PICICA: "O problema das lutas pela libertação continua sendo, aliás, como
enfrentar um inimigo estruturado de filiações e alianças extensivas que
conformam até mesmo a nós próprios, enquanto sujeitos dessa sociedade.
Como transformar essas relações sociais, — heteropatriarcado, racismo,
classismo, tudo isso integrado na relação do capital, — segundo a
relação de tipo novo, de que a “aliança intensiva” é conceito. A
antropologia pós-estruturalista não será nada senão utopismo, descolado
das forças vivas e devires agentes, se não estiver calcada na capacidade
real de reorganização do existente. Dos sujeitos reais, as
subjetividades do futuro presente. Organizar o conflito na imanência sem
ser capturado e rendido continua sendo o problema."
A aliança pós-estruturalista de antropologia e marxismo
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O livro propõe uma antropologia pós-estruturalista. Se o cerne da antropologia está no conceito de relação, o livro quer um novo conceito de relação. As referências principais são, pela antropologia, C. Lévi-Strauss, pela filosofia, G. Deleuze e F. Guattari. Transitando por paisagens fartamente povoadas de conceitos, Eduardo vai congeminar os trabalhos de gerações de etnógrafos americanistas das terras baixas, inclusive o próprio, com os arauetés. É um livro de chegada, na montagem de uma complexa maquinaria de diagonais, homologias, paralelismos, arroubos, refinamentos, espirais conceituais e interferências mútuas entre universos heteróclitos.
Num primeiro momento, a retórica antidicotômica parece de todo inconciliável ante a multiplicação de pares e dualismos ao longo dos capítulos, porém o modo de proceder é deleuziano. O dois é apenas um caso particular do múltiplo e o dualismo, método para ulteriormente dissimetrizar o real e assim restaurar diferenças qualitativas onde se apresentem apenas termos de comparação, equivalências de medida e integrações vetoriais de forças (contrárias ou coincidentes). A sociedade, o estado, o capital — todas essas figuras molares da ordem são resultado da aplicação sobreposta de processos históricos de equilíbrio progressivo e estabilização, ao passo que a proposta de uma antropologia pós-estruturalista será virar essas figuras da ordem pelo avesso, segundo uma teoria rigorosamente relacional do desequilíbrio, da desmedida, da hibridação, da monstruosidade.
É nesse propósito que, no livro, são desdobrados dois dípticos articulados entre si. A dobradiça se situa, no caso de Lévi-Strauss, entre As estruturas elementares do parentesco (1949) e Mitológicas (1964-71); no de Deleuze e Guattari, entre Anti-Édipo (1972) e Mil platôs (1980).
No primeiro caso, Eduardo apresenta a tese dos dois estruturalismos. Inicialmente vinculado ao Grande Divisor entre natureza e cultura, — alfa e ômega da dominação ocidental sobre os povos ditos “primitivos”, — num segundo momento da obra Lévi-Strauss se deixa afetar pela potência do pensamento ameríndio. Daí a passagem de uma concepção de gradual transcendência do homem em relação ao natural/animal, operada originariamente pela proibição do incesto; para, nas Mitológicas e além, retomar o mito como imanência entre natureza e cultura, de onde se borram as continuidades estritas entre os seres, centuplicando os híbridos e vazando as estruturas sociais de fluxos semióticos, materiais e rapsódicos. Lévi-Strauss traz na barriga um mundo novo, um devir-índio, um pós-estruturalismo em estado nascente, que termina por sobrepor e se redobrar com o estruturalismo tão mecanicamente anotado pelos comentaristas.
Já o díptico deleuziano é aberto para assinalar a passagem da primazia do conceito de produção para o de devir. No Anti-Édipo, a produção desejante baseia a imanência entre natureza e cultura. A própria natureza é processo de produção, ou natureza naturante — e não apenas algo produzido, ou natureza naturada. Antes da codificação dos fluxos produtivos pela ordem social, isto é, antes da separação entre desejo e lei; não pode haver sentido em falar no humano (na cultura, no estado) como se destacando de um fundo natural (da imoralidade dos fins, do estado hobbesiano de natureza). Como não tem vida própria, o capitalismo drena-a da produção desejante, codificando os fluxos segundo uma estruturação particular própria. No entanto, a produção desejante pode se auto-organizar, em sua imanência mesma, para exceder essa estruturação, motivo pelo qual o capital tem de elaborar o maior problema político: como favorecer o desejo que ele precisa necessariamente parasitar sem, no entanto, propiciar as condições para que o desejo escape do controle, libertando as forças produtivas nele atuantes e, em consequência, maquinando as relações de outro modo, não-capitalista?
Para Eduardo, isso ainda é pouco. A libertação das forças produtivas do desejo ainda parece demais com a teleologia hegeliana do trabalho, extraída da recepção francesa do pós-guerra da Fenomenologia do espírito. Na narrativa de Hegel, um Sujeito desejante peregrina impávido devorando o mundo objetivo para ultimar-se como história universal. Uma filosofia da história sob medida aos projetos civilizatórios ocidentais e sua antropologia rastaquera, à direita ou à esquerda, ante o que o outro é sempre um bicho a ser domesticado e escravizado para o seu próprio bem. Além disso, embora o Anti-Édipo elabore uma matriz do ser que é maquínica, que procede por concatenamentos imprevisíveis e inconscientes, compenetrações ilícitas e heterogêneses por todo lado, para o autor das Metafísicas canibais falta-lhe tirar do núcleo do sistema o conceito de produção como geração. É preciso abandonar a concepção demasiado digestiva e produtivista com que são pensadas as lutas libertadoras no Anti-Édipo, tributário que é das noções de “natureza naturante” em Spinoza e “trabalho vivo” no Marx dos Grundrisse.
