PICICA: "A subjetividade emergente nasce em rede, numa transformação
antropológica em que estamos inteiramente recombinados, segundo uma
socialidade ultra-acelerada, alteração perceptiva e psicomotora, outras
sensibilidades para experimentar as relações, o tempo e o espaço. Isto
não pode levar, de qualquer maneira, seja a celebrar alguma evolução
qualitativa (porque o capital também se desenvolveu), seja a lamentar a
perda de alguma falsa autenticidade, numa nostalgia dos “bons e velhos”
tempos, que não vão voltar. Nem tecnutopismo nem o erro simétrico, a
tecnofobia. Mudaram as coordenadas."
Subjetividade em rede: os desafios hoje
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A rede é central nos debates sobre organização das lutas hoje. Fazer redes com horizontalidade está na ordem do dia. No entanto, com frequência, o discurso ao redor das redes é mistificado, aplainando-se os problemas, as contradições e os paradoxos, sem os quais toda a agudeza política da questão desaparece. Uma premissa básica está em que a rede não é uma tendência libertadora em si mesma, nem significa alguma espécie de evolução tecnológica. Por outro lado, é preciso evitar argumentos decadentistas ou mesmo apocalípticos, que se resumam a lamentar a sofisticação dos mecanismos de controle em rede.
O capitalismo sempre funcionou na rede social, como fica claro em Marx. O giro do capital depende do lançamento de um circuito produção-circulação-consumo, que permite condensar o trabalho vivo da cooperação em valor, que por sua vez reiniciará o ciclo. Em resumo, o capital precisa explorar o trabalho para continuar rodando. Quanto mais o capitalismo engole a sociedade, mais pontos de extração de valor precisam ser lançados, sofisticando e difundindo os lugares e tempos da produção, circulação e consumo, em redes progressivamente mais complexas. A financeirização globalizada é o estado da arte deste processo. Outra disposição consiste na aceleração do giro de realização do valor, o que implica maior velocidade e maior conectividade das redes. Isto significa uma tendência de formação de uma malha contínua de extração de valor distendida por toda a metrópole, não dependendo mais dos antigos centros de comando e produção do capitalismo fabril, que polarizavam as redes sociais na sociedade industrial.
Yochai Benkler, em A riqueza das redes (2006), aposta na formação gradual de uma multidão online em rede, baseada na arquitetura peer to peer (P2P) e na produção horizontal dos bens comuns [commons]. Modelos proprietários e centralizadores, como a Microsoft, não funcionam porque é reduzida a riqueza da cooperação e interrompida a troca livre de bens que caracteriza também uma economia da dádiva, mais produtiva do que o padrão copyright da escassez. Os 20 bilhões de dólares lucro líquido de 2013 da Microsoft resultam, assim, de um modelo de negócio obsoleto, que prejudica cadeias produtivas que bem poderiam estar gerando mais e de maneira mais democrática.
O fato é que não apenas empresas proprietárias como a Microsoft explorem a cooperação transversal que acontece nas redes. Google e Facebook lucraram US$ 13 e 1,5 bilhões, em 2013, sem cobrar um centavo dos usuários. As duas empresas faturaram apenas capitalizando as brands de outras empresas. Operam assim predominantemente no plano do imaterial, oferecendo um serviço em troca do investimento altamente produtivo de tempo, atenção e cooperação de bilhões de pessoas. A teoria de Benkler, esposada por vários “redistas”, é bastante incompleta, na medida em que parece apenas acompanhar o processo de sofisticação das redes de exploração e expropriação difusa, colocando-se a serviço de uma modernização capitalista que nada garante em termos de libertação do trabalho social ante os circuitos de valorização.
