico se pretende partir.
Antes de prosseguir, para o leitor ter uma noção da minha posição em relação às teorias pós-operaístas, posso dizer que sou no mínimo simpático a elas, em parte por serem conseqüência de um esforço de ir além do já dito dentro de meios anticapitalistas. Sim, concordo que, como afirma Paolo Virno, se um dia foi a organização fordista que deu forma à indústria cultural, hoje é o modelo da indústria cultural que dá forma à organização dos empreendimentos capitalistas. Concordo que o empreendimento capitalista hoje em dia tende a consistir na captura de fluxos pré-constituídos (à empresa). Concordo que hoje tendemos cada vez mais a uma indistinção entre o tempo de trabalho e o tempo de não-trabalho, em termos de produção de valor: é a vida que é posta a trabalhar; e que o corolário dessa nova configuração deveria ser a emergência de novos direitos sociais, para além daqueles constituídos no fordismo, como a desvinculação entre renda e trabalho/emprego. Todas essas concepções expressas, estão ou estiveram no próprio âmago do pensamento de Lazzarato, Negri, Virno…
Ora, o que os pós-operaístas estão dizendo é que o processo de produção capitalista foi além da fábrica, dos locais de trabalho, e engloba toda a vida, toda atividade social. E é preciso ter claro que até mesmo o “ativismo político” é incorporado diretamente ao ciclo de produção de valor, em geral valor da marca, de empresas e produtos. Ilustrativo o caso do artista italiano Graziano Cecchini, que despejou 500 mil bolas de plástico coloridas em um ponto turístico de Roma para protestar contra o problema da coleta de lixo na Itália. Ação patrocinada por uma empresa que vende músicas para celular, com o valor de 20 mil euros [1].
Para não falarmos apenas de exemplos de mega-ferramentas que capturam valor da atividade social (não remunerada) como o Google ou o Youtube (ao colocar um vídeo no youtube um usuário está “trabalhando” para o Google), ou da atividade de coolhunter, podemos ilustrar essa captura com o excelente estudo de caso feito por Adam Arvidsson [2], sobre o lançamento de um novo modelo Fox da Volkswagen, que ficou conhecido como Projeto Fox.
A “classe criativa” como classe de gestores
O projeto consistia no que é chamado em publicidade e marketing de event bureau, eventos que reúnem pessoas e os produtos em um mesmo ambiente, como festas, exibições, competições esportivas etc. No caso, o Projeto Fox duraria vinte dias em três distintas locações de Copenhagen, Dinamarca: um hotel, um restaurante/boate, e um estúdio. A idéia era explorar – e aqui usamos essa expressão propositalmente – a imagem da criatividade urbana underground de Copenhagen, que se tornara notória. Para tanto, muito resumidamente, contrataram artistas e pessoas-chave do underground de Copenhagen e, logicamente, financiaram os eventos. Como Arvidsson mostra e aponta muito bem, o Projeto Fox se apropriou da criatividade, do estilo, da cultura, da linguagem produzidos pelo underground de Copenhagen, na qual os artistas e pessoas remuneradas funcionavam como uma espécie de classe administrativa dessa economia de criatividade, formada por uma rede de produção imaterial não remunerada. O objetivo era ligar as formas de produção criativa (relativamente) autônomas do underground aos circuitos de valor da economia capitalista, o que o projeto conseguiu com sucesso. Importante frisar que apenas uns poucos eram remunerados, enquanto o valor era extraído de uma rede underground muito mais vasta, e da própria vida do ambiente urbano posta em movimento. Essa classe administrativa que bem observa Arvidsson no seu estudo de caso, é certamente aquilo que, usando o conceito de João Bernardo, forma uma classe de gestores, que se apropria da mais-valia (sendo por isso uma classe capitalista). No entanto, não se trata de mais-valia absoluta nem de mais-valia relativa (pois ela não é dada pelo controle do tempo, organização ou ritmo de trabalho). Uma mais-valia que eu então chamaria de mais-valia difusa. Trata-se portanto, para usar uma expressão mais cool, de uma classe de gestores 2.0, os capturadores de mais-valia difusa.
retorcidoEm meio à revolta que tomou conta das periferias de cidades francesas entre outubro e novembro de 2005, produzindo o espetáculo de milhares de carros queimados e outras coisas destruídas, muitos artigos foram produzidos para tentar analisar ou explicar o fenômeno. Mas o que me pareceu mais interessante passou muito pouco percebido. A certa altura, os próprios jovens locais (ou parte deles, ou alguns deles) filmavam e gravavam os acontecimentos (pois eles melhor do que ninguém sabiam onde iriam ocorrer), criavam equipes de segurança para os jornalistas circularem e agências de entrevistas onde colocavam em contato o jornalista e o perfil que estes buscavam para entrevistar. Tudo cobrado, evidentemente [3]. Seria isso apenas uma histórica tomada de consciência de que sua rebeldia e suas práticas produzem valor, um embrião de “controle operário” do espetáculo ou a formação inicial de uma classe gestora vinda da base, apropriadora de parte do valor econômico que era produzido pela revolta coletiva? Fenômeno talvez muito efêmero para extrair respostas…
A Empresa da Revolução
O período em que participei do movimento pelo Passe Livre em Florianópolis, entre 2004 e 2007, foi muito rico em experiências. L.O. foi uma das principais figuras da Campanha pelo Passe Livre (no transporte coletivo) em Florianópolis na década passada. Reunia um conjunto de habilidades políticas à iniciativa e à entrega. Foi o principal idealizador do que chamou de “A Empresa da Revolução”, que, apesar do nome, nada mais foi do que a tentativa de autofinanciar as atividades da Campanha vendendo principalmente camisetas (com temas de esquerda além do próprio Passe Livre). Havia no horizonte o objetivo de que com a Empresa da Revolução fosse possível também ‘liberar militantes’, ou seja, que eles conseguissem se manter economicamente através dela.
