janeiro 04, 2012

"A Pele Que Habito", por Pedro Henrique Gomes

PICICA: "Muito sutilmente, instala-se uma espécie de termodinâmica das relações em jogo, das possíveis reações, da mudança do frio ao calor."

A Pele Que Habito

by Pedro Henrique Gomes
Ação termodinâmica

A Pele Que Habito é talvez o filme mais violento de Pedro Almodóvar. Violência essa que não passa pelo labirinto obscuro e proselitista da conversão do espectador a tal universo em jogo. Não é necessário acreditar nos personagens, tampouco torcer por eles. O conjunto de ações que se enredam é um conjunto de ações desesperadas (quando não desesperadoras para quem as assiste; a posição de desconforto é comum a todos, do lado de lá e do lado cá da tela – e é essa imagem-dual de Almodóvar que sustenta a narratividade latente do filme). Muito sutilmente, instala-se uma espécie de termodinâmica das relações em jogo, das possíveis reações, da mudança do frio ao calor. Se assim as coisas começam, de tal forma elas devem terminar. Essa lógica de transformação corpórea, mas, sobretudo, mental, dita a pulsação e a corrente sanguínea desse filme em particular, pois garante antes a fruição sensível de toda uma mise en scène do mundo (desse mundo), que vai da ação mais imbecil a reação mais estúpida – o filme todo se propaga através da estupidez humana, mas com uma morbidez muito cara a qualquer cineasta de horror contemporâneo (principalmente os europeus, tão cegamente preocupados em desmistificar o gênero por fora dele). No limiar desse clima de aterrorizante jocosidade, permeado por inconsequências, Almodóvar trata de construir uma atmosfera de equilíbrio dramático robusta e apaixonante. Como é possível?

A cena fundamental de A Pele Que Habito pode alterar a forma como enxergamos o filme, e principalmente os personagens. É aquela em que, durante um casamento que era para servir como uma ressocialização/reintegração de Norma (Bianca Suárez) junto à vida social, a filha do cirurgião plástico Richard Ledgard (Antonio Bandeiras), que sofre psicologicamente em razão da morte da mãe, conhece um rapaz. Embriagado após algumas boas doses de whisky, o jovem Vicente (Jan Cornet) e Norma, drogada em virtude de alta dosagem de medicações que necessita ingerir, saem rumo ao jardim (orgástico como o quadro de Bosch), sob o olhar atento de Richard, que vigia a filha em recuperação. Num dado momento, eles se deitam junto ao pé de uma árvore, sobre a relva do jardim.

O que aconteceu ali, e que é apenas deduzido por Richard baseado em rastros (peças de roupa distante do corpo da filha), configura-se num abuso sexual – e vemos isso tudo em flashback, que é a memória interna do filme. Diante disso, o espectador não sabe muito bem para onde olhar, logo num filme em que o olhar se mostra tão importante e revelador. Em princípio, Richard não viu o ocorrido, logo, podemos entender que aquilo que a câmera nos mostra (o estupro) é apenas sua interpretação dos acontecimentos, não tendo base comprobatória alguma, mesmo tendo ele visto Vicente fugir do local, deixando a menina inconsciente no chão (o que logicamente já é uma atitude condenável), não há evidência, naquele instante, de que tenha ocorrido de fato aquilo que vemos. Se tudo faz parte da lógica de Richard, então deveríamos suspender o juízo.

Percebemos, no entanto, que não importa para qual lado olhamos, a atitude do jovem, e também as ações/reações posteriores de Richard e de todos os outros personagens, são fruto inconsequente de conceitos precipitados sobre a faculdade mesma da atitude do corpo e da mente em relação a moral humana. Richard, cientista que é, busca, através da ciência, a solução para seu plano-resposta. Conforme os anos se passam e a tecnologia da época começa lhe dar suprimentos para realizar seus experimentos, Richard põe em prática sua grande operação. A transliteração de um corpo noutro corpo é a mensagem. O corpo, o meio; a segunda pele, o objeto. O resultado disso tudo é, antes de um plano de vingança, de um espúrio do ódio corrosivo humano, uma ideologia. A tática do cirurgião é dominar aquele corpo, mas não só. Há um desejo de posse, até mesmo de orgia, na figura do cirurgião – são mesmo todos loucos nesse filme. Enfrentar o penoso processo, sem ruborizar, sem esfalecer, torna a tarefa ainda mais extrema. É uma injeção de adrenalina.

A bem dizer, não há uma imagem desnecessária em A Pele Que Habito, que tem para si o arroubo técnico e temático que faltava a Almodóvar em seus últimos filmes: reconhecer a envergadura intrínseca do roteiro, assumir a mimese (imitação) independente das figuras (personagens, mas também de toda a mise en scène) em relação as suas referências artísticas, escandalizar sem banalizar os próprios esquemas internos da narrativa de gênero e, sobretudo, imaginar outro espaço para colocar seus personagens e sugar deles, até o limite, aquilo que de mais potente eles podem oferecer. Literalmente: a carne. Essa tomada de consciência joga toda uma responsabilidade de precisão sobre a obra (não importa se é ou não um filme de Almodóvar ou de qualquer outro cineasta), pois representa, metaforicamente, a gama construtiva do filme – o artesão, Richard. E não há dúvidas de que A Pele Que Habito tenha sido estruturado sob forte aparato de análise, confluindo nessa obra de tão intensa dor e paixão que, em igual teor de agonia e sofreguidão, ela, agora sim muito conscientemente, causa em nossos sentidos.

(La Piel que Habito, Espanha, 2011) De Pedro Almodóvar. Com Antonio Banderas, Elena Anaya, Blanca Suárez, Jan Cornet, Marisa Paredes.

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