PICICA: “…
aqueles que, reservando à massa dos pobres os vícios próprios de todos
os mortais, dizem que o povo é completamente desregrado, que dá medo
quando não tem medo, dizem que os pobres (…) não são feitos para a
verdade. Ao contrário, a natureza é uma só e ela é comum a todos” Spinoza
Territórios da paz: territórios produtivos?
21/05/2014
Por Giuseppe Cocco
Por Giuseppe Cocco, publicado originalmente pelos Cadernos IHU (somente impresso), em 22/4/14
–
“…
aqueles que, reservando à massa dos pobres os vícios próprios de todos
os mortais, dizem que o povo é completamente desregrado, que dá medo
quando não tem medo, dizem que os pobres (…) não são feitos para a
verdade. Ao contrário, a natureza é uma só e ela é comum a todos”
Spinoza
Introdução
As
reflexões que apresentamos a seguir se articulam em três partes: uma
primeira parte diz respeito à discussão específica sobre o processo de
“pacificação” das favelas do Rio de Janeiro; a segunda propõe uma
reflexão mais teórica sobre as “jazidas” de crescimento pró-pobres,
entre capitalismo contemporâneo e milícias; a terceira parte propõe
enfim, algumas linhas de políticas de mobilização produtiva das favelas
pacificadas.
1. Transição: Paz, exceção e segurança
A
transição pode qualificar (ou desqualificar) a pacificação como uma
política que visa (ou não) aumentar a justiça social, bem nos termos da
afirmação de Amartya Sen (1992): toda procura de justiça exige um
aprofundamento da deliberação democrática e nesse sentido da liberdade1.
O
que está acontecendo na política de segurança é uma mudança do
paradigma. Contudo, ainda não se definiu qual será o próximo modelo, e
muitos caminhos possíveis estão em disputa. Grosso modo, o regime
discursivo que acompanha (e se alimenta de) a implementação das UPPs é o
seguinte: havia “territórios” (favelas ou complexos de favelas)
dominados por um “poder paralelo” e a novidade estaria no fato de o
Estado retomar (ou tomar) o controle, expulsando o comando do
narcotráfico e (re)estabelecendo o monopólio do uso da força. O episódio
da Vila Cruzeiro (Complexo do Alemão) é emblemático desse discurso:
embora naquele momento não se tratasse de uma UPP, a “ocupação” se
caracterizou pela mobilização maciça e massiva de forças (exército,
marinha, polícias) e meios (helicópteros, tanques, blindados), bem como
uma série impressionante de clichês midiáticos e políticos. Falou-se de
guerra (a manchete de O Globo
foi “O dia D”, lembrando o desembarque dos “aliados” na Normandia em
1945!); de uma guerra do “bem” contra o “mal” (na manchete do Extra
o “bem” tinha como imagem alguns policiais atirando e o “mal” era
ilustrado pela foto de dezenas de jovens traficantes fugindo da Vila
Cruzeiro). Em outro jornal, os mesmos eram adjetivados de “baratas”
(sic). Falou-se enfim de reconquista do território, o que foi
simbolizado pela cerimônia de hasteamento da bandeira nacional (que se
tornaria rotina nas ocupações seguintes). Trata-se de um regime
discursivo, para além das diferenças de tons, fundamentalmente
consensual e que consiste na aplicação à questão da violência nas
favelas do paradigma clássico (liberal) da teoria política. Como ironiza
Adair Rocha, chega a parecer que se queira “levar a ‘civilização’ para a
favela”. Ou seja, as favelas são tratadas como se constituíssem um
“estado de natureza”, um “estado de selvageria”. As favelas (e
territórios aparentados) se caracterizariam por uma ausência, a ausência
do Estado. Por Consequentemente, sem monopólio estatal do uso da força,
esses territórios estariam (ou “estavam”) na situação mítica da “guerra
de todos contra todos”. Dito de outra maneira, as favelas ocupadas
(e/ou a serem ocupadas) seriam, do ponto de vista institucional e
político, realidades “vazias” (no plano da presença do Estado) e
totalmente negativas (no plano das formas institucionais e sociais que
as caracterizariam e se resumiriam à barbárie dos comandos e dos
soldados do tráfico e, mais em geral, do crime e seu “poder paralelo”).
Enfim, estaríamos assistindo “à chegada da república” nas favelas2.
Sem
entrar no mérito e sem pretender uma avaliação positiva ou negativa das
externalidades desse regime discursivo, precisamos logo dizer que o
próprio processo de implementação da nova política de segurança (a
“pacificação”) nos diz que ele é falso. Dizer que é um regime
discursivo inadequado (e, portanto, falso) não significa “condenar” as
UPPs, mas indicar que esse discurso pode paradoxalmente construir mais
obstáculos do que apoios à consolidação dessa política tão inovadora.
1.1 A reorganização da presença de uma ausência
Trata-se
de um discurso falso com relação ao papel das forças de segurança do
Estado. Sem querer ir muito longe na reflexão, podemos ficar na própria
evolução do episódio cardinal constituído pela ocupação
ultra-midiatizada do Complexo do Alemão: um ano depois, não sobrou
(quase) nenhum dos membros das forças do Estado que protagonizaram
aquela operação de “desembarque do bem”, a não ser o Secretário de
Segurança (José Mariano Beltrame, que inclusive não é carioca). Aliás, o
tal do “bem” que estava chegando apareceu – com base nas operações da
Polícia Federal – como sendo uma parte do… “mal”3.
Episódio
emblemático disso foi a prisão pela PF de policiais cariocas envolvidos
nas operações no Complexo do Alemão de 2010 e de 2007, por ocasião dos
preparativos para o PAN. Na época, a operação policial tinha mobilizado
1350 agentes e matado dezenove pessoas4.
A figura de um policial nos dá uma imagem adequada do trágico paradoxo
em que mergulham os discursos sobre segurança no Rio de Janeiro: em
junho de 2007 o principal jornal do Rio de Janeiro dedicava a este
policial matéria de página inteira, estampando duas fotos nas quais ele
aparecia uniformizado e fumando glamurosamente um charuto depois da
“batalha”. O editorial do mesmo jornal tinha como título “Vitória
policial”. O conteúdo da vitória foram dezessete “autos de resistência”,
ou seja, dezessete mortes de supostos traficantes, comemoradas como se
fosse jogo de futebol: “não há registro de uma ação policial no Rio de
tamanha dimensão e com resultados à primeira vista tão positivos”. O
editorial também expressa a esperança de “que a operação inaugure um estilo de atuação policial(…)”5.
É com essa legitimidade que o mesmo policial e a mesma polícia foram
afirmando seu “estilo” em 2010, no “dia D”, da guerra do “bem contra o
mal”, inicialmente na Vila Cruzeiro e depois no Complexo do Alemão.
Porém, no dia 12 de fevereiro de 2011, o mesmo jornal publica a foto do
mesmo policial. Desta vez numa página interna, são listados os crimes e
delitos dos quais é acusado, boa parte deles tendo acontecido durante a
midiática ocupação do Alemão, sob os olhos das câmeras de TV do mundo
todo. Desta vez o editorial consiste em um sóbrio e prudente comentário
sobre a “crise policial” e a “banda podre da polícia”6.
Não cabe nenhuma autocrítica por ter glamurizado e legitimado a prática
do roubo e do homicídio por parte dos que deveriam defender a lei. Que
tipo de cidade essa imprensa quer? Será que esqueceram os episódios
anteriores? Como aqueles que acompanharam a “Operação Rio” do exército
em 1994: Juliana Resende, jornalista de OEstado de São Paulo,
relata o massacre, com requintes de crueldade e sadismo, de treze
pessoas, durante invasão policial no dia 13 de outubro de 1994 no
Complexo do Alemão, dias antes de Operação Rio7.
Da mesma jornalista e sempre no complexo do Alemão, temos mais um
relato sobre outra chacina policial no dia 8 de maio de 1995, quando
quatorze pessoas foram mortas – a maioria com tiros na cabeça, como
anteriormente – disparados por quinze policiais civis8.
Não interessa aqui discutir a elegância com a qual a imprensa se
“auto-absolve”, mas a constatação evidente de que o regime discursivo
que ela produz e veicula sobre a questão da segurança no Rio (e no
Brasil) é – muito simplesmente – falso e tem impacto nefasto sobre a
própria segurança9.
Voltando
à nossa preocupação inicial, esse episódio nos mostra que a pacificação
não diz respeito ao preenchimento de uma “ausência” por uma “presença”,
mas a uma reorganização dos modos e dos sujeitos da presença de
uma ausência que se tornou obsoleta e inadequada. De outra maneira,
diremos que a pacificação é a face mais visível – e talvez mais
importante no curto prazo – de uma reorganização do Estado e
particularmente de suas forças policiais diante da emergência de uma
nova realidade sócio-econômica. Reorganização que está longe de se
resumir a uma medida administrativa, pois se apresenta como um processo
complexo e extremamente conflituoso dentro da própria instituição
policial. Os alertas lançados pelo Secretário de Segurança sobre a
necessidade de as UPPs serem acompanhadas por políticas complementares
mostram que mesmo a presença “renovada” (pelos novos contingentes de
“policiais novos” que compõem a Polícia Pacificadora) corre o risco de
vir a ser homologada pelas práticas que está tentando debelar.
Paradoxalmente, o que estava ausente (e continua estando) é a cidadania
das populações pobres. A duração e o conteúdo da paz dependerá da
reversão ou não desse quadro.
A
presença do Estado nos bolsões de exclusão que são as favelas era (e
continua sendo) caracterizada por um objetivo de regulação norteada pela
expectativa de um roteiro de “inclusão”. Quanto mais essa inclusão
demorava a se objetivar, nem que fosse no plano de uma possibilidade
futura, mais a regulação dos favelados (dos “pobres”, moradores dos
bairros “subnormais”, como define o IBGE) ficava pura e simplesmente
delegada à Polícia e aos próprios favelados. Por um lado, os pobres
multiplicaram suas táticas e estratégias de resistência e de produção (a
começar pela auto-construção de suas moradias e de seus espaços
urbanos). Pelo outro, a presença estatal (das diferentes polícias) foi
“tomando conta” dos negócios. Quanto mais precários, informais,
ilícitos, ilegais e até criminais os negócios se tornavam nesses bolsões
de exclusão, mais sua regulação institucional e econômica tornava-se
uma atividade policial10.
Contudo, esta dimensão policial adquiriu níveis econômicos de
penetração e consolidação proporcionais aos níveis de violência e
arbítrio delegados às policias. O que havia de “paralelo” não era o
poder dos narcotraficantes (um poder bem miserável, pois eles nem têm
para onde fugir, como demonstrou o recente episódio da captura do
“chefão” da Rocinha, o Nem), mas o modo de funcionamento das polícias,
inclusive de sua hierarquia (como as diferentes operações da Polícia
Federal e os desdobramentos do assassinato da juíza Accioli mostraram). A
base desse poder – paralelo mas interno
ao Estado – foi (e continua sendo em grande medida) o “direito de vida e
de morte” sobre os pobres (cuja definição legal é “auto de
resistência). Enquanto a Polícia puder justificar a morte de um pobre de
maneira administrativa (quer dizer decidindo administrativamente que
era traficante, marginal ou mais simplesmente que se encontrava no
caminho de uma das muitas “balas perdidas”) esse poder irá se
reproduzindo e o pobre será Homo Sacer,
aquela figura ambígua do “sagrado” no Direito Romano. Relembrando
Maquiavel, o homem “sagrado” é aquele que pode ser morto, porém não
sacrificado; o pobre pode ser morto, mas sem passar por um tribunal. A
ambiguidade da figura jurídica do Direito Romano se revela no paradoxo
da condição do “pobre” no Rio de Janeiro: protegido pela Constituição
(que não prevê a “pena de morte” e contem o ECA) e pelas Convenções
internacionais sobre Direitos Humanos, ele é mesmo assim assassinado e
até torturado sumariamente, uma realidade que já não encontramos apenas
nas nuas estatísticas sobre homicídios e autos de resistência, mas
também na estética cinematográfica de sucesso nacional e internacional,
em filmes como Tropa de Elite 1 e 2 ou Cidade de Deus11.
José Cláudio Alves fala de uma “cultura que, de um lado, é homicida e,
de outro, é suicida: a polícia que mais mata é também a que mais morre”.12
Resumindo,
podemos dizer que a política de pacificação não é o fato da
“intervenção” das forças do Estado onde elas não estavam presentes, mas
de uma reorganização dessas mesmas forças, uma reorganização que
passa pela pacificação. Dizer isso não diz respeito (apenas) a uma
preocupação moral ou política, mas ao fato de enxergar com clareza que o
maior desafio da consolidação (em geral fala-se de “sustentabilidade”)
dessa política depende do sucesso dessa reorganização, sabendo que a
condição de sua duração é mesmo a paz.
1.2 Cidadania e “favelania”
Como
já foi dito, o regime discursivo sobre a não-presença do Estado nas
favelas é falso em relação às questões da segurança (presença e/ou
ausência das forças de Polícia na afirmação do “monopólio estatal da
força”), mas também no que diz respeito à situação social e
institucional dos territórios que estão sendo “ocupados”. Dizer que é
falsonão significa estigmatizar automaticamente todo tipo de discurso
deste tipo. Pelo contrário, por falso que seja, esse regime discursivo é
fortemente hegemônico e não usar seu registro implica aceitar um certo
grau de “marginalidade” por parte de quem desrespeita essa hegemonia.
Ter o cuidado de observar esse tipo de constrangimento não significa
relativizar a crítica, mas afirmar que as dimensões quase consensuais
deste regime não podem ser usadas como base para a sua aceitação na
reflexão sobre os desafios para a inovação e democratização das
políticas junto às favelas e, mais em geral, junto aos pobres.
Obviamente,
é pleonástico lembrar que há muita gente morando nas favelas para dizer
que não existe nenhum “vazio”. Contudo, as favelas são enxergadas como
sendo, nas palavras de Adair Rocha (2005), um “não-lugar da cidade”.13
Mas, como o próprio autor lembra, nas favelas tampouco há vazio
institucional. O fato de as instituições não serem formais e/ou legais
não significa que não existam e que não tenham sua legitimidade. Uma
governança pode existir e ser ela mesma regressiva ou opressiva. O
desafio não é, pois, alcançar qualquer nível de governança, mas saber
qual á a governança “boa”. Não é pouca coisa dizer isso. As boas
práticas das agências internacionais de fomento implicam critérios e
indicadores (muitas vezes quantitativos) que respondem a lógicas
oriundas das ideias (ideologias) que essas instituições mobilizam
(individualismo, iniciativa privada, accountability)
a partir de um determinado corpus burocrático e técnico (com sua
economia política). Assim, o que interessa é o “corpus” mobilizado, ou
seja, “quem” define os critérios de implementação e eficácia das
instâncias de governança da pacificação. Trata-se, portanto, de saber se
ela (a pacificação) é função do aprofundamento da democratização ou se,
ao contrário, em nome dela, é a participação democrática que será
“sacrificada”.
É
evidente que a pacificação e a formalização se sobrepõem a uma camada
de instituições já existentes. O Fórum da UPP dos Morros da Mangueira e
do Telégrafo (em 18 de novembro de 2011) oferece um exemplo bem simples.
