PICICA: "Em
nosso tempo, as categorias e instituições políticas características da
“modernidade” estão em crise. Democracia, representação, partidos,
sistemas de welfare,
nada parece escapar à “fadiga dos materiais” que contamina até as
propostas de reforma que se apresentam. Mesmo as rebeliões e
insurgências metropolitanas dos últimos anos, apesar do potente desejo
de liberdade e igualdade que expressam, encontram limites que frustram a
construção de instituições e práticas alternativas. A tragédia das
revoluções do século XX, entre 1917 e 1968, malgrado os aspectos
positivos que legaram, parece se projetar sobre todos os esforços de
transformação que temos testemunhado.
Como
ultrapassar essa angustiante situação? Como evitar que a potência
constituinte dos oprimidos seja aprisionada nas jaulas do constituído?
Como impedir que a ação política seja reduzida ao simulacro da
representação? Como pensar a constituição de um sujeito político que
escape à tentação do Uno e à tutela de vanguardas? O que pode nos
ensinar todo um acúmulo de derrotas?"
Negri e nós
08/05/2014
Por Adriano Pilatti
Por Adriano Pilatti, originalmente publicado na revista Cult n.º 189.
–
Em
nosso tempo, as categorias e instituições políticas características da
“modernidade” estão em crise. Democracia, representação, partidos,
sistemas de welfare,
nada parece escapar à “fadiga dos materiais” que contamina até as
propostas de reforma que se apresentam. Mesmo as rebeliões e
insurgências metropolitanas dos últimos anos, apesar do potente desejo
de liberdade e igualdade que expressam, encontram limites que frustram a
construção de instituições e práticas alternativas. A tragédia das
revoluções do século XX, entre 1917 e 1968, malgrado os aspectos
positivos que legaram, parece se projetar sobre todos os esforços de
transformação que temos testemunhado.
Como
ultrapassar essa angustiante situação? Como evitar que a potência
constituinte dos oprimidos seja aprisionada nas jaulas do constituído?
Como impedir que a ação política seja reduzida ao simulacro da
representação? Como pensar a constituição de um sujeito político que
escape à tentação do Uno e à tutela de vanguardas? O que pode nos
ensinar todo um acúmulo de derrotas?
Se
temos a sensibilidade marcada pelo amor à vida e por uma irrenunciável
solidariedade em relação aos que vivem e padecem as privações e
humilhações que nascem da desigualdade e da servidão; se ousamos pensar a
política a partir do antagonismo que opõe inconciliavelmente os
pequenos que desejam se liberar aos grandes que desejam oprimir; se
desejamos construir comunidade a partir do respeito às singularidades e
do reconhecimento da multiplicidade dos modos de viver, sentir, pensar e
produzir; se tomamos o capital como relação violenta de comando e
exploração sobre os que trabalham – então podemos compreender o que há
em comum entre Antonio Negri e nós.
Exemplo
extraordinário de intelectual e militante em cuja trajetória reflexão e
ação não se separam, “Toni” tem dedicado sua vida ao esforço de
participar das lutas pela liberação da potência afetiva, criativa e
produtiva dos que vivem e trabalham. Iniciou sua militância na
juventude, por meio do trabalho pastoral desenvolvido pelos
“padres-operários” do Vêneto na década de 50 do século passado. Nos anos
60, participou do esforço de recuperar o legado de liberação do
pensamento marxiano, após a tragédia do “socialismo real” e os crimes do
stalinismo, integrando-se no campo do chamado “operaísmo” italiano e
vivendo intensamente a experiência da construção da rede de movimentos
de insurgência conhecida como Autonomia Operária.
Naquele
contexto, Negri participou do esforço de compreensão das transformações
que o capitalismo começava a experimentar, e da consequente busca de
novas alternativas de organização e ação de uma classe trabalhadora que
rejeitava o reformismo do então poderoso Partido Comunista Italiano
(PCI). É dessa época o conjunto de ensaios reunidos no livro “La
Forma-Stato”, em que se propôs a fazer a “crítica da economia política
da Constituição” e recuperar a perspectiva marxiana segundo a qual o
Estado é, irremissivelmente, uma forma do poder político que serve à
opressão de classe. Daí a dolorosa reflexão sobre a tragédia da
Revolução Soviética e o paradoxal “salto mortal” representado pela
tentativa leninista de acelerar a extinção do Estado por meio de seu
fortalecimento.
