PICICA: "O que nos interessa neste momento, porém, é assinalar
uma inflexão. Depois de 446 greves contabilizadas em 2010 e 554 em
2011, no ano de 2012 aconteceram 873 greves no Brasil, segundo os
estudos do DIEESE. É o maior número registrado desde 1996 e revela um
crescimento significativo nos últimos anos do recurso à paralisação do
trabalho, como arma para enfrentar os baixos salários, a perda de
direitos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho,
geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho, especialmente
em setores como o da Construção Civil, que se viu mais aquecido com as
grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos
“mega-eventos” (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas). A relativa
estabilidade do nível de emprego (relativa porque os números oficiais
contabilizam 6 milhões de desempregados, mas também 62 milhões de
brasileiras e brasileiros em idade ativa que por alguma razão não buscam
empregos) também pode ajudar a explicar porque cresce o número de
greves. Ainda não foram divulgados os dados sobre as greves no ano de
2013, mas tudo indica que a tendência ao crescimento se manterá."
Greves no Brasil: o despertar de um novo ciclo de lutas?
*Por Marcelo Badaró Mattos
Um
dos mais visíveis indicadores do recuo das lutas coletivas da classe
trabalhadora brasileira, a partir dos anos 1990, foi a diminuição do
número de greves. Em 1989, no auge do ciclo de lutas sociais que marcou o
fim da ditadura empresarial-militar instalada em 1964, ocorreram cerca
de 4000 greves no Brasil. Nos anos seguintes este número foi caindo, até
atingir 1228 greves em 1996, 525 em 2000 e 299, em 2005, num dos pontos
mais baixos da curva (o menor número foi de 298 em 2002). Para explicar
tal declínio das mobilizações organizadas dos trabalhadores, podemos
elencar diversos fatores: o desemprego e a precarização das relações de
trabalho decorrentes do processo de reestruturação produtiva que se
acelera a partir da década de 1990; o progressivo apassivamento da
maioria da direção sindical mais combativa (reunida em torno da Central
Única dos Trabalhadores, a CUT), que ao longo dos anos 1990 adere
progressivamente a uma lógica conciliatória e amolda-se à ordem do
capital e à estrutura sindical oficial; e, já nos anos 2000, a
incorporação de dirigentes sindicais aos governos capitaneados pelo
Partido dos Trabalhadores, acompanhada da transformação da CUT em braço
sindical dos governos petistas e de sua definitiva incorporação à
estrutura sindical oficial. Explicar detalhadamente cada um desses
fatores demandaria mais espaço e tempo do que dispomos aqui.
O que nos interessa neste momento, porém, é assinalar
uma inflexão. Depois de 446 greves contabilizadas em 2010 e 554 em
2011, no ano de 2012 aconteceram 873 greves no Brasil, segundo os
estudos do DIEESE. É o maior número registrado desde 1996 e revela um
crescimento significativo nos últimos anos do recurso à paralisação do
trabalho, como arma para enfrentar os baixos salários, a perda de
direitos dos trabalhadores e as péssimas condições de trabalho,
geradoras de uma crescente onda de acidentes de trabalho, especialmente
em setores como o da Construção Civil, que se viu mais aquecido com as
grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos
“mega-eventos” (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas). A relativa
estabilidade do nível de emprego (relativa porque os números oficiais
contabilizam 6 milhões de desempregados, mas também 62 milhões de
brasileiras e brasileiros em idade ativa que por alguma razão não buscam
empregos) também pode ajudar a explicar porque cresce o número de
greves. Ainda não foram divulgados os dados sobre as greves no ano de
2013, mas tudo indica que a tendência ao crescimento se manterá.
Só o passar do tempo poderá confirmar se estamos
diante de um novo ciclo de crescimento das lutas organizadas da classe
trabalhadora no Brasil. Há, no entanto, algumas características desse
ciclo de greves que já nos apontam certas questões centrais. Trato a
seguir de duas delas e com isso salto também do exame geral dos números
de greves para o comentário específico, ainda que rápido, sobre algumas
paralisações mais significativas.
A primeira questão diz respeito à relação
estabelecida entre as ”jornadas de junho” de 2013 (as manifestações
multitudinárias das quais já tratei aqui) e as greves. Na época das
grandes manifestações de meados de 2013, uma das características mais
discutidas de seu perfil foi a rejeição aos partidos políticos e, em
alguma medida, às organizações sindicais. Quando as centrais sindicais
tentaram aproveitar o embalo das grandes passeatas para impulsionar dois
dias nacionais de luta unificada, o que se viu foram manifestações de
escala muito reduzida e, em grande medida, restringidas a dirigentes e
funcionários dos aparatos sindicais. De que relação se poderia tratar
então? Indo um pouco além da aparência dos acontecimentos, podemos
perceber que as grandes demandas das manifestações de meados de 2013 –
pela redução do preço e melhoria da qualidade do transporte coletivo,
contra a violência policial, contra as corporações empresariais de
mídia, em defesa da saúde e da educação – estavam longe de ser
novidades. Trata-se de um conjunto de bandeiras assumidas e
propagandeadas pelos movimentos sociais que mantiveram uma perspectiva
mais mobilizadora e combativa, mesmo em meio à maré vazante de lutas dos
anos 1990 e 2000. Em especial a defesa de mais verbas e melhor
qualidade para saúde e educação públicas, teve nos sindicatos de
trabalhadores desses dois setores no serviço público brasileiro seus
principais propagadores. Em 2012, por exemplo, uma grande greve dos
trabalhadores da educação no serviço público federal atravessou mais de
três meses de enfrentamentos com o governo de Dilma Rousseff. Ou seja,
lutas sindicais, ainda que fragilizadas e fragmentadas, das duas décadas
passadas foram essenciais para manter em pauta a defesa desses direitos
fundamentais. Por outro lado, as manifestações de 2013 impulsionaram
greves e táticas de lutas dos sindicatos mais combativos. Em vários
estados do país, sindicatos de profissionais da educação fizeram greves
no segundo semestre de 2013. No Rio de Janeiro, a greve foi longa,
enfrentou a intransigência dos governos estadual e municipal, mas gerou
uma nova onda de passeatas multitudinárias em seu apoio, chegando a
reunir novamente cerca de 100 mil pessoas nas ruas do Centro da cidade
em outubro. Muitos dos manifestantes de junho foram às ruas novamente
concretizar a palavra de ordem da defesa da educação, consubstanciando-a
em apoio ativo à luta dos trabalhadores do setor. A mesma tática de
levar a greve para a rua, na forma de grandes manifestações foi
empregada pelos trabalhadores da limpeza urbana do Rio de Janeiro (os
garis), que em pleno carnaval carioca deste 2014 paralisaram suas
atividades para garantir melhorias salariais e de condições de trabalho.