Depois das várias falas mais ou menos institucionais, lá pelo final, um
jovem tomou a palavra e usou uma metáfora bem explicita: “Se eu for na
Prefeitura, tenho que pedir permissão para falar. Mas aqui o BOPE vem,
não pede permissão para ninguém e abre uma rua que sempre ficou fechada”
e emendou: “é preciso falar com a associação, saber o que a gente faz
aqui, quais são as nossas regras”. Adair Rocha enfatiza a necessidade de
se respeitar “a história de organização, de criação e resistência de
tantas décadas pelos moradores (…) que dão vida pra Rocinha e selo pro
Rio”14.
As dificuldades de leitura e homologação desta institucionalidade de
fato (o jurista Roberto Lyra Filho falava de “direito achado na rua”)
são muitas vezes resolvidas pelos responsáveis políticos e até pelos
pesquisadores pela emissão de dúvidas ou outras críticas quanto a sua
representatividade. Como se esses problemas não atravessassem toda forma
de representação, inclusive aquelas mais formais e legais que existem
(ou que podemos imaginar).
Como não lembrar a criminalização consensual que foi feita do movimento conhecido como “favelania”, nos idos de 2000?! “Manifestação de favelados põe PM do Rio em alerta” podíamos ler na manchete do Jornal do Brasil de
29 de agosto de 2000. No mesmo dia, o então Secretário de Segurança do
Estado do Rio de Janeiro tinha espaço para escrever uma coluna cujo
tiítulo era: “Manifestar para quê?”, onde podíamos ler que “(…) os
moradores das comunidades de favelas não precisam de agitações com
objetivos pouco definidos, mas da presença cada vez mais constante da
proteção (sic) do poder público” (Jornal do Brasil, 29/08/2000,
p. 21). Não é de democracia que se precisa, é de “mais” poder público!
No mesmo dia, o diário mais difusode maior difusão do Rio publicava um
artigo com titulo ainda mais extravagante (do ponto de vista do
democrático direito de manifestar): “PM estará de prontidão para evitar
badernano ato marcado para hoje”.
Manifestação
de pobres é “baderna” e podemos estar tranquilos, pois “filmagens
ajudarão polícia a identificar participação de traficantes” (O Globo,
29/08/2000). Rumba, o líder do Jacarezinho (que aparece em foto com o
secretário Josias Quintal), acabará tendo problemas judiciários. A mesma
imprensa comemorou o fracasso da tentativa democrática, base de
qualquer horizonte de governança: “Manifestação convocada por líderes de
favelas reúne apenas 400 no Centro”. Nisso, o jornal se apóia na
declaração do Secretário de Segurança que “assiste a passeata de seu
gabinete e diz que ato foi um fiasco”. O próprio jornal não pode sonegar
a informação (embora coloque em caixa bem baixa o subtítulo) de que a
tal passeata era para “(…) lembrar os sete anos de Vigário Geral” (O Globo,
30/08/2000). A passeata é associada a à baderna, mas a chacina de
moradores realizada por policiais tem apenas um nome que continua
estigmatizando a favela onde aconteceu. Quando falamos de governança não
devemos esquecer a extrema atualidade deste caso ainda representativo
de como a prática da democracia não faz parte do horizonte político e
discursivo do conjunto da cidade do Rio de Janeiro15.
Da
mesma maneira que se admite tranquilamente que o Estado precisa de
operações de guerra (de baixa intensidade, mas experimentadas no Haiti)
para expulsar um suposto “poder paralelo”, acredita-se inadmissível a
existência de negociações entre as realidades institucionais dos
moradores e aquelas do tráfico que – em articulação com forças públicas
(da polícia) –constituíram aquele território como base operacional (para
o atacado e o varejo do comércio de drogas e outras atividades ilegais e
até criminais). Mas não se trata apenas disso. Sabe-se que nas favelas
há um dinâmico mercado imobiliário e de aluguel e que a legitimidade das
Associações de Moradores muitas vezes deriva do fato de elas
preencherem o papel de cartório, registrando os atos de compra e venda.
Os trabalhos de Pedro Abramo confirmam não apenas a vitalidade desse
mercado imobiliário dentro das favelas, mas também a interdependência
entre esse mercado interno e aquele do entorno. Por sua vez, a pesquisa
histórica e jurídica de Rafael Soares Gonçalves nos mostra que do ponto
de vista do direito formal (da “legalidade”) nunca houve vazio na
relação com as favelas, mas políticas propositais de tolerância
precária. Uma articulação legal do “precário” com o “provisório” que,
aliás, se desdobrou por um período na classificação territorial e
funcional das favelas em úteis (aquelas situadas na Zona Norte que
deviam abrigar trabalhadores industriais e, por isso, podiam passar a
usar alvenaria); e parasitárias (as da Zona Sul, que se mantinham em
madeira por causa da precariedade jurídica que inibia os investimentos
de melhoria). Longe de estar ausente, o Estado sempre articulou tolerância e marginalização. Mesmo quando os alvarás eram concedidos, eles sempre eram títulos precários.16
Nesse
sentido, precisamos problematizar as relações entre “informalidade” e
“formalização”: haja vista o “choque de formalização” que está sendo
proposto e que implica, desde a primeira hora, “entregar deveres
(juntamente) com os direitos (segurança, propriedade etc.)”.17 Algo que devemos discutir também com relação ao processo de regularização fundiária da propriedade.
1.3 Pacificação: qual exceção?
Assim
chegamos a apreender uma das primeiras questões estratégicas colocadas
às políticas de consolidação do processo de pacificação, ou seja, a
questão da “transição”. A pacificação não é uma intervenção no vazio,
mas num pleno social, econômico e institucional e deve ser enxergada
como uma mudança de governança que, para durar e ser democrática,
precisa associar sua efetividade (a ocupação) a certo grau de
legitimidade (e vice versa). Um dos grandes desafios é, pois, o de
definir o conteúdo desta fase de transição, seu funcionamento e sua
definição. Um primeiro desdobramento diz respeito à situação paradoxal
do poder de exceção que a UPP acaba criando. Mesmo admitindo (o
que contestamos acima) a presença nas favelas de um “poder paralelo” de
exceção (o poder do “crime”), o papel das UPPs no lugar desse poder
paralelo não deixa de ser, ele também, um poder de exceção. Aliás, um
tipo de poder que ninguém sabe como substituir. Isso apareceu, por
exemplo, na proposta de definir uma “autoridade local”: há um certo
consenso sobre a situação de “anormalidade”, mas total indefinição
quanto ao caminho que pode ser trilhado para a governança das favelas
pacificadas, ou para uma governança da pacificação. As dificuldades da
UPP Social são bem emblemáticas desses impasses.
Como
“construir um novo poder?”, pergunta-se. Quem decide como se negociam
os ajustes de conduta? Quem regula, por exemplo, uma companhia de
moto-táxi num determinado morro? Quais os parâmetros da “regulação” de
um serviço de táxi por motos? Quem avalia os “incômodos” para a
vizinhança de um baile funk? É preciso ter autoridade local e/ou de
transição? Essa autoridade seria definida como? Ela é mesmo necessária? E
se for, qual seu alcance? Qual seria a melhor modelagem? É mesmo papel
da polícia pacificadora organizar bailes de debutantes, casamentos e
batizados coletivos? Trata-se de uma série de perguntas que por enquanto
não encontram resposta, a não ser na prática dos Fóruns das UPPs
promovidos pelo IPP com o mote “Vamos combinar?!”.
Parece-nos que a resposta poderia ser construída em quatro momentos (ou níveis):
(i)
– Reconhecimento do “estado de exceção”: por incrível que pareça,
encontramos uma indicação parecida com a nossa em um editorial do jornal
O Globo.
Discorrendo sobre como manter “os soldados (das UPPs) blindados contra
esperadas investidas corruptoras do tráfico e da banda podre (…)”, o
editorial afirma que “o bom gerenciamento das UPPs pressupõe mantê-los no terreno da exceção” 18.
Mas isso implica uma mudança radical do regime discursivo e assumir o
fato de que a exceção comporta dois lados:um, ruim mas já dado, com
relação ao Estado de direito (ou seja, o não respeito do Estado de
direito); um outro, que pode ser “positivo” de afirmação de uma nova
legitimidade, de uma nova governança rumo à “produção de direitos”. O
reconhecimento do estado de exceção permite colocar as políticas de
governança numa perspectiva constituinte
(que retomaremos na terceira parte deste artigo, tentando conectá-la às
dimensões constituintes dos próprios territórios produtivos).
(ii)
– Assumir todas as implicações da “presença de uma ausência”, ou seja,
da representação dentro (e com relação a) desses territórios
“intersticiais” (do ponto de vista dos direitos e da legalidade), mas
que constituíram na década de 2000 jazidas potentíssimas de crescimento e
valor: nos termos de Marcelo Neri, trata-se de jazidas que contêm alto
potencial para o desenvolvimento de políticas pró-pobres.
(iii)
– O mapeamento do “direito achado na rua”, ou seja, das formas
degovernança que já existiam(e ainda existem) para tê-las como bases de
referência para uma nova governança. Talvez seja nesse sentido que
poderemos entender as reflexões de Cezar Vasquez: “É preciso acabar com
os mitos da pós-pacificação. O primeiro é a idéia de que, sem choque de
serviços e programas sociais, os criminosos recuperarão os territórios. É
preciso inverter a equação. É o fim do controle armado e as UPPs que
possibilitam o acesso facilitam a oferta de serviços. Não são os
serviços que garantirão as UPPs, mas a liberdade por elas instalada que
abre o caminho para a melhoria nessas comunidades”.19
Duas questões se colocam aqui: o que é essa liberdade da qual fala
Vasquez? Qual pode ser a governança que pode definir “novas normas”?
Parece-nos que a resposta deve ser encontrada na “história (…) das
comunidades” e também naquilo que funciona e já está funcionando e que
pode passar, no novo marco da PAZ, para outro patamar. De maneira mais
específica, precisamos retomar o debate sobre transição do ponto de
vista da economia que já está funcionando nas favelas pacificadas,
sobretudo no que diz respeito ao processo de “formalização” e à política
tarifária que acompanha a cobrança dos serviços de eletricidade, água,
esgoto, TV e internet.
(iv)
– Problematizar as dimensões espaciais dos territórios envolvidos. Se
as favelas nunca foram um vazio, tampouco constituem uma realidade
paralela e/ou separada do conjunto metropolitano. Os temas da integração
do “morro” e do “asfalto” popularizados por Zuenir Ventura são
certamente positivos e estão na base das mudanças que levaram até as
UPPs. Mas em termos de uma análise material, tendem a colocar o problema
pelo avesso. As favelas já são integradas (ou “cerzidas”, como diz
Adair Rocha) à cidade “legal”. O que temos pela frente è o desafio de
reorganizar, redesenhar essa integração, rumo a outro tipo de
integração. Isso implica, por consequência, que um dos objetivos para as
políticas de fomento das UPPs Produtivas é a definição de uma escala
territorial adequada: (a) quando falamos da Rocinha/Vidigal falamos
necessariamente também de São Conrado, Leblon e Ipanema, por um lado, e
da Gávea, por outro; (b) quando falamos do Chapéu Mangueira, falamos –
no mínimo – também do Leme, Copacabana, Botafogo e Flamengo como um
todo. O que isso significa? Que pensar a pacificação como mudança do
paradigma de segurança simplesmente no morro (como se este fosse o
único espaço a se caracterizar pelo modo de funcionamento espúrio do
aparelho do Estado) acaba deixando de lado que esta é uma realidade de todo o território e que a mudança precisa encontrar sua métrica territorial, metropolitana.
2. As novas jazidas do capitalismo cognitivo na Sociedade Pólen
Antes
de desdobrar a reflexão sobre pacificação e favelas produtivas naquela
sobre desenvolvimento local, parece-nos fundamental atualizá-la do ponto
de vista do que seria o novo regime de acumulação, ou seja, o tipo de
capitalismo que foi se tornando hegemônico a partir do final da década
de 1970.
2.1 Territórios: o novo papel dos serviços
Parece-nos
fundamental saber em qual regime de acumulação a mobilização produtiva
dos “territórios da paz” vai se inserindo (e com quais contradições esse
mesmo regime já está lidando mundo afora). Podemos caracterizar o
capitalismo contemporâneo a partir de dois de seus grandes traços
estruturais: (a) seu “valor” é cognitivo (intangível, cultural); (b) sua
base é “uma sociedade pólen” (novo tipo de trabalho).
(a) O valor cognitivo/cultural: as jazidas de sentido estão nas favelas
Além
desses três traços estruturais, diremos também que esta economia (ou
este “regime” de acumulação) é articulado entre o local e o global por
meio de redes e, até os dias de hoje, governado por meio da expansão
exponencial do crédito (as finanças). Esse capitalismo apresenta-se
hoje, visto do Brasil, de maneira paradoxal: a crise profunda e de época
(“nada será como antes” depois da crise dos subprimes
de 2007-8e agora da dívida soberana europeia) transforma os emergentes e
o próprio Brasil na mais nova fronteira de crescimento (e acumulação)20.
As classes médias do Norte estão em curva descendente (a pobreza
aumentou de 15,1% em 2010 nos Estados Unidos, no nível mais alto nos
últimos 17 anos, para um total de 43,6 milhões de pessoas). No Brasil, é
um movimento oposto que está acontecendo: a base da pirâmide está
mostrando, usando as palavras de Marcelo Neri, seu lado brilhante. Ora,
essa fronteira de crescimento brasileira não se resume, como dizia André
Urani, ao petróleo ou mais em geral à vasta produção de commodities
da qual o Brasil é o teatro. Na realidade, anova fronteira são os
pobres e, sobretudo, os territórios metropolitanos que concentram seus
grandes contingentes: as periferias e as favelas. Os pobres que, nos
últimos anos passaram a ser chamados de Classe C e de “nova classe
média”. Assim, a TIM anuncia a expansão na banda larga, que terá como
local inaugural do serviço de Wifi
a Rocinha. Assim, encontramos na Rocinha ocupada (antes da UPP) um
panfleto de mobilização da população com base na telefonia celular da
TIM.
A
nova fronteira representada pelos pobres não é apenas uma reserva de
mercado de consumo, mas também uma reserva de “geração” (em geral
fala-se de criação, mas o termo geração me parece mais adequado). Uma
vez que a cultura é hoje a base de todo e qualquer valor, os pobres
constituem uma jazida bem mais estratégica do que se está acostumado a
aceitar. E esta não é uma especificidade brasileira: é também na
periferia de Paris que se procura pela “arte contemporânea”;21
é do bairro marginal que era SoHo que vem o bairro mais chique de Nova
York. Algo muito próximo do Projeto Bela que está em desenvolvimento no
Complexo da Maré. Encontramos outro exemplo de como a favela pode
constituir uma jazida de “sentido” na proposta de estratégia urbana para
a Rocinha apresentada pelo arquiteto Kyle Beneventi no Arch Daily. Trata-se de uma “estratégia destinada a transformar a Rocinha em uma cidade particularmente adequada a uma nova urbanidade”.22
Retornemos
ao regime de acumulação. Dissemos que estamos num regime que acumula
valor cognitivo e/ou intangível (alguns autores falam de economia do
conhecimento, outros de um capitalismo cognitivo23).