Negri
viveu intensamente, na teoria e na prática, entre a cátedra da
Universidade de Pádua e as mobilizações de porta de fábrica, o chamado
“1968 Italiano”, que começou bem antes e só terminou em 1977, com a
brutal reação armada que acumpliciou bandos fascistas e forças estatais.
Apontado, injusta e absurdamente, como “mentor” e partícipe das
equivocadas ações das Brigadas Vermelhas (grupo oriundo de uma
dissidência do PCI, cujos centralismo, vanguardismo e voluntarismo
sempre criticara), o cattivo maestro foi preso em 1978.
Acusado
de implicação no sequestro e na execução de Aldo Moro, ex-chefe de
Governo e então presidente do Partido Democrata-Cristão, Negri foi
condenado com base exclusivamente em delações premiadas de
“brigadistas”, que o incriminaram para obter redução de pena, ao arrepio
das mais elementares garantias do “devido processo legal”. Face à
injustiça da condenação, o Partido Radical, de orientação
social-liberal, inscreveu-o em sua lista de candidatos ao Parlamento
para que, eleito, pudesse obter imunidade e ser libertado. Eleito e
liberto, Negri partiu para o exílio em Paris antes que o Parlamento
cassasse sua imunidade. Retornou em 1997, para cumprir a pena restante e
reabrir a discussão sobre os presos políticos condenados com base nas
leis de exceção editadas 20 anos antes.
No
cárcere, Negri dedicou-se ao estudo da obra de Spinoza, para buscar ali
os fundamentos para uma compreensão imanente da política, a fim de
“liberar Marx da dialética hegeliana” e suas sínteses autocráticas. O
resultado foi o polêmico livro “Anomalia Selvagem”, no qual recupera um
“Spinoza subversivo” através da oposição entre a potência da multidão,
sujeito político imanente e múltiplo, e o poder soberano do Estado,
caracterizado pela transcendência e pela unidade, em busca de uma
democracia absoluta por meio da qual o comum pudesse se constituir a
partir da multiplicidade.
Já
em Paris, Negri estabeleceu fecundo diálogo com Gilles Deleuze e Felix
Guattari em torno de categorias já avançadas por Michel Foucault, para
pensar as novas formas de dominação e resistência na chamada
“pós-modernidade”. Desse esforço resultou o excelente “Poder
Constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade” (que tive a
grata alegria de traduzir para o português). Nele, Negri passa em
revista cinco séculos de revoluções e teorizações, dos tumultos da
Renascença maquiaveliana à Revolução de 1917, liderada por “Lênin, o
ocidental”. No esforço de refletir sobre as condições de superação do
recorrente “Termidor” de que têm padecido as grandes revoluções da era
moderna, Negri reconstrói a “linha alternativa e maldita” da
modernidade, representada, no plano da reflexão política, pelo eixo
Maquiavel-Spinoza-Marx.
Em
Maquiavel, Negri recupera o princípio constituinte do antagonismo
tumultuário que opõe os “pequenos”, e seu desejo de liberação, aos
“grandes”, e seu desejo de opressão e predação. Reflete, assim, sobre a
produção das “instituições da liberdade” por meio das quais pode se
viabilizar o “devir-príncipe” da multidão e a constituição de uma
democracia absoluta, sujeito e forma estes recuperados do pensamento
spinozano. Tudo isto no horizonte das transformações do capitalismo
contemporâneo, pensadas marxianamente “para além de Marx”, a partir da
constatação de que as formas do capital, contemporâneas a Marx e por ele
estudadas, transformaram-se, e é preciso estudar sua nova composição
com o método marxiano.
A
partir desses fundamentos e em parceria com o jovem intelectual
norte-americano Michael Hardt, Negri escreveu, na década passada, a
trilogia “Império”, “Multidão”, “Comum”. Nela, Negri e Hardt refletem
sobre as novas formas de comando e exploração capitalista (bem como as
novas e correspondentes formas de subjetivação e resistência) que nos
são contemporâneas. Elas se caracterizam pela desterritorialização do
poder militar, das comunicações e dos fluxos produtivos e financeiros.
Tais processos põem em xeque as soberanias estatais, configurando uma
nova e planetária forma de poder, caracterizada como “sociedade global
de controle” a partir das pesquisas de Foucault e Deleuze.
