PICICA: "Nada mais preocupante para o Partido da Ordem, e nada mais
propriamente político, do que a organização da crise, com a conexão de
diferentes lutas autônomas — unidas ao redor das muitas pautas do
direito à cidade, por um Rio de Janeiro melhor, mais democrático e menos
mafioso. O medo tem que mudar de lado. Não podemos deixar que preparem o
caminho para a volta da direita, com a mobilização dos medos e a
criminalização das greves, lutas e da auto-organização das forças vivas
de nosso tempo."
A Copa que já não teve, pelo visto, começou
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Os rodoviários do Rio conseguiram organizar uma das mais bem sucedidas greves dos últimos tempos. Usando redes sociais e tecendo um arco diversificado de alianças políticas, os rodoviários conseguiram contornar o peleguismo sindical e, de maneira autônoma, ganharam o apoio da maioria dos trabalhadores. O motivo é óbvio. Está na cara que têm convergido na cidade grandes afluxos do capital, mas as pessoas que vivem e fazem o Rio funcionar não veem a cor do dinheiro. Enquanto isso, os preços explodem, especialmente os aluguéis. O banquete não chega na população, espremida por todos os lados em nome dos megaeventos. Como nas greves dos garis (março) e dos petroleiros (ainda em curso), a greve dos rodoviários tensiona um pacto essencialmente desigual, que só consegue ser mantido graças a um consenso cada vez mais autoritário e policialesco, que inclui a coalizão de governo, as principais instituições e os grandes meios de comunicação.
Precisa ficar claro que essa greve não é só contra as empresas de ônibus. É também contra a coalizão de governo. Essas empresas também participam do estado, como parceiros orgânicos e permanentes. A greve é também contra uma forma de governar a cidade, — uma esfera da representação que não representa mais ninguém. Hoje, não faz mais nenhum sentido separar setor público (grupo político que comanda a prefeitura) e setor privado (financiadores das campanhas e projetos, parceiros preferenciais, padrinhos), como se fossem duas dimensões de natureza político-jurídica distinta. A dita “parceria público-privada” não é nenhuma modalidade específica de governança, mas a própria base operativa com que funciona o estado, em 2014. Uma base concreta, por sinal, mafiosa e respaldada pela brutalidade dos agentes da ordem, “legais” e “extralegais”.
O capital chega a ser burro. Desde pelo menos o começo do século passado, o capitalismo aprendeu não somente a conviver com os sindicatos, mas a usá-los para seus próprios fins, incorporá-los como etapa de integração do trabalho e cooptação de suas lutas. Depois de um período inicial de conquistas do trabalhador, geralmente os donos do capital se adaptam, a fim de recuperar as conquistas dentro do sistema. Foi assim que historicamente o sindicato se tornou indispensável para a reprodução das relações capitalistas, ajudando inclusive na maior produtividade (veja, por exemplo, o toiotismo). Quando o sindicato, no entanto, se torna total e abertamente pelego, agindo como mera correia de transmissão do governo, o efeito é o mesmo que se tivessem fechado o sindicato. E um sindicato fechado ao trabalhador significa destruir qualquer instância de mediação para o conflito entre capital e trabalho. O sindicato perde a sua função de amortecer a luta, e de “despolitizá-la” como se fosse uma questão meramente técnico-econômica de definir algum místico “preço justo” da exploração.
O resultado é, como se viu ontem, a ação direta e imediata dos trabalhadores. Uma ação tão mais potente quanto mais capacidade de auto-organização o movimento conseguir construir. Tão mais potente quanto mais souber relacionar-se com outras lutas igualmente autônomas e imediatas por direitos. Se o sindicato deveria servir para mediar o conflito entre capital e trabalho, enquadrando a insatisfação e o desejo como “demandas de categoria”, supostamente “apolíticas”; a luta direta e autônoma liberta as demandas da categoria e, abrindo-se ao movimento mais geral de lutas da cidade, politiza a manifestação. Não por acaso, os meios de comunicação — que também participam do estado, sobretudo no poder punitivo — corram para acusar a greve de ter “fundo político” ou ser “organizada”, querendo com isso dizer que ela seria perigosa. Sabe muito bem como a maior força da greve está na organização autônoma que assumiu, na força de conversão do “espontaneísmo” das insatisfações e desejos em ação coletiva e com escala. E não à toa, também, deprecie sistematicamente as ligações entre o movimento e outros grupos políticos já existentes. Porque é aí mesmo, nessa miscigenação selvagem, que as demandas acabam escapando das “categorias”, e a governança é ameaçada em seus esquemas público-privados.
Desde as jornadas de junho de 2013, formou-se um “Partido da Ordem”. À semelhança do que ocorrera nas revoluções de 1848, na França, esse partido representa uma coalizão
contrarrevolucionária que mobiliza as instituições da república e os principais meios de comunicação para desqualificar, criminalizar e eliminar todas as formas de movimento social, autonomia e luta políticas. Marx, no 18 brumário de Luís Bonaparte, via-o como expressão do “pavor burguês pelo fim do mundo”. Essencialmente moldado como reação à crescente mobilização popular no período pós-revolucionário, o Partido da Ordem “concretiza-se em brutais intervenções policialescas da burocracia, da polícia e dos tribunais.” Uma depois da outra, vão sendo caçadas e destruídas as organizações. O que os membros do Partido — pequeno-burgueses, elite burocrática, empresários da cidade — não se dão conta, contudo, é que na esteira da repressão se dissolvem também todas as conexões entre as redes e movimentos sociais e o próprio partido, que termina por se alienar da população. Se em cada greve e em cada protesto, os participantes são tachados de vândalos, chega uma hora que os “vândalos” vão ser maioria. O resultado histórico foi um golpe da direita monárquica, encabeçada pelo sobrinho de Napoleão Bonaparte que, mediante pautas populistas, se aliou diretamente às bases. O Partido da Ordem estava impotente e dispensável, tendo preparado as condições políticas para sua derrocada por um grupo medíocre. Acabou dissolvido e seus líderes exilados, enquanto Luís Bonaparte dava por encerrada a segunda república francesa para ser coroado, no ano seguinte, imperador.
Nada mais preocupante para o Partido da Ordem, e nada mais propriamente político, do que a organização da crise, com a conexão de diferentes lutas autônomas — unidas ao redor das muitas pautas do direito à cidade, por um Rio de Janeiro melhor, mais democrático e menos mafioso. O medo tem que mudar de lado. Não podemos deixar que preparem o caminho para a volta da direita, com a mobilização dos medos e a criminalização das greves, lutas e da auto-organização das forças vivas de nosso tempo.
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PS. Para uma leitura do PT, depois de junho de 2013, como se comportando igual ao Partido da Ordem, ver editorial da Revista Lugar Comum, n.º 40.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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