julho 18, 2011

"A tal correlação de forças", por Bruno Cava

PICICA: "O problema é quando um grupo no poder adota a-tal-correlação-de-forças para legitimar tudo. Em vez de enriquecer a análise e multiplicar os personagens, a expressão atua para simplificar tudo e unificar o mundo numa opereta de quinta categoria. Os meios refogem dos fins e os fins dos meios, em direções opostas. Com isso, se justificam a priori quaisquer engessamentos e recuos, adiamentos “estratégicos” e concessões “táticas”, impudicícias e sacanagens políticas do poder. E aí nasce mais uma platitude. A expressão se torna tão vazia quanto dizer “sou sempre pela vida, logo contra a legalização do aborto”, ou “drogas fazem mal, logo devem ser proibidas”. Essa platitude aparece frequentemente na boca dos falcões."
A tal correlação de forças
Na política, a expressão há tempos não esteve tão em voga. E jamais tão mal utilizada. Mau sinal para um governo que pretende manter o foco social dos oito anos com Lula. É que a correlação de forças tem servido como argumento universal, para rebater qualquer crítica dirigida aos lances conservadores do governo Dilma.
Mas o que é a tal correlação de forças? Em primeiro lugar, enxergar a política não como religião ou futebol, onde dogmas irrenunciáveis e paixões misteriosas comandam a nossa vontade. Na política, não bastam a consciência e a decisão individual. Todo purista uma hora tem o idealismo fustigado pelo tacão da realidade. Como incide sobre a realidade concreta, é preciso que a ação política tenha eficácia. E ser eficaz implica algum domínio sobre o tempo e o espaço, sobre a cadeia de causalidades que constitui o mundo das coisas e pessoas. Em vez de assaltar o céu com boas intenções, trata-se de mudar a vida dos homens na terra, no sentido da terra. O que se torna inviável sem um constante calibrar de causas e efeitos, compassar as medidas e resultados, calcular custos e benefícios. O que exige, sem cessar, a preocupação de compreender os fluxos e refluxos históricos, o lastro de real, a reserva do possível, a hora apropriada para ousar e para retroceder, para arriscar e para se preservar. Sintonia fina adquirida com muita experiência e algum talento, mas também a sua dose de sorte. E, a partir disso tudo, dessa fina arte das ocasiões, saber articular vontades, convergir pautas, e assim elaborar metas, programas e meios. Noutras palavras, estratégias e táticas mais ou menos determinadas, mais ou menos abertas à mudança, e para diferentes contendas políticas, e para diferentes cenários. Como a realidade está sempre à frente dos conceitos, — e estes se enredam entre si e com o real dos modos os mais caóticos e inusitados, — isto significa repensar e reinventá-los todo momento, sempre em função das batalhas, das situações situadas histórica e geograficamente. Não é à toa que Foucault dizia que “a política é a continuação da guerra por outros meios”. Como na guerra, a política se faz no meio de uma nuvem de fumaça, onde tudo o que temos à mão são apostas e previsões precárias. Demanda a prudência no trato de inúmeras variáveis, que não dispensa a análise permanente dos acontecimentos, a digestão lenta de forças e vontades, o rito social de diálogo, debate e conflito, o metabolizar contínuo de visões alheias e contradições em processo. Exige contornar envolvimentos emocionais, precipitações taxativas e sínteses fáceis. Hesitante Hamlet, entre a urgência da ação e a impossibilidade de certeza!
Nesse sentido, correlação de forças é um conceito fecundo para a política. Permite tomá-la na sua labiríntica complexidade, como campo de múltiplas e mutantes forças, de entrechoque de vetores distintos entre si, por suas quantidades e qualidadesSignifica também perceber que contra força não adianta opor a moral. Contra força, só outra força à altura pode resistir. De pouco servem, também, grandiloquências e santidades, ainda que a título de indignação e repúdio. Não adiantam quando não há prática potente o suficiente para alterar, mesmo que minimamente, o estado das coisas. Na política, discursos encantados ou cândidos, mas sem efeito real, não passam de poemas ruins de primavera. Não há crítica materialista, portanto, que não seja atravessada pela matriz tensa de estratégias e táticas, pelos paradoxos constitutivos para uma ação política eficaz.
Até aqui, tudo bem. O problema é quando um grupo no poder adota a-tal-correlação-de-forças para legitimar tudo. Em vez de enriquecer a análise e multiplicar os personagens, a expressão atua para simplificar tudo e unificar o mundo numa opereta de quinta categoria. Os meios refogem dos fins e os fins dos meios, em direções opostas. Com isso, se justificam a priori quaisquer engessamentos e recuos, adiamentos “estratégicos” e concessões “táticas”, impudicícias e sacanagens políticas do poder. E aí nasce mais uma platitude. A expressão se torna tão vazia quanto dizer “sou sempre pela vida, logo contra a legalização do aborto”, ou “drogas fazem mal, logo devem ser proibidas”. Essa platitude aparece frequentemente na boca dos falcões. São aqueles defensores (ou opositores) incondicionais, pra quem a campanha eleitoral nunca termina. Dogmaticamente dialéticos, se convenceram ter encontrado a chave da inteligibilidade universal: ou está com X, ou contra X — e a partir daí julgam e rotulam de um golpe só todas as questões do universo, por mais intrincadas e multifacetadas. Lidam com a política com se fosse futebol. Reagem à crítica política como se houvessem ofendido o time do coração. Não admira tenderem a levar tudo para o campo pessoal, o lugar das crenças íntimas e das paixões irracionais. Tais dogmáticos “materialistas” acabam atuando como o enxadrista fantoche vestido à turca de Walter Benjamin. Parecia ele mesmo a fazer as jogadas; porém, na verdade, repetia maquinalmente as estratégias de um anão corcunda, que engana a platéia escondido debaixo da mesa.
A correlação de forças é sensacional como instrumento de análise e prudência, nunca como bordão de acríticos funcionários do que está posto.
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PS. No próximo artigo, falarei de outra expressão rapidamente convertida em platitudea tal vontade política.

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