Para
Negri e Hardt, no capitalismo do nosso tempo, o regime de fábrica
perdeu sua centralidade e proeminência, com a consequente corrosão das
formas de organização política e social que lhe eram correlatas: o
Estado, o partido, o sindicato. Numa economia em que a importância e o
valor do software geralmente superam os do hardware,
por exemplo, em que os processos de valorização e acumulação dependem
cada vez mais de “externalidades” – como nível de educação, estruturas
de transporte e comunicação e outras condições “ambientais” –, a relação
de capital se traduz cada vez mais em formas de “biopoder”, que se
exerce sobre a própria vida e todos os circuitos de cooperação,
inclusive afetiva. E os explora cada vez mais predatoriamente.
As
metrópoles tornam-se as fábricas de nosso tempo, e a produção exige
cada vez mais a ação autônoma dos trabalhadores, a partir de fatores de
produção como os circuitos de comunicação e informação, os códigos e as
linguagens. O “trabalho imaterial e afetivo”, que exige sempre mais
interação entre os trabalhadores em sua integralidade, valoriza-se
comparativamente à produção “material”: atividades terapêuticas e de
cuidados físicos, psíquicos e estéticos, do psicanalista à baby-sitter, do trabalho doméstico ao personal trainer,
do médico à “esteticista”, da “malhação” ao entretenimento, do
jornalismo à publicidade. Formas de vida e trabalho criados pelos pobres
valorizam territórios antes degradados, que em seguida são expropriados
pelos ricos nos processos de “gentrificação”, fazendo com que os
trabalhadores deles expulsos se desloquem para novas áreas degradadas,
valorizando-as.
Com
as novas e múltiplas formas de produção cooperativa, a “classe
trabalhadora” já não pode ser adequadamente traduzida nos conceitos
redutivos de “operariado” e congêneres, caracterizando-se cada vez mais
como “multidão de singularidades”. Nelas se expressa, para além do
desejo de “emancipação” identitária (o direito de ser aquilo que se é),
um desejo de “liberação” (o direito de devir diferente do que se é).
Para a organização da cooperação produtiva desses trabalhadores, o
comando capitalista é cada vez mais dispensável e, por isso mesmo
parasitário, pois incide sobre a própria vida e os fluxos de relações
afetivo-cooperativas, na tentativa de se apropriar do substrato comum
dessa cooperação afetiva: recursos naturais, linguagens, formas de
comunicação e expressão etc
Do carnaval de rua ao funk, dos games
às formas de vestir, falar, dançar e se divertir, dos “bairros boêmios”
valorizados por artistas a formas alternativas de estar juntos – sobre
tudo que se cria, expressa e valoriza sem o concurso do capital, enfim,
incide a avidez predatória dos capitalistas, gerando diversificadas
formas de resistência: das ocupações de imóveis abandonados aos
“rolezinhos”, das manifestações de rua às “liberações de catraca” dos
sistemas de transporte coletivo e de massa.
É
nesse horizonte que se coloca o desafio de pensar e criar as novas
ações e organizações da liberação, para evitar a corrupção do comum e
sua captura pelos processos de privatização, dos quais o setor “público”
(estatal) é em geral coadjuvante e garante. Essa é a tarefa fundamental
do “intelectual”, segundo Negri e Hardt. Não mais cultivar a pretensão
estar à frente dos movimentos, para “orientá-los”, ou ao seu lado, para
criticá-los, mas inserir-se dentro deles, como uma singularidade entre
outras tantas, a fim de cooperar com a criação das instituições por meio
das quais o desejo de liberação da multiplicidade das singularidades se
afirme e conserve. Contribuir para “fazer multidão” por meio da
“co-pesquisa”: esta seria a contribuição por excelência dos
intelectuais.
Nos
limites do espaço disponível, foi preciso trabalhar “a golpes de
martelo” para construir este pequeno resumo introdutório. Que, espero,
possa alcançar o único e modesto objetivo a que me propus aqui:
instigar, nos que ainda não tiveram a prazerosa e elucidativa
oportunidade de fazê-lo, a leitura e a reflexão em torno do brilhante e
generoso pensamento do mestre e amigo Toni Negri. Vale mesmo a pena.
—
Adriano Pilatti é professor de direito constitucional na PUC-Rio e participa da rede Universidade Nômade
Imagem: quadrinhos de Claudio Calia
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade
Nenhum comentário:
Postar um comentário