Lawrence Lessig, em Free culture (2004), se colocou contra o paradigma proprietário no direito à cópia e autorais e nas patentes, e contra a colonização de espectros de comunicações e da própria internet, por grandes empresas concentracionárias. Embora essa linha de discurso, de fato, engrosse a luta contra as gigantes da indústria fonográfica e as teles; é igualmente insuficiente para lidar com uma nova forma de exploração da cooperação, que se dá dentro do próprio paradigma do free. A ONG Creative Commons multiplica alternativas de modelos de licenciamento aos autores, mas não questiona formas de trabalho, empresa e lucratividade.
Geralmente com estilo “descolado” e investindo pesado no marketing da inovação tecnológica, tais empresas se limitam a captar o que não produzem (as ditas “externalidades positivas”), se credenciando em função de capacidade de concentrar sobre si tempo e atenção, como Google e Facebook, para magnetizar verbas de publicidade e benesses governamentais, numa simbiose crescente segundo uma nova forma de poder. Mas a gratuidade não garante nada e pode chegar a ser ideológica. Quando algum precário é contratado por uma empresa terceirizada da África para realizar a manutenção do Facebook (inspecionando contas, apagando pornografia, identificando bugs…) por um dólar a hora, não aparece nas planilhas como trabalho semiescravo. Nem achamos tão estranho uma rede social multibilionária faturar em cima de nossas fotos, mensagens, conversas e relações, afinal, é grátis. Existe uma ambiguidade, de modo que free culture pode ser traduzida tanto por “cultura livre” quanto “cultura grátis”.
No modelo Fora do Eixo, a capitalização se dá pela associação da própria marca com nascentes de conteúdo imaterial, como bandas, artistas, coletivos e movimentos sociais, qualquer coisa que a geração se sinta atraída e dê valor. No final do ciclo de sucessivas manobras em que “colam” e “estão juntos e misturados”, a gestão da marca consegue integrar no cômputo geral não só uma imagem alternativa-indie-descolada-inovadora, como também passa a aspirar ao exercício da representação dessas nascentes, canalizando verbas de publicidade e mediações estatais. A captação do free, aqui, consiste numa técnica eficiente de costurar a riqueza imaterial com aqueles que pretendem representá-la, política ou mercadologicamente, — pagando o mínimo possível na operacionalização do processo, de maneira a reverter o poupado no processo mesmo, no melhor espírito calvino-capitalista. [Sobre isso, ver O comum e a exploração 2.0].
Existe ainda uma terceira apropriação indébita das redes, no discurso que se limita a celebrar um novo estágio de desenvolvimento da “humanidade” (seja lá o que isto signifique). Com foco nas tecnologias de rede, bastaria disseminar as novas formas de comunicação e interação “humanas” que as redes propiciam. As lutas, conflitos e contradições teriam ficado obsoletas, diante do potencial imensurável de evolução disparado por algo como a internet. Este digitalismo, usualmente invocado por teóricos que se comportam como gurus, é tão inovador quanto o socialismo utópico do século 19. Saint-Simon, um aristocrata, dizia que a invenção das ferrovias e do telégrafo era uma revolução que conduziria à paz perpétua. As novas tecnologias levariam à refundação da humanidade baseada na cooperação livre e na evolução moral, automaticamente erradicando a pobreza e os conflitos sociais. Atualmente, os saintsimonianos estão na mesma trincheira dos neoliberais e não admira estejam vendendo bem suas consultorias e palestras de “capacitação tecnológica”, harmoniosamente alinhados no deboche do fim da história.
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As redes são o terreno do conflito. A produção horizontal e cooperativa que nelas acontece continua em disputa, entre instâncias de representação e controle, e a libertação dessa produção segundo formas políticas autônomas. Estas não podem ser confundidas com utopias, como se fosse possível viver fora do capital e do estado. O caso das lutas é generalizar uma alternativa de sociedade, e não meramente uma sociedade alternativa autogestionária, que aliás costuma ocultar os próprios pressupostos de existência, em banais anarcoindividualismos e paranoicas horizontalidades. Por isso a importância de construir agenciamentos políticos em rede com tendências de libertação, além de qualquer gestão de marcas inteiramente funcional a um comemorado “capitalismo 2.0″.