É nesse sentido que Mil platôs é convocado na outra face do díptico. Para operar a travessia da produção ao devir. Diferentemente da produção, o devir não é essencialmente produtivo e gerativo. Pode ser, também, contraprodutivo. Não confundir com a “antiprodução” que, na lógica do Anti-Édipo, participa da estratégia do capital em modular e canalizar a produção desejante, distendendo indefinidamente o colapso esquizofrênico do corpo social e o pavor burguês que acompanha essa ideia de fim do mundo, desarmando também as maquinações desejantes comunistas. O devir pode ser abortivo, pode provocar estorvos, híbridos estéreis, criaturas inviáveis. O devir é contranatural, se colocando além da “natureza naturante”, radicalizando a dobra do Anti-Édipo de humano e natural no cadinho das forças produtivas. Em Mil platôs, estaríamos além de Spinoza e Marx. Se, na primeira face, o desejo é real e produtivo; na segunda, o devir é relacional e intensivo.
Eis o andamento de uma crítica pós-kantiana da economia política do desejo para uma afirmação cosmopolítica do devir.
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A contribuição do livro aparece na apresentação do conceito de “aliança intensiva”, resultante da cooptação lateral operada entre os dois dípticos.
Lévi-Strauss explica a formação das sociedades mediante um esquema intrincado de relações de dois tipos: de “filiação”, mais verticais, definidas pela consanguinidade, como pai e filho; e de “aliança”, mais horizontais, por meio de acordos matrimoniais entre famílias distintas, que faz as mulheres das tribos circularem. Na origem do social, a proibição do incesto induz uma escassez. Esta define um mercado de trocas como cimento social das diversas negociações, definindo destarte uma mediação necessária para comensurar os incomensuráveis (as mulheres).
Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo, inscrevem essa explicação em sua própria bricolagem. Chamam a produção desejante originária de “filiação intensiva”, uma espécie de caldo (pré-)cósmico originário, um manancial de forças produtivas descontroladas. A proibição do incesto é então reconfigurada como edipianismo, contra o que o livro se insurge e que vai ser imputado não só ao estruturalismo, mas a toda a ciência ao redor da economia política, do fenômeno jurídico e do familismo psicanalítico. O edipianismo ocidental sobredetermina os fluxos selvagens do Uno Primordial para causar a “filiação extensiva”, quer dizer, a sociedade ordenada pelo princípio da escassez, pelo mercado, pelo valor de troca/uso. Uma ordem social estruturada por uma matriz antropológica verticalizante e organicista, — numa palavra: o estado. O sistema de alianças “extensivas”, portanto, bane os contágios perigosos, proscreve a peste e assegura a reprodução social controlada, “sadia”, de que o capital tanto precisa, dentro do esquadro das filiações extensivas: identidades, totalidades, indivíduos, coletivos, hierarquias políticas várias, de raça, gênero, sexualidade. A aliança extensiva garante a relação social do capital, no vértice econômico-político do processo de hominização.
Diferente é a “aliança intensiva”, que o devir propicia. Nisso, atua a tradição etnográfica americanista, comparecendo inclusive Pierre Clastres (A sociedade contra o estado), com sua permanente conjuração do estado, com lateralidades precárias e desativações táticas do poder. O pensamento ameríndio causa as dobradiças em Lévi-Strauss e Deleuze, que Eduardo atualiza com a “aliança intensiva”. Esta se coloca além do estado e do mercado, destoa de qualquer produtivismo ou teleologia, para promover redes abertas de multiplicidades, multidões de eixos transversais e miriateísmo generalizado. A “aliança intensiva” é do tipo abominável, da ordem do roubo, das guerrilhas, das uniões clandestinas e antinaturais. Ela povoa o mundo de criaturas, deforma a sociedade, faz irromper forças transformadoras e perigosas, dissemina furores e imagens proibidas, liquefaz a ordem social, destitui o controlato. [Sobre monstruações, ver os livros dessas duas autoras pós-estruturalistas: Contract & Contagion, de Angela Mitropoulos, e Outros monstros possíveis, de Bárbara Szaniecki]
O problema das lutas pela libertação continua sendo, aliás, como enfrentar um inimigo estruturado de filiações e alianças extensivas que conformam até mesmo a nós próprios, enquanto sujeitos dessa sociedade. Como transformar essas relações sociais, — heteropatriarcado, racismo, classismo, tudo isso integrado na relação do capital, — segundo a relação de tipo novo, de que a “aliança intensiva” é conceito. A antropologia pós-estruturalista não será nada senão utopismo, descolado das forças vivas e devires agentes, se não estiver calcada na capacidade real de reorganização do existente. Dos sujeitos reais, as subjetividades do futuro presente. Organizar o conflito na imanência sem ser capturado e rendido continua sendo o problema.
Mas se o inimigo é imanente, e aí temos a subversão derradeira da filosofia ocidental e suas taras fatais, Marx talvez não estivesse tão errado assim, quando dizia que o antagonismo comunista é “dentro e contra” as relações capitalistas, tendo escrito uma obra fiel ao adágio que não é possível isolar-se em solidões guerreiras por muito tempo. Nem Deleuze e Guattari, para quem o proletariado sempre foi força de nomadização e a luta de classe imediatamente uma tarefa de hibridação selvagem, poliqueer, heterogenética. Nem Spinoza, com sua ética democrática dos afetos, a partir do livro III da Ética, — talvez estranhamente afetado pelo pensamento ameríndio quando, em 1664, sonhou com certo “negro brasileiro” (o índio era chamado de “negro da terra”). Sem aliança com essas forças demoníacas, genuína mitologia menor na modernidade globalizada, a antropologia pós-estruturalista não existe.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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