maio 30, 2014

"As histórias da esquerda e a linha de cor", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Se o levante comandado por brancos, independente dos meios empregados, é indiscutivelmente político e merecedor de deferência, quando é realizado por negros se torna manipulado, complicado, problemático. A palavra “tráfico” praticamente pula sozinha, como “todo mundo sabe”. Quando a esquerda branca se insurge, são heróis até que se prove o contrário; mas quando é a favela, seus participantes são imediatamente caluniados como delinquentes, e o ônus da prova é invertido. Suas ações resultado de impulsos desordenados, como se estivessem revertendo para a “barbárie original da raça”. A pacificação brutal não está tão distante desse automatismo em que a esquerda muitas vezes incorre, sempre com a palavra “tráfico” a tiracolo."

As histórias da esquerda e a linha de cor
alemao
Foto: Lana de Souza – Coletivo Papo Reto.



O sofrimento dos torturados na ditadura é identificado como parte da história moral do Brasil e os ativistas reconhecidos como protagonistas indiscutíveis das lutas. Isto não é verdade para as lutas dos negros. A luta contra a ditadura, quer seja glorificada ou não, é reconhecida como uma ação política, ideológica, calcada sobre a consciência. De 1964 a 1985, quando militantes eram presos, ninguém colocava em questão que eram “presos políticos”, opositores ao regime, e que por isso mereciam ser separados dos “presos comuns”. Isto não vale para os negros. A longa história de revoltas e resistências de favelas e periferias é sempre turvada com a grande sombra do crime organizado.

Se o levante comandado por brancos, independente dos meios empregados, é indiscutivelmente político e merecedor de deferência, quando é realizado por negros se torna manipulado, complicado, problemático. A palavra “tráfico” praticamente pula sozinha, como “todo mundo sabe”. Quando a esquerda branca se insurge, são heróis até que se prove o contrário; mas quando é a favela, seus participantes são imediatamente caluniados como delinquentes, e o ônus da prova é invertido. Suas ações resultado de impulsos desordenados, como se estivessem revertendo para a “barbárie original da raça”. A pacificação brutal não está tão distante desse automatismo em que a esquerda muitas vezes incorre, sempre com a palavra “tráfico” a tiracolo.

Como a Ocupa Alemão, esse coletivo atuante num complexo de favelas no Rio, quando escreveu ontem que “favelado é tratado como bandido até que se prove o contrário”. O que é gravíssimo porque, como se sabe, no Brasil bandido bom é bandido morto.
O fato é que a esquerda brasileira ainda temos um problema sério com a questão racial (basta ver o comportamento vacilante na questão das cotas), o que aparece nas narrativas fundadoras e sua mitologia de origem, a começar na luta contra a ditadura. Aparece na superexposição de algumas lutas, quase com caráter sagrado, e na desqualificação cotidiana de outras.

É preciso renovar essa esquerda, para que passemos a linha de cor no lugar certo, e assim possamos reconhecer nossas lutas e companheiros, e nossos mortos. Precisamos começar a recontar as histórias e desarmar os automatismos de uma esquerdologia racista. O levante do ano passado, desdobrado até hoje num forte ciclo de novas organizações e lutas de favelas e periferias, praticamente exige isso.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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