Apesar do incômodo com o acúmulo de lixo nas calçadas e ruas, em plena
festa carnavalesca, a maioria da população da cidade apoiou a greve e
quando, em 7 de março, os garis fizeram sua maior manifestação pelo
Centro da cidade foram fortemente aplaudidos e receberam muitas adesões
em seu protesto. Imediatamente após essa demonstração de força, a
Prefeitura do Rio de Janeiro, que havia classificado a greve como
“motim” e mobilizara escoltas policiais para forçar os garis a
trabalharem, chamou os líderes da greve para negociar e a paralisação se
encerrou com ganhos substantivos para os trabalhadores.
Uma segunda questão central a discutir é a da relação
entre estas greves e os sindicatos. Embora continue a existir um setor
combativo do movimento sindical, que se mobiliza e comanda greves e
apesar de até mesmo a burocracia mais acomodada em alguns momentos ser
obrigada a convocar paralisações do trabalho, o que chama a atenção em
muitos desses movimentos grevistas recentes é que eles se fazem à margem
das, e muitas vezes contra as, direções sindicais. Foi o que aconteceu
na greve dos garis, em que a direção sindical, encastelada há décadas no
sindicato de trabalhadores da limpeza urbana e sempre disposta a
colaborar com os governos e a frear mobilizações, não só se posicionou
contra a greve, como tentou evitá-la, boicotando a assembleia dos
trabalhadores que iria deflagrá-la e anunciando acordos com a
municipalidade que nunca foram discutidos pela categoria. Mesmo na greve
dos profissionais da educação do segundo semestre de 2013, dirigida
pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE), cuja
composição é majoritariamente de militantes da esquerda mais combativa,
houve uma nítida tensão entre o posicionamento da direção (mostrando
disposição para negociar acordos que pusessem fim à greve, ainda que sem
maiores garantias de conquistas) e uma parcela expressiva das bases,
mais radicalizada. Um último exemplo, também muito significativo, é o
das greves dos operários da construção civil nos canteiros de obras do
Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro (Comperj). Duas delas
ocorreram em 2013 e uma terceira, de maiores dimensões, atravessou mais
de 40 dias nos meses de fevereiro e março de 2014. Novamente aí a
direção do sindicato local colocou-se contrária à greve e buscou
“negociar” com as construtoras à revelia dos 28 mil grevistas, que por
mais de uma vez mantiveram a paralisação dos trabalhos após anúncios de
acordo e fim de greve por parte dos dirigentes sindicais. Os protestos
dos trabalhadores em greve envolveram fechamento de estradas e incêndio
de ônibus e logo no início do movimento, na madrugada de 6 de fevereiro,
dois trabalhadores foram feridos à tiros. Várias declarações de
envolvidos no protesto acusaram “seguranças” contratados pelo sindicato
como responsáveis pelos disparos. Agora mesmo, quando este artigo está
sendo fechado (início de maio), há outra greve em curso nas obras do
Comperj, decorrente do atraso nos salários dos trabalhadores de diversas
empresas contratadas.
Enfim, entre outras questões importantes postas por
essas greves, parece ser fundamental compreender que uma nova onda de
mobilizações grevistas, que possa recolocar a classe trabalhadora
organizada no centro do debate político nacional, dependerá: por um
lado, da capacidade das bases sindicais e dos dirigentes mais combativos
de alargarem as lutas, através de mobilizações de massas, que envolvam
os setores mais precarizados e menos organizados da classe trabalhadora,
que demonstraram seu potencial de descontentamento em junho de 2013;
por outro lado, de uma renovação do panorama sindical brasileiro, com a
substituição de burocracias esclerosadas pela colaboração de classes por
novas lideranças surgidas das greves que se enfrentam com esses
burocratas. Somente com o fortalecimento de um polo sindical combativo,
que estabeleça os laços necessários entre as frações mais formalizadas e
as mais precarizadas da classe e se disponha a romper com os métodos e
as armadilhas da estrutura sindical oficial, poderemos estar à altura do
desafio.
*Marcelo Badaró é professor da UFF.
Artigo também publicado na Revista Rubra.
Fonte: Revista Habanero
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