maio 25, 2014

"Copesquisa em cultura", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "A produção de subjetividade depende de um plano de imanência, quer dizer, a elaboração de problemas cujas coordenadas desestabilizem as coordenadas dos “problemas” decididos de fora ou de cima. Quem governa não quer novos problemas. Mas o par imanência x transcendência não pode cair em Fla-Flu ou paralogismo teórico. As culturas dissidentes, de resistência ou afirmação dependem dessa reproblematização imanente para escapar, com destreza e astúcia, dos modelos dominantes em que essas culturas só poderiam existir como exótico comercializável ou curiosidade, ou simplesmente não reconhecíveis como tal, desqualificadas e até criminalizadas (como o pixo). Não por acaso, tais culturas sejam imediatamente formas de vida. É impossível divisar existência e trabalho. Nesse sentido, copesquisam-se os saberes menores (G. Deleuze ou M. Foucault). A cooperação transversal, muito produtiva, é encadeada como esfera do comum, — além do público e do privado, que se revezam nos esquemas de poder cultural."

Copesquisa em cultura
DIBUJO 
Foto: Sala Dobradiça, Santa Maria (RS)



Introdução

O caso é produzir conhecimento diretamente implicado nos lugares e tempos onde a cultura acontece e é organizada. É um trabalho de “dentro”, onde o “dentro” não significa simplesmente alguma espécie de imersão ou confusão, mas um jogo de cooptações laterais entre a produção de cultura e de conhecimento. Afetar-se mutuamente, compondo e decompondo relações na medida em que os saberes se conchavam, é o cerne do processo. O copesquisador decide pensar com, antes do que como os agentes, produtores e viventes da cultura. O resultado será também ação cultural, intervenção na cultura, em contínua realimentação, mas ao mesmo tempo uma produção com estatuto “científico”. A metodologia guarda pontos de toque com a pesquisa-ação e com algumas formas de cartografia cognitivo-afetiva, em que a implicação estratégica nos processos produtivos qualifica o conhecimento.

Linhas gerais


No horizonte atual em que o trabalho vivo é biopolítico (Negri & Hardt), definindo os modos de trabalho, cooperação e exploração hoje; copesquisar em cultura não pode contornar a produção de subjetividade como unidade de análise e ação político-cultural.

Isto significa, pelo menos, quatro coisas:

1) Não pode ser um método descritivo, que se resuma a colecionar fatos e identidades, arranjando um quadro eclético, neutralizado ou supostamente objetivo. Seria cair nos vários positivismos: (multi)culturalismo, sociologismo, economicismo. É preciso assumir um ponto de vista, situar-se na franja das transformações, na fronteira onde criatividade e antagonismo funcionam sem distinções claras. É preciso tomar lado.

2) Não pode ser disciplinar. Discutir cultura é imediatamente discutir política, assim como economia política. Traçar a linha de demarcação do que poderia definir o campo epistêmico e/ou institucional do fato cultural já é uma ação política. Sobretudo, se faz necessário rejeitar a tentativa de conformar o campo cultural como um território depurado de conflitos e disputas, no que se diferenciaria da política. Esta chave apaziguada da cultura, quase de celebração, serve muito bem aos intermediários empresariais/estatais que já se especializaram nos negócios da Cultura. A copesquisa é indisciplinar e muitas vezes antidisciplinar.

3) Não pode tomar partido segundo uma linha preservacionista. Não há o que defender. Não existe patrimônio cultural a ser pesquisado. Cultura é movimento, relação, transformação, ou não é viva. Toda cultura é dinâmica e transitória. Qualquer visão patrimonialista nega o poder da diferença que a cultura tem de transformar, e se transformar no processo. O que se busca é a autonomia, não a pureza. Evidentemente, pode ser preciso enfrentar tentativas de desculturação ou capitalização, mas isto implica ativar na própria cultura as forças subversivas que contornam tais ataques. O modelo cultural majoritário que faz o cerco nas culturas afirmativas só é verdadeiramente ameaçado pelo que não pode capturar; isto é, pelo motor nomádico das diferenças. O motor da diferença inova os termos do conflito e dissemina fragmentos potentes para um projeto de libertação, além de si mesmo.