Podemos exemplificar essa definição em três níveis, a partir de três
grupos de autores-trabalhos: (i) o peso do cognitivo na composição dos
preços dos bens24; (ii) o papel crescente da economia ou classes “criativas”25 ou, mais em geral, das atividades culturais26; (iii) e finalmente o tornar-se “terciário” das economias (KALETSKY, 2010, p. 33)27:
(i)
– A economia do conhecimento ou capitalismo cognitivo não se define,
obviamente, apenas por usar o conhecimento. A mudança está no fato de
que, enquanto no capitalismo industrial produziam-se bens por meio de
conhecimento, no capitalismo contemporâneo, produz-se conhecimento por
meio de conhecimento. O valor do conhecimento antes era incorporado no
bem manufaturado. Hoje, é o bem que é, poderíamos dizer, desincorporado
no valor do conhecimento. Em vários trabalhos pioneiros, o economista
evolucionista (ou neoschumpeteriano) Enzo Rullani definiu a economia do
conhecimento a partir da descrição da composição do preço de bens
manufaturados tradicionais, por exemplo, um par de óculos, um sapato ou
uma água de toalete. Ele diz que 95% do preço que o consumidor paga é
destinado a remunerar as atividades de design, marketing, merchandising,
logística, distribuição, propaganda, gestão. Os 5% restantes são
destinados a remunerar a produção do suporte material do bem (a armação
onde serão colocadas as lentes), sendo que – cada vez mais – esta
produção material é terceirizada e muitas vezes numa cadeia de global sourcing.
Ou seja, pode ser fabricada em qualquer lugar… na China ou no Brasil.
Ao mesmo tempo, se a essa armação se junta a imagem de uma grande marca
de luxo (da haute couture parisiense por exemplo ou do prêt-à-porter de Milão), o valor do intangível pode ser multiplicado por dois. Fala-se também de mass customization,
no sentido de que hoje a tecnologia de produção permite tornar
compatível a padronização e a personalização: a personalização em massa
destrói as especificidades que diferenciavam as grandes empresas das
pequenas, mas também os países desenvolvidos dos países em
desenvolvimento, pois permitem a “redução do grau de infraestrutura
industrial convencional”.28
Para os incrédulos, o episódio da repressão de trabalho escravo em
fornecedoras paulistas da multinacional Zara será explicativo.29
(ii)
– Mas então, o que é esse valor cognitivo que não está mais embutido no
tempo de trabalho (seja esse trabalho humano ou das máquinas)? É um
valor relacional, quer dizer, cultural (e criativo neste sentido). De
maneira genérica, mas nem por isso imprecisa, podemos dizer que se trata
de “mundos”, o glamour de uma grife. No entanto, o “mundo da Nike”, por
exemplo, precisa de investimentos sui generis.
Para vender aos jovens da nova classe média e das periferias a Nike
poderá contratar Mano Brown ou a CUFA, da mesma maneira que a Nextel
fará sua propaganda com MV Bill ou Neymar, jovens de sucesso, para
adequar sua telefonia aos gostos da periferia. O banco Santander fará
sua propaganda com Junior do AfroReggae, para abrir duas agência no
Complexo do Alemão antes da pacificação30.
Esses “mundos” (modas, estilos, tecnologias, redes) dos quais estamos
falando são, na realidade, “formas de vida” e as formas de vida só se
produzem a partir de outras formas de vida. É nessa inflexão que se
inseriram uma série de contribuições sobre a “economia das
singularidades”31,
as “classes criativas” (Florida) e a economia do intangível. Muitas
vezes, tudo isso é novamente “setorializado” (fala-se então de cadeias
da indústria criativa ou de setor da economia criativa) num movimento
que integra o novo paradigma e o reduz. O valor cognitivo não é algo que
diz respeito a um determinado setor, mas ao processo de acumulação como
um todo. Assim, a cultura e a comunicação não são apenas mais
importantes em tamanho, mas porque elas passam a estar na base do valor
de qualquer bem, sendo que os bens são cada vez mais serviços: relações
(cultura!).
Em
2006, em relatório encomendado pelo governo francês podíamos ler:
“Seria errado reduzir o imaterial a determinados setores (…). Com
efeito, a lógica do imaterial (…) se difunde bem além desses setores
específicos e envolve hoje a quase totalidade das atividades econômicas”
(LÉVY e JOUYET, 2006).: É exatamente o contrário da definição de
economia criativa proposta no Plano da Secretaria da Economia Criativa
do MinC. E isso porque não estamos diante da emergência de “uma”
economia criativa, mas das dimensões culturais (e nesse sentido
criativas) da economia como um todo.32 Um bom exemplo disso seria as sandálias Havaianas, um produto commodity
(foi item de cesta básica em alguns estados do Nordeste nos anos 1980,
quando já vendia 80 milhões de pares!) que é o suporte de um valor
intangível: as praias do Rio, as cores do Brasil, as ondas do Havaí.33
A importância desse paradigma se apresenta com força no crescente peso
relativo dos intangíveis (patentes, propriedade intelectual, goodwill) nos ativos das empresas em seu conjunto.
(iii)
– Se na economia contemporânea o valor é cognitivo e intangível, sua
geração passa a depender (bem como todos os setores e segmentos de
produção) dos serviços, quer dizer da circulação (das relações, das
redes). É o que analisam os teóricos do welfare das redes ou de
um capitalismo capaz de se adaptar continuamente às “variações de
mudanças de regras, o Capitalismo 4.0”. Por isso, estatisticamente, as
economias se caracterizam por terem um setor terciário cada vez mais
importante. Junto com a terciarização vem a terceirização, ou seja, as
empresas tendem a externalizar parte crescente de sua produção ou a se
organizar pela internalização de fluxos produtivos que já existem nos
territórios.
Numa
economia terciária e terceirizada, a relação de trabalho se transforma
radicalmente. Por um lado, o trabalho se torna cada vez mais
qualificado, pelo outro ele tende a acontecer por fora da relação
salarial de tipo industrial. Essa tendência se explicita na substituição
(na tendência, no paradigma) do emprego pela empregabilidade. Mesmo o
servidor público (por exemplo, o professor universitário) precisa
sistematicamente demonstrar sua produção intelectual e esta será não
apenas avaliada em quantidade, mas em qualidade (com métodos parecidos
aos empregados pelas agências de rating que hoje tanto assustam
as grandes economias da zona do Euro e também os Estados Unidos). Ora, o
mundo da empregabilidade tem duas características: em primeiro lugar,
ele depende de investimentos em um capital de novo tipo (que será
chamado de “social”, “intelectual”, “humano”: saúde, educação, moradia,
conectividade, relações sociais); em segundo lugar, diante da crise do Welfare
(como realidade ou como projeto) e da privatização dos serviços
públicos, quem deve fazer esses investimentos é o próprio trabalhador.
Algo que se passou a fazer com base na expansão exponencial do crédito
(que chega ao ponto de substituir a criação monetária operada pelos
Bancos Centrais). Ao mesmo tempo, as redes de serviços (privatizadas)
foram se tornando as atividades mais interessantes para o processo de
acumulação. Estamos assim em meio à dinâmica da crise do capitalismo
global. Se na relação de trabalho anterior os direitos (educação, saúde,
habitação) estavam atrelados à relação salarial, hoje a inserção na
empregabilidade depende do fato de ter havido previamente uma
determinada capacidade de investimento.
O
que tem tudo isso a ver com o nosso debate sobre mobilização produtiva
dos pobres das favelas? Em primeiro lugar, ressignifica a relação entre
políticas sociais (particularmente as de distribuição de renda) e
políticas de desenvolvimento (neste caso, de mobilização produtiva) e
coloca o desafio da concepção e implementação de políticas de tipo transversal.
Em segundo lugar, implica apreender as dinâmicas dos nano, micro e
médios negócios (um sem número de empresas formalizadas em pouquíssimo
tempo) não apenas na perspectiva do empreendedorismo, mas do trabalho:
ou seja, de um trabalho que acontece de outra maneira, sem passar pela
tradicional relação salarial de tipo industrial. Por isso os custos de
transação se tornam estratégicos.
(b) A Sociedade Pólen
Sociedade Pólen constitui a metáfora adequada da transformação social atrelada ao novo regime de acumulação. Yann Moulier Boutang34
retoma o debate clássico sobre economias externas e custos de
transação. Não por acaso, na apresentação de seus artigos seminais, R.H.
Coase refere-se aos trabalhos de Meade sobre as abelhas polinizadoras
por demonstrarem que o “mercado não consegue lidar com (esse tipo) de
interações”.35
Na sociedade industrial, a fábula da cigarra e da formiga dava conta da
divisão social do trabalho e dos valores. A formiga representa o
trabalho de produção e seu valor econômico e moral. A cigarra o
não-trabalho, algo imoral. A partir do segundo pós-guerra, a cigarra
também veio a ter um papel, enquanto figura daquele consumo sem o qual a
riqueza produzida na fábrica (na relação salarial) não consegue um
mercado (uma validação social). A formiga tornou-se assim a figura do
tempo de trabalho e a cigarra aquela do tempo de lazer, sendo que os
dois tempos iam se integrando reciprocamente. A formiga fabricava o
carro dentro do chão-de-fábrica e se transformava em cigarra no ato de
comprar o carro. Contudo, nesta sequência, o processo de valorização
tinha uma direção bem precisa e, pois, uma ordem (ou uma hierarquia): a
valorização do carro (agregação de valor) acontecia dentro da fábrica
onde os investimentos eram realizados. Uma vez que o bem material saía
das portas da fábrica, ele começava a perder valor (a ser consumido!).
No
capitalismo cognitivo, o bem material se torna tendencialmente o
suporte de um valor intangível que, através da circulação, ao invés de
ser consumido, aumenta seu valor. A economia das redes teve seu
lançamento formal com o plano das Infovias do vice-presidente de
Bill Clinton, Al Gore, enquanto Robert Reich, ministro do trabalho,
falava do trabalho de manipulação de símbolos. As infovias, autoestradas
da informação, teriam que desempenhar o mesmo papel que desempenharam
no Fordismo. Só que as redes não são estradas de rolagem. As
informações, quanto mais circulam, mais adquirem sentido e valor. E isso
não diz respeito apenas a determinados setores ou níveis de
desenvolvimento. Trata-se do funcionamento de toda a economia e de toda a
sociedade, exatamente como as redes sociais vêm explicitando e
“abocanhando”.
Mas
o que é essa circulação na qual o valor dos bens se acrescenta?
Trata-se exatamente das relações de serviços (ao mesmo tempo
terciarização e terceirização). O trabalho que se torna empregabilidade é
um trabalho diferente: muito mais qualificado intelectualmente
(inclusive nos setores mais tradicionais) e totalmente relacional
(comunicativo). Podemos então usar outra metáfora, aquela da colmeia e
das abelhas. Sabemos que as abelhas têm duas atividades: elas produzem
mel e cera (dentro da colmeia) e para isso vão de flor em flor procurar o
pólen e realizar essa atividade tão fundamental para a geração vegetal
silvestre e doméstica que é a polinização (fecundação que permitirá às
flores produzir frutos, frutificar!). Para o apicultor, as colmeias são
fundamentais na medida em que produzem um excedente de mel (com relação
ao que as abelhas precisam para sua reprodução). Em um de seus
memoráveis sermões, o padre Antônio Vieira (2011) comparava as abelhas
aos escravos dos engenhos: “As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para
si” (p. 205).36
Por
sua vez, para a produção e reprodução vegetal doméstica e selvagem o
que é fundamental é a polinização. Antônio Vieira não esqueceu que são
as “flores que sustentam o mundo (e) frutificam” (ibidem, p. 138-145).
Com A diferença é que a polinização tem um impacto produtivo “n” vezes
maior (que inclui a própria produção material do mel) do que o impacto
do próprio mel. Temos aqui uma metáfora adequada, elaborada por Yann
Moulier Boutang, do que é o trabalho hoje: as atividades relacionais (o
“ir de flor em flor” equivalendo à relação de serviço) das abelhas
polinizadoras (empregáveis, empreendedoras e dotadas de um certo nível
de conectividade) são mais importantes do que o trabalho instrumental
(na colmeia) de produção material. Não porque não haja mais produção
material, mas porque esta depende duplamente das atividades imateriais:
do ponto de vista do valor (é nas relações que se produzem formas de
vida, mundos) e do ponto de vista da própria produção (é nas relações
que se produz o capital social, humano e intelectual que permite gerar o
novo tipo de trabalho, inclusive nos segmentos mais tradicionais:
tecnologia).
2.2 Territórios, Serviços e Milícias
A
mudança do paradigma de segurança está atrelada às novas relações entre
território (metrópole) e acumulação. O fenômeno das milícias pode ser
analisado numa perspectiva diferente de como é feito pela mídia e também
pelas forças políticas. Comecemos por esta segunda abordagem (as
milícias) retornando aos temas mais gerais do desenvolvimento local e da
cidade para, no final desse tópico, discutir duas variáveis
estratégicas de todo o processo: a questão da propriedade e a da
“punição”.
2.2.1 “O pulo do gato do capitalismo cognitivo37”: milícias e territórios
Muito
esquematicamente, o fenômeno das milícias no Rio de Janeiro (do qual se
começou a falar com força desde a década de 1990 e que tinha a Favela
de Rio das Pedras como caso de referência) constituiu-se numa inovação
na “economia” criminal do Rio de Janeiro. A inovação não está, como se
tende a achar, no envolvimento de setores importantes do Estado
(polícias e bombeiros) com o “crime” (basta ler os jornais e acompanhar
alguns casos mais midiáticos para saber disso) e no nível de violência
das milícias.38. Sequer
as milícias em si são uma inovação (antes, elas eram chamadas de
polícias mineiras). A inovação está em seu ciclo econômico e nos níveis
de poder – inclusive no campo da representação – que hoje as milícias
alcançam. É o ciclo econômico que faz a diferença.
A
partir de um dado momento, passou-se a falar de milícias para
caracterizar a transformação do comportamento dos segmentos do Estado
que até então operavam de maneira complementar aos poderes e interesses
econômicos de um determinado território. De uma atividade de “mineração”
(empresas e grupos de extermínio e proteção dos comerciantes, muitas
vezes extremamente violenta, como o caso da Candelária simboliza embora
infelizmente não resuma)39,
as polícias passaram aexercer negócios por conta própria. Eis a
novidade. E que tipo de atividade passaram a exercer? Por que houve essa
inflexão? Em alguns territórios, as milícias passaram a cobrar impostos
diretamente dos moradores ou por meio dos comércios (às vezes em troca
da “paz” e da expulsão do narcotráfico, outras vezes nem isso). Ou seja,
elas passaram a agir como o Estado (só que não “paralelo”, mas dentro
do Estado legal, tendo inclusive assento em seus parlamentos e passando
pelos partidos mais diferentes). Mais em geral, nos territórios, as
milícias passaram a tomar conta dos serviços, por vezes exercendo-os
diretamente: fornecimento de água (pública!), terrenos em barrancos,
vans, TV a cabo, gás, energia elétrica, moto-táxi, sem falar da
“segurança”40.
Por um lado, a própria situação das favelas pacificadas mostra que essa realidade não é especifica das milícias, mas de todos os territórios; pelo outro, sabe-se que o que a pacificação e as denúncias das milícias tornam visível não é novo: o gato
é uma instituição antiga e generalizada, eventualmente um desses
“direitos achados na rua” do qual falamos anteriormente mas também uma
dessas formas de tolerância precária. Mais uma vez, onde está a
novidade? Antes, as populações que recorriam ao gato eram de excluídos e
sem poder de compra a espera de um roteiro de integração (década
perdida nos anos 1980, fraco crescimento nos 1990). O acesso aos
serviços era do tipo Welfare State, mas de um welfare que
não existia, a não ser na forma da “bica d’água”: por um lado o Estado
era incapaz (ou não queria) de levar o bem estar; pelo outro, “tolerava”
a difusão dos serviços deixando proliferar o gato; hoje, essas
populações são incluídas: elas têm uma renda (são atravessadas pela
mobilidade ascendente da Classe C ou da Nova Classe Média). O novo
regime de acumulação – bem nos moldes da telefonia celular – passou a
incluí-los sem esperar por sua homogeneização prévia dentro da relação
salarial de tipo industrial (ou, mais em geral, de tipo formal).
