julho 24, 2011

"Meia noite em Paris, Woody Allen", por Bruno Cava

PICICA: "Mordaz especialmente com os ricos, os deslumbrados e os autoindulgentes, Allen chega a ser obsessivo em sua temática de reencantar a existência, de encontrar a beleza nas pequenas sutilezas do cotidiano. Embora ele mesmo não acredite muito nisso. É como se ele não conseguisse engajar-se totalmente no que acontece. Guarda certa distância, certo grau inafastável de descrença e ironia."
Crítica: Meia noite em Paris (Midnight in Paris), Woody Allen, 2011, EUA/Espanha, 100 min.


Woody Allen é um pessimista, quase um fatalista. Mas o pessimismo dele não renuncia à visão romântica da vida. Seus filmes estão imbuídos de uma condescendência, quiçá encantamento, diante da banalidade atroz que nos cerca e anula por todos os lados o tempo todo. Mordaz especialmente com os ricos, os deslumbrados e os autoindulgentes, Allen chega a ser obsessivo em sua temática de reencantar a existência, de encontrar a beleza nas pequenas sutilezas do cotidiano. Embora ele mesmo não acredite muito nisso. É como se ele não conseguisse engajar-se totalmente no que acontece. Guarda certa distância, certo grau inafastável de descrença e ironia.


Em Meia noite em Paris, Allen chega às raias do escárnio ao retratar turistas americanos em viagem à Paris. A noiva Inez a reduz a uma cidade de compras e museus, e passa o filme ignorando sistematicamente os desejos do noivo e protagonista, Gil Pender. Os pais dela, Helen e  John, ricos e convencionais, só se interessam por quanto as coisas custam, quanto as pessoas ganham, e o que vão comer no jantar. O amigo, Paul, passeia por pontos turísticos pavoneando-se com uma típica “erudição de catálogo”, incapaz de sair dos lugares comuns — um típico e ególatra intelectual, atrás de belas mulheres e reconhecimento fácil. A câmera colhe a banalidade geral no nível dos gestos e expressões.


Somente Gil, alter ego de Allen, exprime sensibilidade para tentar desviar desse mundo achatado e previsível.  Como bom fatalismo, não deixa de comparecer a autoironia. O personagem trabalha em Hollywood escrevendo roteiros de cinemão, uma atividade lucrativa que ele quer abandonar. No meio do caminho da vida, ambiciona um mundo além da parede de mau gosto e aburguesamento. Romântico, sabe saborear uma caminhada na chuva e um disco antigo de Cole Porter. E flana por praças iluminadas, ruas tortuosas e formosos bulevares, atrás de uma inspiração que não vem.


No entanto, seu cotidiano banal o prende, está amarrado às relações vazias com a noiva e a profissão, falta-lhe um empurrão. Que acontece graças à fantasia cinematográfica, como em A rosa púrpura do Cairo. Gil descobre casualmente uma máquina do tempo e é arremessado a seu sonho de idade de ouro. Participa de festas da boemia ilustrada, frequenta a casa de intelectuais de Gertrud Stein, conversa com Scott Fitzgerald, Hemingway, Picasso. Apaixona-se por uma musa, vive um romance lírico. No melhor espírito modernista antiburguês, Gil parece ter encontrado o seu habitat e os seus iguais.


Mas aí a autoironia dá um novo passo. O sonho dourado se revela uma mistificação. Os personagens literários não vão além de caricaturas, vulgatas e citações. Afinal, o passado por si só não tem como reencantar o mundo, senão como nostalgia que nega o presente. A paixão, apenas mais uma ilusão. O romantismo se desencanta. Só então, ao resgatar uma honestidade vital plena, Gil está pronto para mudar de vida e tornar-se, sem ilusões, o que deseja para si. Agora, no seu mundo, como tem de ser. Conclui-se a inteligente parábola.


Curioso o modo como Meia noite em Paris tem sido incensado pela maioria da crítica e Allen, depois de 41 filmes, plantado num pedestal. Talvez, atrás da rotina patética de premières, festivais e holofotes, atrás das cortinas, ele esteja esboçando um sorriso maroto. Como diria o honestíssimo Hemingway, “se você obtém sucesso, é sempre pelas razões erradas; se você se torna popular, é sempre pelos piores aspectos de seu trabalho”.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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