Vejam-se, a esse respeito, experiências como o Partido X, na Espanha, ou então frontes ativistas como Wikileaks ou, no Brasil recente, as multidões de midiativismos que agem como “hubs” (e não “autoridades”), contribuindo no espalhamento de narrativas autônomas e problematizações do poder.
Na medida em que o capital e o estado são relações e não leviatãs intocáveis, a questão da autonomia continua sendo como disputar os termos dessa autonomia em meio ao modo de dominação presente. A alternativa de sociedade, em verdade, já existe segundo formas transitórias, ainda embrionárias, na composição antropológica do trabalho vivo. É uma transição viva que se debate para afirmar-se em meio às constrições, muitas vezes ridicularizada e criminalizada. Mas precisa se libertar de dentro das redes colonizadas pelo capital e o estado. Dentro delas, afinal, também existe o trabalho vivo que está sendo parasitado. As redes, portanto, estão cruzadas de fora a fora por conflitos, paradoxos e tendências, exigindo uma contínua problematização de seus projetos de libertação, sem mistificações de liberdade, gratuidade ou imediatismo. Isto não é “só” teoria (como em Negri & Hardt), como também o modo vivem aqueles que se dispõem à luta “dentro e contra” as formas de dominação e exploração, na precariedade.
Como explica Gigi Roggero, do coletivo Commonware, precisamos de um conceito forte de rede, que corresponda às bases materiais de desejo de quem quer (e precisa) ir além do “menos pior”, no comum da auto-organização além do estado e do mercado. Apesar de as redes serem o lugar por excelência da apropriação capitalista e da dominação estatal, elas também são onde o melhor da cooperação social acontece, e onde a mais potente resistência e afirmação de alternativas pode ser elaborada e transformada em projeto político. Isso, por sinal, já está acontecendo, e não tem passado despercebido por quem copesquisa o ciclo global de lutas em curso.
A subjetividade emergente nasce em rede, numa transformação antropológica em que estamos inteiramente recombinados, segundo uma socialidade ultra-acelerada, alteração perceptiva e psicomotora, outras sensibilidades para experimentar as relações, o tempo e o espaço. Isto não pode levar, de qualquer maneira, seja a celebrar alguma evolução qualitativa (porque o capital também se desenvolveu), seja a lamentar a perda de alguma falsa autenticidade, numa nostalgia dos “bons e velhos” tempos, que não vão voltar. Nem tecnutopismo nem o erro simétrico, a tecnofobia. Mudaram as coordenadas.
Obviamente, essa luta pela libertação nas redes é um longo processo, sobretudo nas regiões mais pobres. O capitalismo funciona também estratificando níveis, porque só desta maneira consegue impulsionar os fluxos produtivos através da arquitetura do valor. O valor tem que ser forçado a entrar nas tubulações e circular. O capital precisa constranger o trabalho para que ele, “livremente”, se submeta ao processo de exploração. O que mobiliza o sistema digestivo, portanto, são compressões de níveis diferentes, que se empurram. Daí o fato de o racismo, o patriarcado, a divisão internacional do trabalho, o nacionalismo serem tão estruturantes do próprio capital, porque propiciam os desnivelamentos com que a dinâmica do processo encontra a energia cinética para funcionar.
Em consequência, é vital para a libertação das redes nas redes que também aconteçam movimentos paralelos pela inclusão digital, a facilitação do acesso ao hardware, o barateamento da telefonia celular, a disseminação do wi-fi em comunidades, periferias e rincões. Tudo isso dentro de uma problematização permanente das ambivalências e contradições deste próprio processo, o que nos remete de volta ao problema da organização das lutas.
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Texto resultante de debate com Natacha Rena (UFMG/Indisciplinar), Fábio Malini (UFES/Labic) e Eduardo de Jesus (PUC-Minas), na mesa “Movimentos, ocupações e ressignificações urbanas e digitais: pluralizando a cultura e a cidade”.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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