PICICA: "O racismo é algo muito sério. Vivemos no
Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de
postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas,
formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear
seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de
futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo."
A farsa do racismo “suave”
– 2 de maio de 2014
Muito mais que vulgaridade publicitária,
difusão do “todos somos macacos” revela tentativa de minimizar peso da
discriminação racial
Por Douglas Belchior, em seu blog
A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque
Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e
em repulsa ao racismo no mundo do futebol.
Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga,
que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York,
em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um
zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época
proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A
história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial
ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.
A comparação entre negros e macacos é racista
em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da
utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.
Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses,
e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História
da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um
texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma
ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não
faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser
humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do
macaco como insulto.”
Não, querido Neymar. Não somos todos macacos.
Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como
ferramenta de combate ao racismo.
Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de
Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e
corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha
de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.
No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol
advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o
futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem
grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira
desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez
mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à
parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar
genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é
racismo, a tendência é piorar.
E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:
“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”
É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!
Há um provérbio africano que diz: “Cada
um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de
onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da
vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol,
para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e
rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer:
sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode
jogar bananas à vontade!
O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de
que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá
resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o
efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as
bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e
que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!
Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e
outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de
ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no
caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois
de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter
seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou
ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos
jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão
tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum
país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de
haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.
O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os
atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação
não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e
de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o
estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou
descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na
invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há
500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses
racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.
Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como
quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés.
Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se
pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa,
nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o
racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que
for, não nos serve.
Sou negro, nascido em um país onde a
violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da
população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk,
Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a
imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora
compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como
em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo
culturalmente ofensivo.
Eu como negro, não admito. Banana não é arma e
tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o
reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente
na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate
sobre racismo no Brasil e no mundo.
O racismo é algo muito sério. Vivemos no
Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de
postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas,
formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear
seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de
futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.
Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos
e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os
seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da
evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que
não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica?
Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as
cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma
estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por
que nos tratamos assim?
Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.
Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!
Fonte: OUTRAS MÍDIAS
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