Temos,
nos elementos dessa reflexão, não apenas uma indicação sobre a dimensão
econômica do processo de pacificação, mas também uma indicação sobre
política territorial (metropolitana) de dinâmicas produtivas das quais
dependem os serviços. Isto nos leva a mais duas reflexões sobre as UPPs
produtivas: a primeira indica a necessidade de se explicitar a dimensão
econômica da própria UPP e, mais em geral, do novo paradigma da
segurança da qual ela é a parte mais visível e prestigiosa; a segunda
diz respeito ao que deve ser o cerne das preocupações para as políticas
das UPPs produtivas – os “territórios” produtivos. Poderíamos dizer o
seguinte: o novo paradigma da segurança (a pacificação) já tem uma
dimensão econômica. O grande desafio é fazer com que ela se torne a mais
virtuosa e horizontal possível.
2.2.2 Cidade Partida, Cerzida, Integrada …
No
auge do ciclo ascendente da violência urbana, logo depois das chacinas
de Vigário Geral, Acari e Candelária, o tema da “Cidade Partida” se
tornou referência para um novo debate sobre o Rio. Enfatizando a
separação, Zuenir Ventura visava propor uma nova era de integração entre
o “morro” e o “asfalto”, entre a Zona Norte e a Zona Sul. Haveria uma
cidade partida e, realmente, uma parte dela partiu mesmo, indo para
outro lugar ao longo da estrada de ferro ou subindo os morros íngremes.
Essa cidade está “perdida no tempo”, exatamente como exemplificava André
Urani, dizendo que a diferença entre a Rocinha e a Gávea, embora
vizinhos, é de oitenta anos em termos de indicadores de desenvolvimento
humano: “atravessando a rua você perde treze anos de esperança de vida”
(AZIZ FILHO e ALVES FILHO, 2003).. Só que, paradoxalmente, mais uma vez
reafirmava-se o mito da marginalidade e, apesar das boas intenções, tudo
era mobilizado numa direção oposta, de generalização e confirmação da
violência não apenas como condição, mas também como (impossível)
solução. Basta lembrar que naquele momento se abria o caminho apara a
volta do exército às ruas com a “Operação Rio”.41
Luiz Antonio Machado descreve a passagem nos seguintes termos: “a
hiperpolitização da questão da segurança provocada por medidas tomadas
ainda no começo do primeiro governo Brizola (1983-1986), que foram
consideradas por parcela significativa das camadas médias como proteção
de criminosos comuns”, iria ser “a pá de cal no já enfraquecido (…)
consenso tácito que associava proteção social a direitos(s)”. A
linguagem da violência urbana se torna hegemônica.42 E a violência se generaliza novamente, confirmando o horizonte autoritário.
Como
dizia Fernando Henrique Cardoso, a marginalidade é sim um mito, mas seu
“enfeitiçamento (…) só pode dar-se porque o talismã é forte”. E o
talismã é a reprodução dentro das relações sociais e econômicas
contemporâneas das formas de dominação oriundas da escravidão. Em 1995, a
política de segurança voltava-se não para responder adequadamente ao
desafio estrutural colocado por uma violência crescente e descontrolada,
mas ao medo e ao desamparo generalizados que ela engendrava. A
resposta, sem contar o aprofundamento das relações perversas entre crime
organizado e aparelhos estatais de repressão, só fazia aumentar a
violência e o medo, numa espiral enlouquecida. A procura hipócrita por
uma solução maniqueísta que permita contar com a pressão dos pobres e ao
mesmo tempo chantagear suas formas de organização democráticas (como
vimos no caso do Favelania)
acabou entregando cada vez mais poder nas mãos de um aparelho
repressivo totalmente descontrolado. Brizola, Nilo Batista e, mais em
geral o espectro do “populismo” com suas “bicas d’água”, continuam sendo
apontados como os grandes culpados, apesar de todas as evidências
indicarem que a virada de 1994 foi desastrosa para a segurança e a
cidadania dos cariocas. Ainda hoje a imprensa relata que um dos sessenta
e cinco policiais militares presos – em um único batalhão de Caxias –
está envolvido em trinta autos de resistência!43
A
política de extermínio voltava à moda (inclusive com figuras militares
da ditadura alçadas à gestão da segurança pública) e eram instituídos
prêmios de produtividade para os policiais que acabavam incentivando a
multiplicação dos autos de resistência. A organização política do medo
chegou ao ponto de transformar os ensaios de políticas pró-pobres dos
governos Brizola (como nos Cieps, com a imposição de critérios de
direito para as práticas policiais nas favelas) nas improváveis causas
de todos os males. Marcus Faustini (2009), em seu belo Guia Afetivo da Periferia,
oferece um ponto de vista bem diferente, de alguém que estava dentro
deste embate pela vida: “Só conheci leite tipo B por causa do governo
Brizola. Antes dele era raro leite lá em casa. Um saco tipo C,
geralmente da marca CCPL, tinha que durar a semana inteira, e, para
isso, a maior parte do copo americano tinha que ser de café. A
fiscalização de minha mãe e de meu padrasto era permanente. Misturar
Claybom no café era minha saída para a situação. Ganhar o saquinho
individual de leite diariamente na Escola Estadual Euclydes da Cunha fez
o nome de Brizola circular no recreio mais do que o medo da professora
de Educação Moral e Cívica” (p. 34).44
E, já que Faustini fala de comida, por que não lembrar o que dizia
Keynes (1919) da perversidade da retórica de fazer crescer o bolo para
depois distribuir: “a virtude do bolo estava em nunca ser consumido, nem
hoje, nem no futuro” (p. 13).45
Contudo,
confirmando as dimensões paradoxais e ambíguas das políticas públicas
junto às favelas, nesse período aparecem também algumas inflexões na
direção oposta. Inflexões insuficientes em termos de escala para
constituir uma alternativa, mas que acabarão funcionando como sementes
de uma virada maior que somente agora está aparecendo. A primeira
inflexão acontece com a nova política de urbanismo e a segunda com a
criação da Secretaria Municipal do Trabalho. O protagonista foi Luiz
Paulo Conde, inicialmente secretário de urbanismo de César Maia e em
seguida Prefeito Municipal. No meio do debate sobre um “Rio que esta(va)
em plena recuperação”46
(com o planejamento estratégico importado de Barcelona), o espaço
urbano começou a ser enxergado como um espaço de produção cuja
vitalidade não mais dependia da pujança econômica geral mas da própria
mobilização das redes sociais que o desenham. Mais do que isso,
começou-se a pensar que a tradução positiva das dinâmicas
macroeconômicas (a sustentabilidade) dependia da mobilização das cidades
ou do desenvolvimento local. Nasceu assim a reurbanização dos grandes
eixos comerciais do Rio de Janeiro, com o Rio Cidade e, de maneira complementar, o Programa Favela-Bairro,
sob a direção do arquiteto Sérgio Magalhães, então Secretário Municipal
de Habitação. Quatro anos mais tarde, a criação de uma Secretaria
Municipal do Trabalho, da qual André Urani foi mentor e animador, seria
mais um passo na direção de pensar e implementar políticas de
mobilização produtiva dos territórios metropolitanos. A política de
trabalho passava a ser também um problema da metrópole. Torna-se central
sua capacidade de “cerzir” a cidadania e seus territórios.47
O
Programa Favela-Bairro visava à construção de uma cidade-integrada. Na
apresentação de suas bases metodológicas, o então prefeito escrevia: “a
moradia é um direito do cidadão; a habitação não é só casa, mas integração à estrutura urbana” e isso implica “urbanização e regularização fundiária de favelas e loteamentos de baixa renda”.48
O Programa começou em 1994, contava com apoio do BID, parceira entre o
IAB-RJ e a Prefeitura (através da então Empresa Municipal de Informática
e Planejamento IPLANRIO, hoje IPP)49.
Licia Valladares escreve: “Finalmente, os últimos anos do século XX
assistem ao reconhecimento oficial da existência das favelas pelos
poderes públicos através da Constituição de 1988, do recém-promulgado
Estatuto da Cidade e do usucapião urbano. O Programa Favela-Bairro,
comprova que erradicar e remover correspondem a políticas urbanas do passado, concordando todos quanto à necessidade de integrar as favelas ao tecido urbano” (VALLADARES, 2005, p. 120, grifos nossos)50.
A “Solução Final”, como Jaílson de Souza e Jorge Barbosa (2005) definem
“o antigo sonho da remoção”, parece ter sido abandonada (p. 45)51.
O
Favela-Bairro era um programa de pequeno alcance (apenas 50.000
moradores num universo total de 962.793 habitantes de acordo com o censo
de 1991), mas que significava a afirmação de um novo paradigma: não
mais remover, mas integrar e integrar urbanizando. “O que fazer?”
pergunta o então Presidente do IAB/RJ, Demetre Anastassakis (1996). “A
resposta rápida, óbvia é integrar. Integrar a favela na cidade
constituída, na cidade formal, torná-la um bairro sem adjetivos.
Favela-bairro. Enfrentando pelos favelados da então FAFEG o fantasma da
remoção, em uma história que tem lances de guerra e de guerrilha, o
paradigma a perseguir é o da integração” (p. 11)52.
Falando do concurso para as bases metodológicas do Programa, os
organizadores enfatizavam: “O desafio lançado (…) era grande. Integrar
as favelas e a cidade oficial deveria representar muito mais do que uma
integração física que permitisse a troca e a convivência harmônica (e
não mais segregada) entre moradores de ambos os ‘lados’ da cidade” (DUARTE, SILVA e BRASILEIRO, 1996, p.13, os grifos são nossos).53 Trata-se, pois, de integrar, “fundir os lados desta enorme moeda multifacetada que é o Rio de Janeiro” (ibidem, p. 184)..
A
mudança de paradigma se anuncia, mas o programa Favela-Bairro também
era oriundo do mito da marginalidade renovado pelo discurso da “cidade
partida”. Assim, em sua apresentação, o então Secretário Municipal de
Habitação escreve: “por meio dele, objetivava-se reverter um quadro de
dicotomia crescente entre a cidade formal/legal e a informal/dos
excluídos”. Podemos observar que Sérgio Magalhães evita desdobrar a
dicotomia formal versus informal nos termos de um dualismo legal versus
ilegal, e este será o recorte do Favela-Bairro. Como veremos, não se
trata de uma pequena nuance; pelo contrário, em torno dela se jogam
muitas coisas. Mas o mito da marginalidade continua em ação na fórmula
da cidade partida cujos dois lados, a cidade formal e a cidade informal,
precisam ser integrados. No projeto da “Equipe 117”, uma das equipes
premiadas, podia-se ler: “hoje há uma urgência de uma busca pela
aproximação nesta ‘cidade partida’, mas guardando as diferenças e
interpretando as singularidades culturais, num exercício de tolerância”
(DUARTE, SILVA e BRASILEIRO, 1996, p. 122). A favela é o informal, o
provisório e até o ilegal. No primeiro projeto premiado podemos ler essa
definição: “As favelas consistem em aglomerações de casas construídas
em invasões ilegais de terrenos públicos ou privados não urbanizados” (ibidem, p. 18).
Contudo, reconhece-se que “essa apropriação aleatória de espaços urbanos” acabou resultando em “mecanismos sociais muito complexos (…)” (idem, grifo nosso). A “Equipe 108” escreve que se “trata de planejar a partir de espaços já construídos
que (…) representam (…) tipologias próprias (…)” (ibidem, p. 54, grifos
nossos). Com efeito, afirma-se nas conclusões, que as favelas são hoje
já consolidadas no quadro urbano, mas continuam partidas: teriam até se
transformado “em verdadeiras cidades auto-suficientes”, cidades
informais que “desenvolveram engrenagens complexas, dinâmicas sociais
particulares, linguagem espacial peculiar e mecanismos próprios de
economia, poder e dominação”.
Enfim,
como postou José Luiz Lima na página sobre Favelas que ele anima no
Facebook, podemos concluir dizendo que “a cidade do RJ é uma cidade em
processo de construção, porém se será integrada, partida ou cerzida,
isso vai depender de com quais atores sociais se quer compartilhar a
cidade”.54
-
A virada e suas trilhas: propriedade e punição
Uma
das perspectivas para pensar o futuro das favelas, do processo de
pacificação e da mobilização produtiva do Rio de Janeiro, diz respeito à
economia política dos territórios metropolitanos. Quando falamos de
economia, estamos na realidade falando de instituições, de leis, de
normas: controle do território e das redes, gestão dos serviços,
formalidade e informalidade, estatuto da propriedade e, particularmente, da propriedade fundiária.
Logo, aparecem duas dimensões fundamentais para apreendermos a
“economia política” das favelas e da pacificação: (i) a questão da
propriedade e a (ii) questão da racionalidade econômica do “crime” e,
portanto, a questão da punição.
(i) A questão da propriedade
O economista José Márcio Camargo, num seminário organizado pelo Observatório de Favelas,
tentou explicitar seu ponto de vista sobre as favelas. Essa abordagem
implica, segundo ele, um “alto grau de racionalidade” e isso leva a
formular a pergunta sobre “por quê” existe favela? À primeira pergunta
segue outra: “por que em alguns lugares têm mais favelas do que
outros?”. As perguntas permitem reformular a questão geral das favelas:
por um lado, é óbvio que “existe favela porque as pessoas não têm poder
aquisitivo para morar em outro lugar”; pelo outro isso não explica por
que existem favelas na Zona Sul e não apenas nas zonas mais pobres da
cidade. Camargo chega assim à segunda explicação: “(…) existem favelas
na cidade (por causa) do tipo de regulação que existe nelas” e “a regulação mais importante em uma economia é o direito de propriedade” (CAMARGO, 2005, p. 127).55
Camargo
explicita aqui uma definição corajosa do debate e dos desafios, em
particular quando se fala de “regularização fundiária nas favelas”. As
favelas, sobretudo aquelas nos morros da Zona Sul, foram construídas por
pessoas sem poder aquisitivo e em espaços públicos “mal” regulados: “Se
a definição de direito de propriedade (do ar, da água, da terra) for
explicitada, se saberá quem vai pagar e quem vai receber para a
utilização do bem público. Se não for explicitada, o bem público vai
continuar a ser utilizado por meio de um direito de propriedade
implicitamente definido. Dessa forma, o bem público vai ser
superutilizado, até provocar alguma espécie de desconforto” (ibidem, p.
128).. Pois bem, depois das perguntas, duas afirmações: (a) quando o
direito de propriedade não é bem delimitado, ele passa a ser definido
pela “lei do mais forte”; (b) o “problema” das favelas passa a ser
exatamente esse, “a inexistência do direito à propriedade” (idem)..
Não cabe aqui a discussão de fundo que essas afirmações implicariam.56
Nos limitaremos a observar que a economia da “grilagem” no Brasil pode
ser considerada uma anomalia com relação aos países econômica e
juridicamente mais avançados, mas também podemos enxergar nela a face
explícita e atual que o direito de propriedade apenas esconde (e que
reaparece explicitamente nas crises e nas guerras: por exemplo, quando,
no dia de lançamento das operações militares francesas para estabelecer a
“democracia” na Líbia, o Conselho Nacional de Transição assina um
acordo com o governo francês destinando 35% do petróleo líbio à mesma
França).57
O que nos interessa aqui é que, com a pacificação, tende-se a mudar as
relações de força e as formas de regulação. Camargo é bastante
explícito, trata-se de definir e aplicar uma regulação que permita uma
“valorização adequada” daqueles territórios (hoje ocupados por favelas)
para que a economia da favela não possa se reproduzir. Os direitos de
propriedade com os quais ele está preocupado não são os dos favelados:
“(…) o morro tem dono e o dono é a cidade, somos todos nós”
(CAMARGO, 2005, p. 129).. Fica-se sem saber quem é “a” cidade e quem
somos esses “nós”. Mas a questão está colocada corretamente e todo o
mundo tem que levar isso em conta (sobretudo os favelados): um dos
efeitos da pacificação (sem contar a regularização fundiária que está
avançando, embora muito devagar) é a mudança de regulação por meio de um
processo de valorização que não é mais atravessado pelo mecanismos
ambíguos do governo da precariedade, da autoconstrução da moradia
popular pelos pobres (como define Sérgio Magalhães), pelos modos
ambíguos de controle do território pela economia do tráfico e pela
potência dos pobres (no incrível trabalho de construção em condições
técnicas e ambientais extremamente desfavoráveis).
José
Marcio Camargo está preocupado com o efeito paradoxal da lei de
proteção ambiental que, vetando a construção formal acima da cota 100,
desvalorizou aquelas terras tornando-as ocupáveis pelos pobres. O debate
atual (na virada de 2012 para 2013) nos mostra quanto a dita
valorização pelo mercado (a racionalidade) fica condicionada (arbitrada)
pela política, ou seja, pelas benditas relações de força. Temos dois
exemplos que não poderiam ser mais nítidos com todas suas implicações:
as parcerias públicos privadas negociadas pela prefeito Eduardo Paes –
que entregam o Parque Ecológico e a Área de Proteção Ambiental de Marapendi (na Barra da Tijuca) para empresas imobiliárias – apareceram em suas dimensões espúrias pelo papel de free rider
que a Câmara dos Vereadores decidiu desempenhar, aproveitando a
aprovação do Pacote Olímpico, “(…) no apagar das luzes da atual
legislatura”, para fazer passar emendas que “valorizaram em mais de 4
bilhões as propriedades de empresários vizinhos ao Parque Olímpico e ao
campo de golfe”.58 Contraditoriamente, numa reportagem do canal SportTV sobre
as obras olímpicas, o prefeito por um lado justifica a remoção
anunciada da Favela da Vila Autódromo por estar em área de proteção
ambiental, e por outro esclarece que o projeto de construção privada (de
um campo de golfe) dentro da mesma área de proteção ambiental
justifica-se por esta região encontrar-se “degradada”.
O segundo exemplo interessante é a polêmica sobre o Píer em Y
que a Companhia Docas do Rio de Janeiro quer construir na região
portuária (parte do projeto “Porto Maravilha”), para que vários
transatlânticos possam aportar ao mesmo tempo trazendo e embarcando
milhares de turistas – de navios de cruzeiro. O Jornal O Globo
está conduzindo uma verdadeira campanha de imprensa contra o que chama
de “horror” urbanístico, pois o “paredão” constituído pelos mega navios
obstruiria a linha do horizonte do novo porto e sobretudo dos museus
(Museu do Mar e o Museu do Amanhã). Praticamente, não há espaço para
vozes que defendam o Píer em Y nessa sequência de artigos (o projeto do
píer ficou órfão, sem pai nem mãe). O que está em jogo, são bens
públicos como a Baía de Guanabara onde o Píer deveria ser construído, a
paisagem, o interesse por um certo tipo de indústria turística (entre os
cruzeiros e as baladas urbanas) e os museus59. “Quanto vale a paisagem?”60,
pergunta-se. Só que aqui a ameaça não vem de uma favela, mas de um
poderoso segmento da indústria turística e do governo federal (que
controla as Docas). Difícil dizer que nesses casos a regulação da
propriedade responda a normas objetivas e o mercado a uma racionalidade
abstrata e imparcial. Pelo contrário, a valorização aparece como estando
totalmente atrelada a elementos de concentração do poder econômico, de
limitação do debate democrático que nos remetem, direta ou indiretamente
às relações de força, às concessões públicas de TV e rádios. Curioso,
pois, que não estejamos falando de favelas. Ainda mais curioso, como
veremos, que todos esses debates passem, eventualmente “por cima”, pelas
favelas: numa cabine de teleférico.
As
ideias liberais e republicanas continuam “fora do lugar” e a “lei do
mais forte” tem caminhos que as trilhas da democracia desconhecem.
(ii) Racionalidade econômica do crime e punição
Como
dissemos, a segunda vertente pela qual passa a ideia de usar a
racionalidade econômica para enfrentar a questão das favelas é aquela do
“crime”, e isto com base em dois axiomas: (a) o nível de violência
depende do nível de valorização (ou desvalorização) do elemento
punitivo; (b) no crime há elementos de racionalidade econômica, no
sentido de que os “criminosos”, como qualquer outro agente econômico,
agem com base na avaliação sobre os benefícios líquidos de suas ações.
Com base nesses axiomas, Sérgio Guimarães Ferreira expõe uma posição
surpreendente: “Nos últimos 30 anos predominou entre os formuladores de
política, no Estado do Rio de Janeiro, uma agenda que partia do
diagnóstico de que a violência decorria da estagnação econômica e era
exclusivamente causada pela pobreza e pela desigualdade” (FERREIRA,
2011, p.73).61
O que quer dizer o ex-vice-secretário de Assistência Social e Direitos
Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro? Como ele mesmo explica, o
problema do Rio era “uma desvalorização do elemento punitivo,
como se o crime fosse inelástico à punição e não houvesse no processo
de decisão do criminoso qualquer resquício de racionalidade que fizesse
comparar benefícios líquidos entre cometer e não cometer um crime”
(idem).. Assim, por um lado, essa abordagem pensa que as favelas,
“embora pobres, não são caracterizadas pela pobreza” e, pelo outro, “o
que hoje claramente diferencia as favelas do resto da cidade, pobre ou rica, é o fato de serem exatamente o que são: favelas” (ibidem, p. 93). “E as favelas somente se definem por serem ilegais, informais, desreguladas enfim, fora da lei.
Sendo que a cidade não pode tolerar “um sistema regulatório dual, (…) o
próximo passo das UPPs é um choque de ordem (…)” (idem).. O interesse
dessa abordagem está no fato de que talvez ela represente o núcleo duro
que está na base da concepção estratégica das UPPs: “O que pode ser
discutido é quais regras de transição devem ser instituídas (ibidem, p.
95).. Ou seja, o norte está definido e, no fundo, não há nada a
discutir.
Uma
primeira objeção poderia contestar as evidências materiais de um dos
axiomas sobre os quais se organiza a ideia de que, a partir da década de
1980, não se valorizou adequadamente a variável “punição” (tudo indica
que a situação é exatamente oposta: é o excesso de punição dos pobres
que acabou fazendo sair o tiro pela culatra, posto que os agentes aos
quais foi entregue esse trabalho decidiram tomar conta do negócio. Ter
chamado essas polícias mineiras e grupos de extermínio não exime a
imprensa de suas responsabilidades: a banalização dos atos de bravura,
das “vitórias” com dezenas de mortes, dos autos de resistência.
Por
trás disso temos a vitalidade do mito da marginalidade e a ideia de que
a única informalidade e ilegalidade economicamente irracional seria
aquela das favelas. Ora, é só pegar o debate sobre critérios (públicos)
de determinação dos impostos para ver quanto tudo isso poderia ser
objeto de debate democrático. Por exemplo, o governo italiano determinou
recentemente que o Fisco crie um “sofisticado mecanismo de estimação de
renda” dos contribuintes a partir do estilo de vida que levam (carros,
casas, barcos de lazer etc.) com o propósito de “coibir a sonegação”. Ou
seja, a ilegalidade depende, por um lado, da aplicação da lei e, pelo
outro, da formulação da lei. Claro, dizer que a ilegalidade não
específica da favela não significa “justificar” que nada aconteça com
relação a ela na favela. Mas apontar para esse exemplo de mudança no
critério de repressão da sonegação fiscal nos mostra que, mesmo um
governo técnico, mexe com relações de forças. Tudo depende, obviamente
do crivo político pelo qual a tal racionalidade econômica passará.62
Porém, a parte mais interessante da abordagem de Sérgio Ferreira está na referência dogmática ao economista Gary Becker.63
Com isso, voltamos a mesma perspectiva mobilizada por José Márcio
Camargo sobre a questão da propriedade. Ou seja, estamos sempre falando
de “externalidades” e, nessa medida, de regras que definem e/ou
reconhecem a utilidade econômica delas. Ora, é preciso ver que nessas
abordagens (da teoria econômica do crime) o economista “rejeita todo
tipo de julgamento moral” e se limita a distinguir as atividades
criminais das atividades legítimas com base no único critério do tipo de
risco que elas comportam.64
Ou seja, a atividade criminal é aquela que faz correr o risco de ser
preso (e condenado) a quem a pratica, e a racionalidade do crime seria
essa mesma. A punição é o modo de evitar as externalidades negativas de
determinados atos. Então, a verdadeira questão de Becker em seu artigo
seminal não é como eliminar o crime, mas “quantos crimes devem ser
permitidos? E quantos delinquentes devem permanecer impunes? (FOUCAULT,
2004, p. 262 e ss.).65 Isto depende, portanto, de uma determinação social que nos leva de volta à questão da democracia.
Acompanhando
Becker, o nível de legalidade ou de ilegalidade depende da tolerância
da sociedade com esses comportamentos (suas externalidades) e isso
mostra bem como o Rio pode aguentar tamanho nível de violência, exclusão
e segregação e ainda pedir mais punição. Ou seja, para Becker, não se
trata de querer eliminar o crime, mas pensar em um certo equilíbrio
entre oferta e procura do crime, e isto poderia implicar uma determinada
flexibilização e/ou adaptação da proibição das drogas (ibidem, p. 261).
2.3 A LageLaje, o “Píer em Y” e o Teleférico
Jaílson
de Souza e Jorge Barbosa apresentam um caso bem interessante do que
eles definem como um planejamento e uma urbanização pouco democráticos:
“Um bom exemplo da lógica autoritária que norteia a intervenção estatal é
a construção de três conjuntos habitacionais na Favela da Maré, durante
a década de 1990 – todos sem lajes. Como qualquer morador da
periferia sabe, a existência da laje nas casas é um ativo social e
econômico importante. A laje é também a principal herança, em geral, que
os pais podem deixar aos filhos, além de funcionar como área de lazer,
espaço de reunião da família e dos amigos. No entanto, todos os
assentamentos feitos na Maré ignoraram essa estratégia. Pelo contrário,
os arquitetos elaboraram seus projetos de tal forma que qualquer
alteração seria impossível, Eram suas ‘obras’, e não o espaço de direito
dos seus ocupantes” (SOUZA e BARBOSA, 2005, p. 65)..
Marília
Pastuk relata que, no Cantagalo, “os moradores estão apreensivos com
relação a tais procedimentos (PAC, Morar Carioca…) porque não sabem ao
certo que obras serão essas e quais implicações traduzirão” (PASTUK et
al., 2012).66
Um morador declara: “A UPP não resolveu os problemas (…) porque vem com
tudo pronto (…) fora da realidade (…)” (ibidem, p. 31).. Em linha
geral, houve uma atuação da Secretaria Municipal de Habitação e um
decreto do prefeito para “limitar horizontalmente e verticalmente a
expansão das favelas”. Isso “(…) tem sido um motivo de acirradas
celeumas entre moradores locais e entre estes e representantes do poder
público”. Mais uma vez, aparecem sinais de autoritarismo e total falta
de participação: os moradores, “além de não saberem exatamente quais as
implicações decorrentes de tais decretos, só tomaram conhecimento da
existência dos mesmos quando fiscais começaram a circular nos
territórios embargando obras realizadas sem autorização e distribuindo
‘autos de interdição’ das casas localizadas pelo decreto como sendo de
risco” (ibidem, p. 34-35)..
Será
que está se repetindo o que Sergio Magalhães disse em certo momento: “O
que nós temos experimentado, nesse mais de um século de república, é
uma absoluta falta de democracia
em relação à cidade, em relação à habitação do pobre. A república
brasileira começou e a primeira grande obra do primeiro prefeito eleito,
Barata Ribeiro, foi condenar os cortiços que existiam no Rio de
Janeiro. E no final do século XX, os cortiços eram a moradia dos pobres”
(SOUZA e BARBOSA, 2005, p. 131).. Assim, no Brasil o modernismo acabou
se tornando uma idéia “fora do lugar” que arrasou o lugar: de “cima para
baixo”, passando por cima do tecido urbano construído: “… só a cidade
modernista poderia ser uma boa cidade (e) para isso, nós tínhamos que
demolir o Centro (…). Durante cinquenta ou sessenta anos, o Brasil
trabalhou nessa ideia de (…) ter edifícios altos no meio de parques com
autopistas” (ibidem, p. 132).. Gerações de arquitetos e urbanistas foram
formados nessa perspectiva: “era quase um dogma de fé”. Sendo que o
povo “não sabia fazer (fazer isso), os governos, os arquitetos e a
legislação, tudo junto, é que sabiam e diziam para o povo como é que ele
tinha que morar” (ibidem, p. 133).. Com efeito, o urbanismo modernista
nasce – no período entre as duas guerras mundiais – da ideia de poder
resolver “racionalmente” os crescentes conflitos de classe. Assim, o
projeto de habitação popular do Minhocão e do Pedregulho previam até um
regimento regulando “como devia ser usado o vaso sanitário etc.” (idem).
Yona Fridman se refere ao Brasil como um pais onde o “ato arquitetural é
ditatorial” (FRIDMAN, 2006, p. 41)67.
Contudo,
é o urbanismo modernista mais tecnocrático que chega ao Brasil. Carlo
Giulio Argan (2005) explica que os dois maiores líderes da arquitetura
modernista foram Le Corbusier e Gropius. Os dois pensavam uma reforma
racionalista, mas “tratava-se de dois ‘racionalismos’ de sentidos
contrários, que conduzem a soluções opostas da mesma questão. Le
Corbusier assume a racionalidade como sistema e traça grandes planos,
que deveriam eliminar qualquer problema; Gropius assume a racionalidade
como método que permite localizar e resolver os problemas que a
existência vai continuamente apresentando” (p. 12).68
Ou seja, Gropius assume a imperfeição (o desequilíbrio, o caos, o
conflito) como horizonte insuperável com o qual a racionalidade do
planejamento ajuda a lidar. Le Corbusier pretende reduzir toda a
realidade à perfeição sistêmica da racionalidade, eliminando qualquer
problema. Argan argumenta que esse contraste se tornará ainda mais
nítido ao longo da história: “Le Corbusier joga todas as suas cartas no
prestígio da burguesia revigorado pela vitória’, quer ajudá-la a fazer sua paz depois daquela que havia sido sua guerra; dá como garantia da futura cooperação pacífica entre os povos aquela civilisation machiniste que havia sido uma das causas do conflito; sonha fazer de cada trabalhador um pequeno-burguês, compensando com um standard
de bem-estar material a renúncia aos direitos e à luta de classe”. É
este projeto, este modernismo, que ocupa a fronteira a desbravar do
“país do futuro” e isso porque, como Argan explicita, “ao mundo que
anseia por uma nova ética, ele oferece radiante, uma perfeita eugenética social” (ibidem, p. 13. Grifos nossos).. É a utopia dessa eugenia
racional que foi o estertor do urbanismo modernista nas grandes cidades
brasileiras e no Rio de Janeiro em particular. Precisamos tomar cuidado
para que essa utopia reacionária não volte pela janela, depois de ter
saído pela porta.
Na
era do Favela-Bairro havia plena consciência desse perigo. “Integrar
deveria significar atuar de forma a não impor valores advindos dos
padrões culturais da cidade formal sobre a informal, de maneira a evitar
a exclusão cultural e social de seus moradores” (DUARTE et al., 1996,
p. 13).. O então presidente do IAB, Demetre Anastassakis, escreviae: “O
outro desafio pertence certamente aos arquitetos e urbanistas e, por
extensão, à academia. Trata-se de inventar desenhos tais – seja de
arquitetura, seja de desenho urbano – que integrem, que sejam bonitos,
muito bonitos, para que a favela seja aceita por todos e os favelados
tenham orgulho, mas que não suscite a cobiça da classe média para querer
comprá-la como lugar folclórico para viver. Ou seja, desenhos tais que
aumentem o valor de uso das moradias e do próprio Favela-Bairro a um
nível igual ou maior ao do valor de troca, possibilitando que uns não
queiram sair e começar tudo de novo e outros não queiram entrar, mas sim
comprar ou promover sua própria solução. Este novo desenho não será um
modernismo culturalmente exógeno, socializando o luxo, nem será uma
mimetismo contextualizado, romantizando a pobreza: será um desenho que
sairá do dia-a-dia, que represente a modernidade a serviço da
cultura-popular” (ANASTASSAKIS, 1996, p. 12)..
Enfim,
o caminho desejável é aquele da constituição de uma real política de
segurança e a única maneira para que a paz e a segurança fiquem juntas é
a participação democrática. Pois bem, por que não acontece o mesmo
debate sobre o “Píer em Y” no Porto Maravilha, em particular sobre os
teleféricos que estão sendo sistematicamente implementados (no morro da
Providência, parte do projeto Porto Maravilha), passando literalmente
por cima das opiniões dos moradores. A mesma coisa aparece na Rocinha,
onde muitos moradores se disseram indignados com o supérfluo da
passarela luxuosa diante da permanência das valas a céu aberto, logo
ali, no Valão, perto da passarela.
“Quando
penso no futuro não esqueço meu passado”, diz o Samba de Paulinho da
Viola. Para apreender o futuro, precisamos voltar às dinâmicas do
passado. Todo raciocínio sobre posse, regularização fundiária e
planejamento urbano (ou seja, sobre o arrazoado de normas, instituições e
leis que regem e constituem o “mercado”) deve levar em conta esse
passado, sob pena de abrir o caminho de outras guerras. A lição de John
Maynard Keynes continua atual.
Em
2003 Sergio Magalhães avaliava que apenas 20% das moradias brasileiras
construídas depois de 1940 recebeu créditos públicos ou privados: “Ou
seja, de cada cinco casas, pouco mais de uma teve crédito. E como é que o
povo construiu suas casas, então? Poupando no dia-a-dia e comprando aos
poucos um tijolinho, uma lata de tinta, um saco de cimento. E onde foi
construir? Onde foi possível, porque (…) as pessoas precisam cada vez
mais de moradias” (MAGALHÃES, 2005, p. 135).. Então, estamos diante de
um esforço gigantesco de poupança como base de um titânico
processo de autoconstrução do espaço urbano: quando olharmos para as
favelas em seus morros íngremes ou loteamentos distantes de serviços
dignos e com sistemas de transportes caros, ruins e precários, podemos
imaginar o que significou transportar cada tijolinho, cada lata de
tinta, cada saco de cimento até os picos dos morros ou até os
loteamentos longínquos.
Ao
mesmo tempo, Sergio Magalhães lembra: “este é o quadro espetacular que a
sociedade brasileira construiu para viver na cidade”. Talvez pensando
nisso Yona Fridman (2006) escreveu: “A penúria é a mãe da inovação
social ou técnica (…) é a sociedade do mundo pobre que está inventando a
arquitetura de sobrevivência” (p. 15). Mas isso teve um preço, como
aponta Sergio Magalhães: “o pobre brasileiro construiu espetacularmente
um Brasil urbano com a sua poupança cotidiana”. Ao passo queEnquanto
quinze milhões de automóveis foram todos construídos com base no
crédito, “o pobre poupou e nesta poupança perdeu-se, talvez, uma geração.
Caso o mesmo pobre tivesse tido acesso a um crédito facilitado, ele
poderia ter estudado mais, mesmo à noite e a família poderia ter mais
saúde, pois ele teria água e esgoto. Poderia, enfim, ter uma renda, pois
não precisaria construir a um custo muitíssimo alto” (idem)..
Hoje,
a pacificação acontece num marco relativamente diferente. O crédito
está em expansão, a renda dos mais pobres cresceu por meio da
valorização do salário mínimo, da geração de empregos formais e das
políticas sociais. Mas, junto à pacificação vem o pagamento dos serviços
básicos de água, luz, TV a cabo (e internet), a formalização dos micro e
nano-negócios e fala-se cada vez mais do IPTU. Apesar da baixa
qualidade e precariedade desses serviços, o acesso gratuito ou de baixo
preço constituiu uma complementação importante da renda, algo que agora
se traduz em maiores investimentos por parte dos pobres em educação,
saúde e infraestrutura (computador, smart phone), ou seja, na
recuperação da geração perdida da qual falou Sergio Magalhães. Para ele:
“Os futuros eventualmente maus, bons ou maravilhosos serão comuns para a
cidade do Rio de Janeiro e para as favelas cariocas. E essa certeza não
vem de nenhuma previsão de cartomancia, ela é o fruto de um século de
experiência da nossa história” (SOUZA e BARBOSA, 2005, p. 130).. A
positividade e/ou negatividade dessa relação da cidade com a favela é
diretamente proporcional aos níveis de democracia. Aqui, a democracia e a
mobilização vão juntas, da mesma maneira que a autoconstrução das
favelas foi o terreno constituinte de uma democracia travada, que só nos
últimos anos estamos começando a “trilhar”.
Mas, quando lemos Sergio Ferreira e Maína Celidónio69,
aparece um projeto de UPP, dentro das UPPs, que é basicamente um
projeto de desfavelização. Este necessariamente, implica a repetição das
antigas tentativas de segregar os pobres nas periferias das vilas: Vila
Aliança, Vila Kennedy e Cidade de Deus, a começar pelo conjuntos
habitacionais de Cosmos, Santa Cruz. Na perspectiva do que foi o
vice-secretário que deveria ter tocado a UPP Social, “não existem grande
diferenças entre favela e não favela, quanto à cobertura de serviços
essenciais domiciliares básicos” (FERREIRA e CELIDÓNIO, 2012, p. 435)..
Assim, “os esforços de urbanização nas décadas de 1990 e 2000, (…) que
foram executados pelos governos federal, estadual e municipal” agora
devem deixar espaço para que se acabe com “a indulgência com a
informalidade nas favelas” (idem).. E por quê? Porque existiria uma
“associação entre “informalidade e ilegalidade” e isso “pode
eventualmente enfraquecer o programa das UPPs e o processo de
pacificação” (idem)..
Como
dizia Fernando Henrique Cardoso (1977), o mito da marginalidade pode
bem ser falso, mas ele participa da máquina que integra e ao mesmo tempo
explora os favelados (os pobres) segundo determinadas modalidades de
exclusão e segregação espacial e racial. Não se trata de descobrir a
“verdade” atrás do mito, mas a verdade do mito, ou seja, nas palavras do Fernando Henrique Cardoso, “a estrutura do mito” (p. 13 e 15),70
como ele funciona, qual é sua força, a força de seu talismã. Esse
talismã é a reprodução da escravidão dentro de todas as fases de
“modernização”, ou seja “o vulcão em que assentava a sociedade, e esta se tornou a fonte de uma situação de violência para ambos, senhores e escravos” (CARDOSO, 2003, p. 352, grifos nossos).71
Não por acaso, a metáfora do vulcão era usada por José de Alencar
(2008), em suas “cartas” a Dom Pedro II para que ele não abolisse a
escravidão: “Rompa-se esse freio (i.e. a escravidão), e um sopro bastará
para desencadear a guerra social, de todas as guerras a mais rancorosa e
medonha” escrevia Alencar para perguntar em seguida: “Julgais que seja
uma glória para vosso reinado, senhor, lançar o império sobre um vulcão?” (p. 86).72
Sabemos que o atraso da abolição, a sua reprodução na ausência de
reforma agrária, na modulação do racismo, em subordinar o “progresso” à
“ordem” é que fez do país e de suas cidades um vulcão e uma guerra mais
medonha porque insensata e cotidiana. Hoje esse vulcão são as favelas.
Diante
disso, o debate sobre as regras de transição que podemos inventar para
que a constituição desses territórios não se limite à reorganização da
segregação de ontem em novos moldes torna-se ainda mais atual e urgente,
sobretudo se o pensarmos do ponto de vista da mobilização produtiva.
3. Empresa, emprego, trabalho: Plano Marshall e Bolsas do Trabalho e das Empresas
Uma
das grandes preocupações de André Urani era de pensar a mobilização
produtiva dos territórios como terreno de mobilização democrática. Para
ele a mobilização era constitutiva de um “espaço (…) público que não
seja estatal, onde diferentes níveis de governo, a sociedade civil, a
universidade, as empresas que estão aqui possam trocar diretrizes de
longo prazo, compartilhar esforços, monitorar resultados, rever
diretrizes, redesenhar projetos, mas caminhar em direção a metas de
longo prazo. Nós precisamos voltar a pensar o futuro de longo prazo”
(AZIZ FILHO e ALVES FILHO, 2003, p. 133)..
No
início da década de 2000, havia uma grande atenção para novos modelos e
as trajetórias de desenvolvimento que associavam a mobilização
produtiva com maiores elementos de democracia (redução da desigualdade,
maior participação) e, portanto, baseadas em políticas que visassem o
“ambiente” mais do que uma determinada cadeia ou os global players de sempre. O conceito de “territórios produtivos” que elaboramos naquele que chamávamos de “consenso de Manhattan”73
dizia respeito a essa convicção. É um pouco a isso que André Urani se
referia quando afirmava a urgência de se pensar o Rio de Janeiro para
além do petróleo. Homenageando esse esforço de André, Gerardo Silva
(2012) aponta as duas agendas contraditórias em torno das quais se
desenvolvem as grandes políticas de desenvolvimento do Rio de Janeiro:
uma primeira agenda embasada no desenvolvimento industrial e cujo eixo é
o arco metropolitano destinado a conectar a zona industrial do porto de
Sepetiba (em Itaguaí), a CSA com a COMPERJ em Itaboraí; e uma segunda
“embasada no desenvolvimento pós-industrial”, cujo eixo é o Projeto
Olímpico”74.
Nossa
abordagem dos territórios era de dizer que os níveis produtivos de cada
um deles dependiam dos horizontais de mobilização que os constituíam.
As UPPs são um novo paradigma da segurança organizado justamente em
torno da reorganização dos territórios. O desdobramento da mobilização
rumo à paz em produção a partir da paz constitui o grande desafio dos
próximos anos: para a consolidação das UPPs e também para a definição do
que essa paz será. As UPPs são a segurança do projeto industrial ou
daquele olímpico? Ou elas têm um dinâmica própria?
Nesse
sentido, os parágrafos finais estão organizados em torno de uma breve
reconstituição do debate sobre desenvolvimento local, a nova relação
entre trabalho e direitos e, por fim, uma proposta de coordenação
horizontal das iniciativas empreendedoras nos territórios das UPPs.
3.1 As diferentes configurações do desenvolvimento local
Na
procura de modelos para liderar as políticas voltadas para o
desenvolvimento das pequenas empresas em níveis locais, o SEBRAE
nacional mobilizou naquela época (de 2000 a 2002) pesquisadores e
consultores de abordagens diferentes. Procurava-se um outro horizonte
das políticas de desenvolvimento, onde as dimensões “locais” (do espaço
dos agenciamentos) e “pequenas” das empresas (o tempo dos fluxos) fossem
o terreno de uma nova cidadania, inspirada na noção de “empoderamento” e
de empreendedorismo. Essa cidadania material pode ou deve ser
“produtiva”, ou pelo menos a base de uma mobilização produtiva. As
noções mobilizadas diziam respeito ao fato de que para se pensar o
desenvolvimento local era preciso apreender a existência de um capital
de novo tipo (social, intelectual, humano). Esse capital de tipo novo
diz respeito ao fato que a parte variável (o trabalho, a inteligência
dos homens em geral) é não apenas tão importante quanto o capital fixo
(o que é incorporado na tecnologia), mas também se mistura com ele nas
formas que constituem os territórios (as metrópoles). Assim, para falar
da centralidade deste capital de tipo novo, que corresponde não mais a
uma fábrica (ou indústria), mas a determinados territórios, é preciso
fazer referência aos “laços sociais”, à “confiança” (de onde vem o
crédito) e de instituições “achadas na rua”: por exemplo, as “Osterie” do Vêneto italiano transformadas em think tank sui generis (exatamente como André Urani havia feito no Osterio).
O
documento elaborado no Hotel Manhattan de Brasília tentava colocar no
cerne das preocupações os territórios e subordinar a esses as noções de
setor ou cadeia produtiva, além das noções tradicionais de cluster ou cadeia produtiva. A noção de Território Produtivo75foi
organizada em torno de três princípios: (a) os territórios produtivos
são redes; (b) a sustentabilidade das redes que desenham um território
produtivo é multiníveis (ou multidimensional): social, técnica,
institucional; (c) o desenho das redes (a cartografia dos territórios
produtivos) é o resultado de momentos constituintes dentro das redes
metropolitanas. Chegamos então a nossa questão e/ou desafio: a
confirmação do processo de pacificação por seu desdobramento e
amplificação exponencial em termos “produtivos”. Ou seja, para saber o
que seja uma política de fomento e apoio às UPPs produtivas precisamos
enxergá-las como territórios produtivos e dessa maneira formular uma
nova questão: do que depende a constituição dos territórios produtivos?
Depende da presença e proliferação de um novo tipo de bens: desde os
serviços (básicos e avançados), hoje controlados por um lado pelas
milícias e pela informalidade, e por outro pelo Estado (educação, saúde,
programas sociais), até as diferentes formas de capital (social,
humano, intelectual), passando pelos custos de transação ou
externalidades (a propriedade). A proliferação desses bens de novo tipo
permite a mobilização produtiva enquanto mistura de produção e
circulação, de geração de empregos e empreendedorismo difuso: “Brasil
registra 170 novos empreendedores individuais por hora, 122 mil por mês e
deve chegar a 4 milhões até 2014”.76
Como vemos, tudo isso já acontece: na mistura de políticas sociais,
serviços públicos e privados, formais e informais, legais e ilegais. E a
transição, como dissemos, é necessária não apenas para evitar
intervenções brutais, mas sobretudo para que a mudança se torne durável.
Mas,
quando falamos de transição e tentamos traduzi-la em termos de modelos e
instituições de governança, não sabemos como fazer. A noção de uma
“autoridade” que estaria a cargo dessa passagem não logra, nem de longe,
apontar para os sujeitos, os âmbitos, os modos de funcionamento. Por
que esse impasse? Porque os bens dos quais falamos (e dos quais depende a
constituição produtiva dos territórios, ou seja, a sua mobilização) são
bens de um tipo muito especial: eles não são nem estatais, nem
privados. André Urani pensava que essa “terceira” dimensão seria
exatamente aquela de uma sociedade civil produzida em âmbitos locais e
metropolitanos como sendo uma parceira entre o público e o privado: “o
grande desafio que temos (na pacificação) é o do quebra-cabeça do
redesenho do espaço-público (ou seja, da costura de parcerias
público-privadas)”.77
Parece-me que essa é uma base importante, mas que precisamos ir além:
como juntar a “transição” e a “governança” (a “autoridade”) na
mobilização produtiva dos territórios da Paz (das UPPs)?
A sociedade civil que deveria assumir esse papel nos falta.
Ela está duplamente em crise e é essa dupla crise que determinou a
necessidade das UPPs. Ela estava em crise pelos níveis de exclusão,
desemprego, desigualdade, informalidade, violência que a caracterizavam e
ela está em crise porque o tipo de inclusão que está acontecendo hoje
não tem mais na construção de uma sociedade “assalariada” e industrial
seu norte, suas formas e mecanismos de representação.
3.2 Empresas e Empregos78, Trabalho e Cidadania
Uma
boa maneira para se apreender a crise da sociedade civil é pensar a
mudança da relação entre trabalho e emprego, e esta do ponto de vista da
nova relação entre trabalho e direitos (ou cidadania). Diremos que é a
relação entre emprego e empresa que mudou e está mudando, no sentido de
que os dois termos tendem a se confundir. Isso significa enfim que o
trabalho se transforma radicalmente (não coincidindo mais com a o
emprego) e a empresa também muda de funcionamento, não contendo mais a
totalidade dos empregos (ou seja do trabalho). Isto é, o trabalho tende a
acontecer fora das empresas e aponta para um duplo movimento. Por um
lado, a empresa (o espaço de produção) se torna aquele das redes de
cooperação (terciárias e de terceirização) que desenham os territórios.
Pelo outro, o trabalho tende a aparecer como empresa. Então, quando
falamos de empregos formais, de formalização das atividades empresariais
e empreendedorismo, temos que colocar esses processos nessa
perspectiva. Ou seja, estamos falando de outras coisas, de outras
realidades.
Não
é mais o trabalho (assalariado e de tipo industrial) que proporciona a
integração (inclusão no sentido “positivo” que esse termo acabou tendo
na literatura sociológica da “questão social”) e proteção social. O
acesso aos direitos não é mais hierarquizado em torno da relação
salarial e de suas figuras dominantes: o capital monopolista estatal e
privado e o homem adulto branco assalariado pela grande indústria e
organizado nas grandes organizações sindicais (ou nos clubes de boliche
dos quais Robert Putnam fala nostalgicamente)79.
Quando o trabalho é mobilizado por meio da empregabilidade, ou seja, de
suas próprias capacidades (manuais, intelectuais, sócias) de trabalhar,
sua qualidade passa a depender da cidadania (dos direitos) como
condição prévia. Essa dimensão prévia implica também uma transformação
da própria noção de cidadania. Passamos assim do direito do trabalho ao
desafio de construir o trabalho dos direitos. Não se trata apenas de uma
questão de sequência, mas do próprio conteúdo e estatuto dos direitos
(isto é, da cidadania). Não se trata nem da cidadania holista das
grandes corporações estatais ou privadas, nem daquela individualista da
competição generalizada.
Hoje,
no regime de acumulação do capitalismo cognitivo, a qualidade do
trabalho (sua produtividade), seus níveis de remuneração e de proteção
passam a depender do tipo de direitos aos quais os trabalhadores têm
acesso, ou seja, de quanto eles são cidadãos independentemente do tipo
de inserção no emprego. Ao mesmo tempo, os direitos não são mais os mesmos.
Ou seja, como dissemos, é a inserção na produção que passa a depender
da integração nos direitos. Há duas maneiras interessantes de se
aprofundar as reflexões sobre essa inversão: uma primeira, mais geral,
diz respeito à noção de “exclusão”; uma segunda, mais específica, diz
respeito ao debate sobre os programas públicos de distribuição de renda
(por exemplo, o Bolsa Família e todo o debate sobre o sistema
previdenciário brasileiro). Em primeiro lugar, diremos que o capitalismo
global, articulado entre finanças e redes, não é excludente, mas
altamente inclusivo: todo mundo é incluído, mas a mobilização produtiva
acontece diretamente na sociedade (na reprodução) e nos territórios (da
circulação), portanto, sem nenhum processo prévio de homogeneização
social. Os excluídos, como já tivemos a oportunidade de escrever, são
incluídos enquanto tais (enquanto excluídos), pela modulação dos
fragmentos e da heterogeneidade.80
Ou seja, o tipo de inclusão não depende mais do fato de ser ou não
mobilizado e explorado, mas do tipo de direitos prévios aos quais
teremos acesso como população em geral e não como camadas específicas de
proletariado destinado a vender sua força de trabalho.
Em
segundo lugar, podemos apreender o debate sobre as políticas de
distribuição de renda em termos completamente novos e compreender por
que ele foi ao mesmo tempo objeto de críticas “esquerdistas” e
“conservadoras”. Ao passo que as críticas conservadoras reafirmaram a
necessidade de incluir para subordinar por meio do emprego e, pois,
declararam assistencialistas e ineficientes os gastos com a distribuição
de renda porque não comportam uma “porta de saída”, as críticas pela
esquerda vão no mesmo sentido (a emancipação passa pela oferta de
“emprego”) e também acusam essas políticas de “desmobilizar” os pobres,
enfraquecendo os movimentos sociais. Trata-se, em todos os casos, de
críticas inadequadas (embora aquelas da direita tenham tido, e continuem
tendo, uma função bem precisa de impedir, por exemplo, a ampliação e
universalização do programa Bolsa Família rumo a uma renda universal)
porque respondem a uma situação nova a partir de esquemas conceituais e
políticos oriundos do capitalismo industrial. A inadequação está, na
esquerda e nos movimentos, na incapacidade de apreender que – diante
desta “inclusão dos excluídos enquanto tais” (enquanto meros corpos) –
aparecem novas contradições, novas lutas e novos direitos: por um lado,
todo mundo é incluído e explorado o tempo todo; e, pelo outro, essa
mobilização produtiva se faz mantendo a precariedade dos que estavam
fora do mercado formal do emprego e levando aqueles que estão dentro da
relação salarial a uma precariedade crescente, inclusive de tipo
subjetivo.
A
emergência de uma nova classe média (no Brasil) e a decadência das
classes médias nas economias centrais indicam que estamos assistindo a
algo como um devir-trabalho-vivo da sociedade como um todo e, pois, ao
fato que hoje as classes médias são “centrais” porque perderam o
estatuto intermediário que tinham no regime industrial para constituir a
nova composição de um trabalho fundamentalmente terciário que, cada vez
mais, mistura, empregos com empresas e vice-versa.
3.3 Proposta: um Plano Marshall e a Bolsa de Valores do Território
Ao
passo que a política das UPPs foi se consolidando como eixo estratégico
de reorganização do modo de atuação do Estado nas favelas e na cidade,
os próprios responsáveis pela sua concepção e implementação afirmaram
que a pacificação (o desarmamento do tráfico) não é suficiente, que é
preciso a “complementação” de outras intervenções e políticas públicas.
Foi assim lançado o projeto de UPP-Social. Há, contudo, sérios problemas
de definição do modo de funcionamento, das competências, dos recursos
mobilizados, do alcance e duração das políticas implementadas e a
UPP-Social passa hoje por uma crise bastante paradoxal.
Se a metáfora da mudança foi a da pacificação, podemos dizer que o futuro da UPPs depende da implementação de um verdadeiro Plano Marshall, algo que poderíamos chamar de Plano Beltrame, do nome do responsável operacional da nova política de segurança. Falar de Plano Marshall
significa dizer que se trata de mobilizar para as favelas investimentos
de grande porte e de grande continuidade, segundo linhas de prioridade
que as próprias favelas (ou seja, os processos participativos) devem
definir. Um dos eixos desses investimentos e de sua duração
(sustentabilidade) é, com certeza, aquele da mobilização produtiva, a
UPP Produtiva. Se por um lado deve haver um Plano Marshall, pelo outro
falaremos de uma Bolsa dos Valores e do Trabalho territoriais.
A Bolsa dos Valores e do Trabalho
territoriais deveria ser criada para cada UPP (por exemplo, haveria uma
Bolsa dos Valores da Rocinha, do Alemão, da Cidade de Deus) deveria se
organizar em torno de três “motores”: (a) o motor “S”; (b) o motor
Estado; (c) o motor Território.
O Motor S
será constituído pela associação dos Sistema S (Sebrae, Senac, Sesc,
Senai, Firjan etc.) que se juntariam, no âmbito da Bolsa, para planejar e
coordenar suas ações territorialmente. Ao sistema S poderão se associar
as ONGs presentes no território ou que desejem estar presentes.
O Motor E
(Estado) será obviamente constituído pelo conjunto de atividades
públicas que não relevam dos serviços rotineiros (por exemplo, as
secretarias implicadas na UPP-Social, como o IPP).
Finalmente, o Motor T
(Território) será constituído pela participação política e financeira
dos cidadãos das favelas e da cidade como um todo, segundo modalidades
diferenciadas ao longo do processo de constituição da Bolsa.
A Bolsa terá como base o processo de coordenação das políticas “ad hoc” de desenvolvimento e mobilização produtiva das favelas pacificadas.
(i)
– A Bolsa valoriza o território pela sua mobilização – participação
difusa dos cidadãos da favela e dos bairros próximos por meio de um
“fundo ético” que emita ações de pequeno valor unitário (tipo R$ 1,00)
atrelados a projetos estratégicos e possibilidade de escolher a
remuneração em moeda ou em “retorno” de informação do uso dos recursos.
(ii)
– A Bolsa deveria coordenar, não de forma obrigatória mas criando
condições favoráveis à adesão, o maior número de projetos do sistema S e
do terceiro setor. A coordenação deveria, ao mesmo tempo permitir uma
arbitragem para a eliminação das sobreposições e, ao mesmo tempo,
destinar o maior valor possível dos projetos a políticas de editais.
(iii)
– A Bolsa poderia também providenciar, no tempo e em função do
amadurecimento de suas estruturas, a emissão de títulos para a
participação no território das concessionárias de serviços públicos que
assim se coordenariam com os processos de mobilização do território e
participariam materialmente na consolidação desses momentos.
.
.
–
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Giuseppe Cocco é professor titular da ESS/UFRJ, autor de Glob(AL) e MundoBraz, participa da rede Universidade Nômade.
.
NOTAS
1 SEN, Amartya. Inequality Reexamined, Oxford: Oxford University Press, 1992.
2
Cf. Ricardo Henriques e Silvia Ramos, UPPs Sociais: Ações Sociais para
consolidar a pacificação, in: André Urani e Fabio Giambiagi, Rio: a Hora da virada, Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2001, p. 245.
3
Veja-se a “Operação Guilhotina” da Polícia Federal, que culminou com a
prisão de vários policiais do Rio de Janeiro. Cf. “Os Alvos da
Guilhotina”, jornal O Globo, 12 de fevereiro de 2011.
Para
uma análise crítica das políticas de segurança no Rio de Janeiro, cf.
José Claúdio Alves, “O crime organizado, pelo Estado, no Rio de
Janeiro”, entrevista ao IHU-On Line, 16 de setembro de 2011.
4 Jornal O Globo, “Polícia invade Alemão e mata 19”, 28 de junho de 2007.
5 O Globo, “Vitória policial”, 29 de junho de 2007.
6 O Globo, “Alemão ensina na crise policial”, 17 de fevereiro de 2011.
7 A delegada-corregedora daquela época era a atual chefe da Polícia Civil, Martha Rocha. Cf. Juliana Resende, Operação Rio: relatos de uma guerra brasileira, 1995, p. 82.
8 “Os quatorze corpos foram retirados da favela na carroceria aberta de uma Kombi da Comlurb” (ibidem, p.86).
9
Lembramos que o tão execrado ex-governador Leonel Brizola, perguntado
sobre quais seriam “suas maiores vitórias no campo da segurança
pública”, respondia de maneira civilizada: “A palavra é inadequada. Não
há vitória quando o poder público enfrenta a criminalidade” (Paraíso Armado: intepretações da violência no Rio de Janeiro, Aziz Filho e Francisco Alves Filho (orgs.), São Paulo: Garçoni, 2003, p.283).
10
Um papel fundamental, naturalmente, teve e tem a proibição de
determinadas substâncias cujo consumo foi se massificando. Por que não
lembrar que a não proibição da cerveja faz de seu produtor o legalissimo
“homem mais rico” do Brasil.
11Creio que toda a reflexão sobre “pacificação” deve sempre fazer referência ao contexto geral do Brasil, a nova “sexta potência” econômica do mundo que defende com folga sua posição de campeão mundial na ocorrência de homicídios, com o maior número absoluto de mortes violentas (43.909 em 2009). Em termos relativos (taxa de homicídios por cada 100.000 habitantes), o Brasil apenas se deixa superar por países que passam (ou acabaram de passar) por uma guerra civil aberta, tais como El Salvador, Costa do Marfim, Honduras. Fonte: Departamento de Drogas e Crimes da ONU (UNDOC), Estudo Global sobre Homicídios, 2011.
12
Os níveis de violência em geral e de violência policial em específico
continuam muito altos no Rio de Janeiro e não deixam de repercutir na
imprensa internacional. Na matéria da The Economist de 3 de
setembro de 2011, “Doing business in Brazil. Rio or São Paulo?”, podemos
ler que a taxa de homicídios no Rio de Janeiro “is still very high at
26 per 100,000 people per year (2.5 times São Paulo’s)”.
13 Adair Rocha. Cidade Cerzida: a Costura da Cidadania no Morro Santa Marta. 2. ed. Rio de Janeiro: Museu da República, 2005.
14 Adair Rocha, Alguns desafios atuais para a cultura urbana, s/d.
15
Mais uma vez, o tão execrado Leonel Brizola fala disso de maneira
adequada: “Nosso povo não pode reclamar contra a violência que lhe cai
em cima quando matam as suas crianças e seus jovens. Seus protestos são
apresentados sempre como movimento de traficantes” (AZIZ FILHO e ALVES
FILHO, 2003, p. 247).
16 Rafael Soares Gonçalves, Les favelas de Rio de Janeiro: histoire et droit, XIX et XX siècle, Paris: L’Harmattan, 2010.
17 Marcelo Neri, “As consequências econômicas da paz”, Valor, 22 de novembro de 2011.
18 “O Desafio de gerenciar as UPPs”. Editorial, jornal O Globo, 17 de novembro de 2011, p. 6.
19 Cezar Vasquez, O Ovo de Colombo, s/d.
20Sobre a crise cf. Giuseppe Cocco, “The Crisis of Cognitive Capitalism from the Point of View of Amerindian Perspectivism”, in: Sarita Albagli e Maria Lucia Maciel (eds.), Information, Power and Politics, Lanham: Lexington Books, 2010.
21Cf. Emmanuelle Lequeux, “La banlieue, friche bénie pour l’art contemporain”, Le Monde, 27 de setembro de 2011.
22 Allison Furuto, “Rocinha Urban Strategy/Kyle Beneventi”, ArchDaily, 10 de setembro de 2011.
23 Ver em Giuseppe Cocco et al. (orgs), Capitalismo Cognitivo, Rio de Janeiro: DP&A, 2005. Andrea Fumagalli, Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Milão: Carocci, 2007.
24 Enzo Rullani, La fabbrica dell’immateriale. Produrre valore con la conoscenza, Milão: Carocci, 2004 e Peter Drucker, Post-Capitalist Society, Nova York: Harper/Collins, 1993.
25 Richard Florida, The Rise of the Creative Class, Nova York: Basic Books, 2002.
26 Maurice Lévy e Jean-Pierre Jouyet L’économie de l’immateriel: la croissance de demain, Rapport de la Commission sur l’économie de l’immatériel, Ministère de l’Économie et des Finances, Paris, 2006.
27 Anatole Kaletsky, Capitalism 4.0. The Birth of a New Economy in the Aftermath of Crisis, Nova York: Public
Affairs, 2010.
28 Peter Marsh, “Novos processos tentam resolver dilemas da produção”, Financial Times (Tradução publicada no jornal Valor de 5 de janeiro de 2012, p. B3).
29
Em junho de 2011, a grande mídia brasileira noticiou a operação de uma
equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho contra o trabalho
escravo (de imigrantes bolivianos ilegais) numa fábrica da multinacional
espanhola do vestuário Zara localizada em São Paulo. As investigações
apontam exatamente para essas proporções: o dono das fornecedoras da
grife Zara recebia R$ 7 por peça, enquanto os trabalhadores recebiam R$ 2
a R$ 3 reais por item costurado, em média. A mesma roupa tem um preço
de venda de R$ 139,00. Imaginemos quando esse preço for convertido em
dólares ou euros.
30 Eduardo Sá entrevista José Junior, “AfroReagge só atua onde ninguém quer atuar”, Caros Amigos, setembro de 2012, p.42.
31 Lucien Karpik, L’économie des singularités, Paris: Gallimard, 2007.
32
“Os setores criativos são todos aqueles cujas atividades produtivas têm
como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico,
elemento o central da formação do preço, e que resulta em produção de
riqueza cultura e econômica”, Plano da Secretaria da Economia Criativa do MinC, 2011, p. 22.
33 “Sandálias Havaianas são eleitas A Cara do Rio em pesquisa que, pelo segundo ano consecutivo, apresenta produtos e empresas mais lembrados por quem vive na cidade” (Marcas dos Cariocas, jornal O Globo, 29
de outubro de 2011). Curiosamente a empresa fabricante – Alpagartas – é
de São Paulo. Os gastos da empresa em marketing chegam a 12% do
faturamento!
34 Cf. Yann Moulier Boutang, L’Abeille et l’économiste,
Paris: Carnets Nord, 2010 e também, do mesmo autor, “Wikipolítica e
economia das abelhas. Informação, poder e política em uma sociedade
digital”, in: Sarita Albagli e Maria Lucia Maciel (orgs.), Informação, conhecimento e poder, Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
35 R.H. Coase, The Firm, the Market and the Law, University of Chicago Press, [1988] 1999. Steven N.S. Chung, “The Fable of the bees: an Economic Investigation”, The Journal of Law and Economics,
vol. 16, n.1, 1973, p.11-33. Neste artigo, Chung analisa a falta de
informações sobre o produto marginal da polinização e constata a mudança
do contrato de aluguel das colmeias é diferente do contrato ligado à
polinização.
36 Padre Antonio Vieira, Essencial (organizado por Alfredo Bosi), São Paulo: Penguin, 2011.
37
Barbara Szaniecki, Quem não tem cão, caça com gato, Trabalho
apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Sociabilidade, do XVII
Encontro da Compós, São Paulo, junho de 2008.
38
Aqui usamos a denominação “milícias” sem com isso aceitá-la como
verdadeira. Embora não tenhamos como demonstrar, intuimos que o uso
deste termo reduz e circunscreve uma dinâmica bem mais generalizada nas
práticas policiais e difusa nos territórios, desde as periferias até as
praias da Zona Sul.
39
Cabe lembrar – apenas a título de exemplo – o “bandido” rendido e
assassinado ao vivo, em mundo-visão, pela PM na saída do Rio Sul, em
1994 e um episódio relatado pela imprensa em 1995: “Cinco jovens são
assassinados em Belford Roxo: vítimas não tinham dinheiro para pagar
passagem, foram obrigadas a desembarcar e executadas…”. Na mesma página,
outro artigo diz que “delegados e coronéis comandam segurança: com fama
de exterminadores, grupos armados também guardam motéis”. (Fonte:
jornal O Globo, 22 de fevereiro de 1995)
40
Para ter em mente do que se trata quando se fala de milícias, podemos
usar a cobertura jornalística de uma das operações de repressão do
fenômeno no âmbito da Operação Têmis: “a polícia atacou ontem as
principais fontes e renda do grupo paramilitar (e) fechou três centrais
clandestinas de TV a cabo e três distribuidoras de gás, além de ter
reprimido transporte alternativo irregular. (…) A milícia controlaria
ainda cerca de cem mil ligações irregulares de TV a cabo na região
(Campo Grande). (…) Na operação foram presos 26 policiais militares além
de três policiais civis. Essa milícia é suspeita de ter cometido mais
de 30 homicídios na Zona Oeste. A arrecadação do grupo foi estimada em
cerca de R$ 2,5 milhões por mês” (“Ataque às fontes de renda da
milícia”, Ana Claudia Costa, jornal O Globo, 17 de junho de 2009, p. 10).
41
Ver o relato jornalistico de Juliana Resende (1995) e também as
antrevistas com Leonel Brizola por Marcelo Alencar e Moreira Franco
(AZIZ FILHO e ALVES FILHO, 2003).
42 Luiz Antonio Machado da Silva, 2011.
43 Ana Claudia Costa, “Policiais presos em Caixia usavam telefones sem registro”, jornal O Globo, 7 de dezembro de 2012, p.13.
44 Marcus Faustini, Guia Afetivo da Periferia, Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
45 J.M. Keynes, As Conquências Econômicas da Paz, (1919), Tradução de Sérgio Bath, (2002), Imprensa Oficial do Estado, São Paulo. cit., p..13
46 Heloisa Magalhães, “Rio divulga plano de recuperação”, jornal O Globo, 22 de outubro de 1996.
47 Adair Rocha, Cidade Cerzida,
Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2000. O livro acaba de ter sua
terceira edição (2012), com um capitulo dedicado à UPP do Morro Santa
Marta.
48 Cesar Maia, “A Política Habitacional do Rio”, in: Christiane Rose Duarte, Osvaldo Luiz Silva e Alice Brasileiro (orgs.), Favela, um Bairro:
Propostas Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro: Grupo Habitat FAU/UFRJ e ProEditores, 1996,
p.7.
49
Em 1996, a dotação orçamentária para o Favela-Bairro era de noventa e
sete milhões de Reais, o equivalente ao que o município investia para a
Linha Amarela. Eram cinquenta favelas de porte médio (até 10.000 ou
12.0000 moradores) e mais trinta no ano seguinte (também de porte
médio).
50 Licia do Prado Valladares, A Invenção da Favela, Rio de Janeiro: FGV, 2005.
51 Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa, Favela, Alegria e dor na Cidade, 2005.
52Demetre
Anastassakis, “Programa Favela-Bairro: como selecionar profisssionais e
o que fazer nas favelas”, in Christiane Rose Duarte, Osvaldo Luiz Silva
e Alice Brasileiro (orgs.), Favela, um Bairro: Propostas
Metdológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro: Grupo Habitat FAU/UFRJ e ProEditores, 1996.
53 Cristiane Rose Duarte, Osvaldo Luiz Silva, Alice Brasileiro (orgs.), Favela, um Bairro:
Propostas Metdológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro: Grupo Habitat FAU/UFRJ e ProEditores, 1996.
54Disponível em http://www.facebook.com/#!/groups/favelas2016/.
55
José Márcio Camargo, palestra proferida no Seminário “Os Futuros
Possíveis das Favelas e da cidade do Rio de Janeiro”, in: Jailson de
Souza e Jorge Luiz Barbosa, Favela: alegria e dor na cidade, Rio de
Janeiro, SENAC, 2005, p. 127.
56 Em particular no que diz respeito ao próprio conceito de propriedade. Cf. Paolo Grossi, História da Propriedade, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006. Ver também Amyr R. Poteete, Marco A. Janssen e Elinor Ostrom, Working Together: collective actiom the Commons, and a Multiple Methods in Practice, Princeton-Oxford Press, 2010.
57 Vittorio de Filippis, “Pétrole: l’accord secret entre le CNT et la France”, Libération, 1 de setembro de 2011. Disponível em: http://www.liberation.fr/monde/01012357324-petrole-l-accord-secret-entre-le-cnt-et-la-france.
58 Luiz Ernesto Magalhães, “Paes Joga duro com a Câmara”, O Globo,
22 de dezembro de 2012, p. 10. Cabe ressaltar que enquanto o projeto de
“exclusão do Parque de uma área de 58 mil metros quadrados” foi enviado
à Câmara em regime de urgência, a contrapartida prometida de
transformar a APA em Parque não foi enviada em regime de urgência, o que
permitiu aos vereadores de compatibilizar a aprovação da proposta do
Prefeito com suas próprias emendas. Cf. Luiz Ernesto Magalhães, “Redução
de parque avança; proteção empaca”, jornal O Globo, 20 de dezembro de 2012, p.21.
59 Cuja curadoria foi concedida à Fundação Roberto Marinho.
60 Ludmila de Lima, “Quanto vale a paisagem?”, O Globo,
17 de dezembro de 2012, p.13. Na mesma página, uma notinha de
esclarecimento: “Autoridades também são contra o Y”. Ver também (só para
ter uma ideia do sem número de artigos dedicados ao tema) Luiz Ernesto
Magalhães, “Docas dará armazéns em troca de píer: companhia negocia com
prefeitura acordo para construção de obra controversa por impacto ambiental”, O Globo, 15 de dezembro de 2012, p.15; Isabel Braga, “Iphan dará até o fim do ano parecer sobre Píer em Y: construção pode impedir visão de bens em área revitalizada”, O Globo, 14 de dezembro de 2012. Grifos nossos.
61 Sergio Guimarães Ferreira, “Segurança pública no Rio de Janeiro: o caminho das pedras e dos espinhos”, in: André Urani e Fabio Giambiagi (orgs.), Rio, a hora da virada, Rio de Janeiro: Campus, 2011.
62 Vide Humerto Saccomandi, “Mundo mudou, e ricos pagarão mais imposto”, jornal O Valor Econômico, 29 de novembro de 2012, p. A18.
63 Gary S. Becker, “Crime and Punishement: an economic approach”, Journal of Political Economy, 1968.
64
Interessante aqui lembrar o que escreve Marcelo Lopes de Souza:
“nenhuma das categorias (de trabalhadores do tráfico) pode ter seu
comportamento interpretado moralísticamente. A vinculação com a economia
ilegal se dá sobre a base de uma racionalidade econômica
aplicada à luz da realidade social de um país marcado por uma proverbial
desigualdade de oportunidades … e não por qualquer ‘desvio moral’ ou
‘inclinação patológica para o crime’”. Continuando no mesmo raciocínio:
“Muito embora o risco de vida e a mortandade sejam elevados, há um
núcleo de cálculo econômico racional que desestimula os jovens pobres,
moradores de favelas e loteamentos periféricos a optarem por um emprego
de salário mínimo ou um sub-emprego mal remunerado em detrimento de uma
colocação mais bem remunerada no âmbito de uma quadrilha”. Marcelo
continua: “estar envolvido é (…) uma estratégia de sobrevivência e uma
vicissitude (…) e não uma questão de escolha, muito menos uma ‘opção de
vida’ a ser condenada sob um ângulo moralista hipócrita. (…) tão errado
quanto culpabilizar os pobres urbanos vinculados à economia ilegal seria
vitimizá-los simplisticamente ou beatificá-los.” Luiz Eduardo Soares
escreveu: “Esta fluidez, esta ausência de fronteira rígida entre o legal
e o ilegal, o grupo do tráfico e o grupo familiar – ou, abrindo o foco :
entre o tráfico e a comunidade -, mostra que, a despeito das diferenças
de valor, identidade, compromissos, posturas, comportamentos,
estratégias e estilos de vida, há emoções, valores e uma linguagem
comuns”. Ou seja, Por um lado, esta mútua permeabilidade, esta relativa
indistinção, este terreno comum é perigoso: um passo para lá, cai-se no
abismo. Por outro lado, esta continuidade pode nos encher de esperança”.
Cabeça de Porco, cit. p.235.
65 Michel Foucault, Naissance de la biopolitique, Cours au Collège de France, 1978-1979, Seuil, Paris: Hautes Études, Gallimard, 2004.
66
É possível ver o que pensam as lideranças das favelas pacificadas nos
longos depoimentos transcritos em Marilia Pastuk, Vicente Pereira Jr. e
João Paulo dos Reis Velloso, Favela como Oportunidade, Rio de Janeiro: INAE, 2012.
67 Yona Fridman, L’architecture de survie, (1978), L’éclat, Paris, 2006.
68 Carlo Giulio Argan, Walter Gropius e a Bauhaus (1951), tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 12.
69
“Carência no acesso a serviços e informalidades nas favelas cariocas”,
in Armando Castelar Pinheiro e Fernando Veloso (orgs.) Rio de Janeiro:
um estado em transição, Rio de Janeiro: FGV, 2012.
70 Fernando Henrique Cardoso, “Prefácio”, a Janice Perlman, O Mito da Marginalidade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.13 e 15.
71Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul (1962), 5a edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
72 José de Alencar, Cartas a Favor da Escravidão, organização Tâmis Parron, São Paulo: Hedra, 2008.
73 Do nome do Hotel de Brasília onde fizemos as reuniões de discussão com os técnicos do Sebrae.
74
Cf. Gerardo Silva, “Dinâmicas territoriais e desafios metropolitanos do
Rio de Janeiro no início do século XXI””, in: Giuseppe Cocco e Sarita
Albagli (orgs.), Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global, Rio de Janeiro: Garamond, 2012.
75
André Urani, Gerardo Silva, Giuseppe Cocco, Paolo Gurisatti,
“Territórios produtivos e desenvolvimento local: um desafio para o
Brasil”, in: Giuseppe Cocco e Gerardo Silva, Territórios Produtivos, Rio de Janeiro: DP&A-Sebrae, 2006.
76 Luiz Maciel, “Velocidade Máxima”, jornal Valor, 5,6 e 7 de outubro de 2012.
77 André Urani, “Pequenos Grandes passos”, jornal O Dia,
78 André Urani, Giuseppe Cocco e Gerardo Silva (orgs.) Empresários e Empregos, DP&A, Rio de Janeiro, 2001 (2. edição).
79Robert Putnam, Bowling Alone:The Collapse and Revival of American Community, Nova York: Simon & Schuster, 2000.
80 Permitimo-nos sugerir a leitura do segundo capítulo de nosso MundoBraz: o devir-Brasil do mundo e o devir-Mundo do Brasil, Rio de Janeiro: Record, 2009.
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