4) A produção de subjetividade depende de um plano de imanência, quer dizer, a elaboração de problemas cujas coordenadas desestabilizem as coordenadas dos “problemas” decididos de fora ou de cima. Quem governa não quer novos problemas. Mas o par imanência x transcendência não pode cair em Fla-Flu ou paralogismo teórico. As culturas dissidentes, de resistência ou afirmação dependem dessa reproblematização imanente para escapar, com destreza e astúcia, dos modelos dominantes em que essas culturas só poderiam existir como exótico comercializável ou curiosidade, ou simplesmente não reconhecíveis como tal, desqualificadas e até criminalizadas (como o pixo). Não por acaso, tais culturas sejam imediatamente formas de vida. É impossível divisar existência e trabalho. Nesse sentido, copesquisam-se os saberes menores (G. Deleuze ou M. Foucault). A cooperação transversal, muito produtiva, é encadeada como esfera do comum, — além do público e do privado, que se revezam nos esquemas de poder cultural.

4.1) Por um lado, é livrar-se da transcendência do estado, um mal infantil que aflige a cabeça de muitos atores do cenário cultural. Parecem não conseguir pensar sem passar pela integração, mediação superior, comando e racionalização estatais. A copesquisa evita a bitola estadocêntrica, para pensar e agir. Nessa bitola, caberia ao estado unificar as redes e fluxos de produção cultural, seja mediante alguma figura de síntese — a cultura brasileira, a cultura baiana, regionalista, da periferia etc —, seja segundo um Plano que determine, de maneira arborescente, a ordenação do “setor cultural”. No primeiro caso, um nacionalismo cultural ou regionalismo, fixado sobre identidades com os múltiplos intermediários empresariais/estatais que as operam com preferência. No segundo caso, uma concepção planificadora em que especialistas decidem o que é melhor, de cima a baixo. Exemplo disso é o projeto Praças da Cultura (integrado com os esportes), que aplica pacotes prontos de arquitetura e engenharia para instalar equipamentos nos lugares sem, no entanto, qualquer articulação com a composição do trabalho cultural já existente. Não destoa muito da concepção transcendente de projetos federais de moradia, como o Minha casa minha vida, pensando de cima pra baixo como grandes conjuntos pré-fabricados de viver. Em ambos os programas, colocando-se como esfera pública, funcionam empreendimentos perfeitamente acomodados na lógica privatista, que favorecem construtoras e bancos de investimento internos aos arranjos de governabilidade. Exemplo diverso, dentro do campo institucional, e de interesse à copesquisa, foi a política Pontos de cultura, engendrada no ministério da cultura de Gilberto Gil, no governo Lula.

4.2) Por outro lado, é livrar-se da transcendência do mercado, outra fixação edipiana de muitos atores. O mercado é apresentado como uma força invencível e invisível, a que se conclama uma adaptação imediata, para aproveitar as oportunidades e fomentar a sustentabilidade, ou seja, necessidade de capitalização. O apelo é corporativista. O objetivo das políticas culturais passa a ser, assim, reforçar a diferenciação do mercado e equipá-lo de redes de valorização dos agentes e produtores. Tem-se aqui a proposta de choque de capitalismo, que apela por modernização e capacitação de um setor supostamente atrasado em relação às últimas inovações empresariais. Dessa maneira, a economia política clássica tenciona impor-se sobre o campo cultural, enquanto as culturas dissidentes inventam alternativas de economia, saberes menores em relação ao capitalismo. Atualmente, tal método se orienta na direção de um campo cultural expandido, que vai abarcar o turismo, o videogame, o design. Grosso modo, são os discursos da indústria criativa ou economia criativa, e cuja última vedete foi a “economia laranja”, a mesma coisa recauchutada para o “desenvolvimento”. Todas estão baseadas na segmentação do mercado, e na exploração da propriedade imaterial e direitos autorais, um modelo verdadeiramente muito antigo e injusto. Em vez da antiga “classe artística”, o novo sujeito corporativo passa a ser a “classe criativa”. Seu vetor de elitização na divisão do trabalho consiste em suas habilidades e capacidades cognitivo-afetivas, no que se diferencia no mercado. A ideologia da meritocracia criativa em nada se descola da forma-estado do capitalismo cognitivo. Contra isso, a copesquisa em cultura só pode encontrar subjetividades na crítica e no antagonismo das culturas dissidentes, bem como na construção de alternativas político-econômicas.


Conclusão

A copesquisa se coloca na emergência de subjetividades político-culturais, pesquisando não só as redes, gânglios e sistemas de produção e geração de novas qualidades, formas, conteúdos e alternativas, como também os pontos de atrito, as lutas, os antagonismos “dentro e contra”, na imanência da vida mesma, onde ela se organiza como cooperação e criação, como comum. A copesquisa, nesse sentido, é também produção do comum.


Texto baseado em parte da fala apresentada no VII Seminário da Diversidade Cultural, em Belo Horizonte (21-23/5/14).

Fonte: Quadrado dos Loucos

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