No final de 2004, talvez até mesmo pela precariedade econômica da sua vida entregue à militância, L.O. se direcionou com muito mais obstinação a extrair valor econômico, isto é, renda, através da bandeira Passe Livre e da subjetividade da juventude. Suas parcerias começaram a indicar que sua preocupação maior era essa, e o discurso aparente de esquerda parecia apenas tentar dar uma ‘razão revolucionária’ ao seu empreendedorismo (o mesmo que fazem comumente políticos de partidos de esquerda ou burocratas sindicais para justificar suas atividades não em termos econômicos, mas de transformação social). L.O. acabou afastado e se afastando do grupo amplamente majoritário da Campanha pelo Passe Livre. Em seguida colocou em prática a mal-sucedida Aventura pelo Brasil, nome anódino de uma idealizada caminhada que iria de Florianópolis até Brasília para promover o passe livre estudantil, tentar mobilizar uma juventude e atrair patrocínios e financiamentos, não necessariamente nessa ordem. Assim se sucederam projetos que, teoricamente em nome do passe livre estudantil, tentavam angariar recursos de empresas, fossem quais fossem, e de qualquer um que quisesse investir neles.
L.O. tem sido de anos para cá um dos impulsionadores da Marcha da Maconha em Florianópolis. Declara para quem quiser ouvir que a intenção desse seu ativismo e mobilização juvenil é legalizar o produto com as patentes já encaminhadas.
Negri e os gestores
retorcido2De fato, como apontam certos críticos, a separação de classes fica um tanto obscurecida em meio aos conceitos pós-operaístas. A definição de proletariado de Antonio Negri e Michael Hardt [4] é por demais vaga (principalmente na medida em que deixam em aberto o que seria estar “subjugado a normas capitalistas de produção e reprodução”), e parece tão ampla a ponto de não definir o que pretende além de abranger dentro do conceito aquilo que apontamos como classe capitalista dos gestores. Abrangência que aparentemente afeta também o conceito de multidão. Provavelmente na tentativa de corrigir essa deficiência ou dar uma resposta aos críticos, Negri, em Cinco Lições sobre o Império, buscou indicar os meios para se distinguir entre os gestores e trabalhadores dentro do conceito de multidão, uma vez que enquanto conjunto de singularidades produtivas na hegemonia do trabalho imaterial, isto é, quando a atividade social como um todo gera valor, ao menos a princípio, o conceito englobaria sem distinção todos na sociedade. A diferenciação entre “o gerente e o operário”, ou entre o gestor e o trabalhador, seria dada então pelo comum: “é somente a afirmação do ‘comum’ que nos permite orientar de dentro dos fluxos de produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem o saber e a liberdade. O problema será então resolvido por uma ruptura prática, capaz de reafirmar a centralidade da práxis comum” (Antonio Negri, Cinco Lições Sobre o Império. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.227).
Em outras palavras, essa separação só se daria através de uma prática que os diferenciaria, na qual os trabalhadores se reconhecessem através do que têm em comum e produzem em comum, contra a apropriação privada dos capitalistas. Assim sendo, não se trataria do fim da luta de classes: “Exploração deverá significar de fato, apropriação de uma parte ou de todo o valor que foi construído em comum. (Este “em comum” não quer dizer que, na produção, trabalhadores e patrões estejam juntos: absolutamente não! A luta de classe continua!) A emergência do comum que se dá no processo produtivo não elimina o antagonismo interno à produção, mas o desenvolve – imediatamente – no nível de toda a sociedade produtiva. Trabalhadores e capitalistas se chocam na produção social, porque os trabalhadores (a multidão) representam o comum (a cooperação), enquanto os capitalistas (o poder) representam as múltiplas mas sempre ferozes – vias de apropriação privada” (idem, p.266-7).
Seria isso suficiente para evitar que o marxismo de Negri venha a se tornar um discurso (pós)moderno usado para justificar velhas práticas? Certamente não há nada de novidade em se usar um discurso ou teoria anticapitalista para fundamentar numa ‘razão revolucionária’ práticas de pretensas burocracias e gestores. O marxismo do próprio Marx teve essa função a direções de partidos e gestores, e no que veio a ser o “comunismo real”. Fazer passar o empreendedorismo, mesmo que das margens ou sobras do capitalismo, como prática de esquerda ou revolucionária, não poderá levar a nada além de outro simulacro de comunismo. O pensamento dos pós-operaístas merece melhor sorte.
rewritining_stairway
Notas
[1] “Ativista lança 500 mil bolinhas de alto de escadaria em Roma”. Folha Online, 16/01/2008. Em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u364102.shtml>.
[2] ARVIDSSON, Adam (2007). Creative Class or Administrative Class? On Advertising and the ‘Underground’. Ephemera, v.7, n.1, feb; pp. 8-23. Disponível em <http://www.ephemeraweb.org/journal/7-1/7-1ephemera-feb07.pdf>.
[3] “Jovens tiram proveito de distúrbio”, Estado de São Paulo, 11/11/2005, p. A18.
[4] Para Hardt e Negri o proletariado é “uma vasta categoria que inclui todo trabalhador cujo trabalho é direta ou indiretamente explorado por normas capitalistas de produção e reprodução, e a elas subjugado” (Império, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 71). Deve-se ter claro também que o conceito de trabalho para eles é amplo, incluindo atividades e fazeres que tradicionalmente são postos na esfera da cultura.

Fonte: Passa Palavra

Nenhum comentário: