maio 09, 2014

"Maconha: para um debate sem preconceito", por Jerome Groopman

PICICA: "Apesar do vasto consumo, a maconha ainda é ilegal na maior parte dos países. Harry J. Anslinger, um importante proibicionista, pressionou com sucesso o congresso norte-americano para passar a Lei Fiscal da Maconha de 1937, deixando o acesso à erva mais custoso. Anslinger foi diretor da Secretaria Federal de Narcóticos e falou em público que a maconha era um verdadeiro perigo, uma “um barato louco”. A Associação Médica norte-americana se opôs à Lei Fiscal da Maconha, temendo que a medida pudesse limitar o estudo clínico e potenciais receitas médicas. Em 1942, depois de muito tempo listada no United States Pharmacopeia, um compêndio de regras para remédios e alimentos, a cannabis foi removida. Em 1970, o congresso aprovou a Lei de Substâncias Controladas, que classificou a maconha junto com a heroína como droga do Anexo 1. Drogas nessa categoria podem viciar e não há nenhum valor medicinal. (Ópio, base da morfina, e anfetaminas pertencem ao Anexo II, e são classificadas como menos nocivas apesar de suas propriedades altamente viciantes.) Logo depois, o presidente Nixon lançou a “guerra às drogas”, e, em 1986, o presidente Reagan assinou a Lei Antidrogas, que condenava pessoas à prisão sem liberdade condicional por posse e venda de todas as drogas ilegais, inclusive maconha." 

Maconha: para um debate sem preconceito


Bret Kantola

Estudo científicos concluídos ou em andamento apontam benefícios e riscos da planta. Questão é: iremos tratá-la racionalmente ou como tabu?

Por Jerome Groopman, New York Review of Books | Tradução Taynée Mendes

Era verão, em 2006, e um jovem cientista israelense entrou no meu laboratório. Veio aprender como vírus atacam células, uma questão relevante na minha pesquisa. Ansiava me aprofundar no meu tema com sua experiência em uma área emergente que muito me intrigava: os efeitos biológicos do canabinoide, um composto químico ativo da maconha. O cientista tinha estudado na Universidade Hebraica de Jerusalém com o professor Raphael Mechoulam, químico conhecido pela descoberta em 1964 do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), principal composto psicoativo presente na maconha. Mais tarde, Mechoulam identificou a cannabidiol (CBD), uma substância relacionada abundante na erva, tão díspar do THC que não apresentou efeitos patentes no humor, na percepção, na consciência ou no apetite.1

O trabalho do jovem cientista mostrou-se produtivo. De maneira muito rápida, testou os efeitos de várias canabinoides em um vírus da herpes que causa o desenvolvimento do sarcoma de Kaposi, um tumor desfigurante e por vezes fatal em pessoas com baixa imunidade, como os portadores da Aids. Acontece que o CBD, o composto não psicoativo abundante, pode anular os danos malignos do vírus.2 No meu departamento, cientistas também descobriram que os canabinoides podem alterar a maneira pela qual leucócitos migram em resposta a um estímulo fisiológico, um aspecto essencial em defesa imunológica. Outras equipes de pesquisa descobriram que o THC inibe o crescimento e a propagação do câncer de pulmão e o CBD, o câncer de mama em protótipos de laboratório.3 É evidente que substâncias químicas presentes na erva podem ter resultados diversos e potentes tanto em células normais quanto malignas.

No entanto, o que achei mais fascinante é o fator de possuirmos um sistema de canabinoide natural ou “endógeno”. Em 1988, pesquisadores identificaram um local de chegada, ou receptor, na superfície das células cerebrais que retêm o THC. O primeiro receptor foi chamado de canabinoide receptor 1, ou CB1.4 Cinco anos depois, descobriu-se um segundo receptor para canabinoides, CB2.5  Esta última proteína receptora era menos frequente no sistema nervoso central, mas numerosa em leucócitos. Novamente, foi Raphael Mechoulam quem descobriu o primeiro canabinoide endógeno, um ácido adiposo no cérebro, o qual chamou de “anadamida”. (O nome vem do sânscrito ananda que significa “bem-aventurança”.) A ligação entre a anandamida e o CB1 produz uma avalanche de mudanças bioquímicas em nossos neurônios.6

Outro canabinoide endógeno foi identificado posteriormente. Isso faz sentido em termos de evolução, na medida em que os receptores CB1 e CB2 estariam ausentes em nossas células, se não criássemos moléculas de forma natural para atracar nesses receptores. As ramificações fisiológicas dos canabinoides endógenos mostram-se bastante amplas; seus efeitos mais impressionantes relacionam-se à percepção e à reação a dor.

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A cannabis é uma das mais antigas drogas psicotrópicas em uso contínuo. Arqueologistas confirmam a tese em escavações na Ásia que remontam ao período Neolítico, por volta de 4000 a.C. A espécie mais comum da erva é a Cannabis sativa, presente em climas tropicais e temperados. Marijuanaé um termo mexicano que se referia inicialmente a fumo barato e hoje designa as folhas e flores secas do cânhamo. Haxixe é em um termo em árabe para o cânhamo indiano e se refere a sua viscosa resina. Acredita-se que o imperador chinês Shen Nung, que descobriu também o chá e a efedrina, foi um dos primeiros a relatar o uso terapêutico da cannabis em um compêndio médico que data de 2737 a.C. Em 1839, William O’Shaughnessy, médico britânico que trabalhou na Índia, publicou um artigo sobre o uso da cannabis como analgésico e estimulante de apetite que também modera náusea, relaxa os músculos, e pode melhorar ataques epiléticos. Suas observações abriram caminho para um uso amplo da cannabis para fins medicinais no Reino Unido: chegou a ser prescrito à rainha Vitória para aliviar o desconforto menstrual.7
A planta de cannabis contém cerca de 460 compostos, entre mais de 60 canabinoides. THC, a substância psicoativa chave na maconha, aumentou de cerca de 1-5% para 10-15% nas plantas cultivadas desde os anos 60. Ao furmar-se a erva, 20-50% de THC é absorvido pelos pulmões. Ao comê-la, menor quantidade de THC atinge o cérebro porque a substância sofre metabolização ao passar do intestino em direção ao fígado. O THC acumula-se em tecidos adiposos, do qual é liberado devagar, e age primariamente no receptor CB1 na região do sistema dopaminérgico mesolímbico, que, acredita-se, contribui positivamente para o prazer e a excitação da droga.8

Embora fumar ou ingerir cannabis provoque, em geral, uma sensação de estar “chapado”, de forma relaxada e eufórica à medida que a ansiedade e a precaução diminuem, alguns usuários de primeira viagem, assim como pessoas com transtornos psicológicos, podem sentir mal-estar, medo e pânico. Ao ficar chapado, é comum sentir-se um nível de sociabilidade bastante elevado, embora possa haver forte retraimento para aqueles que reagem de forma disfórica. A percepção do tempo é alterada, a sensação em geral é de que as horas passam mais rápido; a percepção de espaço também muda, e as cores parecem mais nítidas e a música mais vibrante. Altas doses de cannabis podem levar a alucinações, costume religioso em algumas culturas. Diferente do ópio, não há casos de morte registrados por overdose de THC, provavelmente porque os canabinoides não inibem os canais respiratórios, que resultaria em asfixia. Para o usuário regular, a falta de maconha pode causar uma síndrome de abstinência incômoda e perturbadora.

Em 2008, a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou uma pesquisa sobre saúde mental com 54.068 participantes com mais de 16 anos em 17 países. Na pesquisa, pelo menos 160 milhões de pessoas entre 15 e 65 anos admitiram ter usado maconha pelo menos uma vez; o menor uso foi constatado na República Popular da China, 0,3%, e o maior nos Estados Unidos, 42,4%, com a Nova Zelândia em segundo lugar.9

Apesar do vasto consumo, a maconha ainda é ilegal na maior parte dos países. Harry J. Anslinger, um importante proibicionista, pressionou com sucesso o congresso norte-americano para passar a Lei Fiscal da Maconha de 1937, deixando o acesso à erva mais custoso. Anslinger foi diretor da Secretaria Federal de Narcóticos e falou em público que a maconha era um verdadeiro perigo, uma “um barato louco”. A Associação Médica norte-americana se opôs à Lei Fiscal da Maconha, temendo que a medida pudesse limitar o estudo clínico e potenciais receitas médicas. Em 1942, depois de muito tempo listada no United States Pharmacopeia, um compêndio de regras para remédios e alimentos, a cannabis foi removida.

Em 1970, o congresso aprovou a Lei de Substâncias Controladas, que classificou a maconha junto com a heroína como droga do Anexo 1. Drogas nessa categoria podem viciar e não há nenhum valor medicinal. (Ópio, base da morfina, e anfetaminas pertencem ao Anexo II, e são classificadas como menos nocivas apesar de suas propriedades altamente viciantes.) Logo depois, o presidente Nixon lançou a “guerra às drogas”, e, em 1986, o presidente Reagan assinou a Lei Antidrogas, que condenava pessoas à prisão sem liberdade condicional por posse e venda de todas as drogas ilegais, inclusive maconha.

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O estudo dos canabinoides, tanto os que provêm da planta quanto os endocanabinoides que existem naturalmente em nosso corpo, é uma grande iniciativa global que reúne diversos cientistas do meio acadêmico e de empresas farmacêuticas.

Mitch Earleywine, renomado pesquisador de drogas e vício na Universidade de Albany (SUNY), apontou a semelhança dos resultados dos estudos atuais sobre a maconha com os borrões do teste de Rorschach: “As pessoas veem essas figuras ambíguas do ponto de vista delas e revela-se mais sobre elas do que sobre a tinta.” Muitos que criam políticas públicas ou estão associados a grupos de interesse respondem à pesquisa com a maconha de acordo com a visão desses grupos, argumenta ele. Suas interpretações evidenciam mais seus próprios preconceitos que as informações factuais. Por exemplo, os proibicionistas defendem que o THC frequentemente aparece no sangue de sujeitos envolvidos em acidentes de carro; só omitem o fato de que muitos desses indivíduos também consumiram bebidas alcoólicas. Antiproibicionistas citam pesquisas que mostram que usuários crônicos não possuem nenhum sinal de perda memória, mas não mencionam que os testes cognitivos são tão fáceis que mesmo uma pessoa mentalmente incapaz poderia fazê-lo.

Duas análises recentes evitam tais vieses e examinam de modo crítico as informações colhidas em mais de centenas de testes clínicos aleatórios envolvendo placebos controlados em cerca de 6.100 pacientes de diferentes condições médicas.10 A maconha parece útil no tratamento de anorexia, náusea e vômito, glaucoma, síndrome do intestino irritável, espasmos musculares, esclerose múltipla, sintomas da esclerose lateral amiotrófica (mal de Lou Gehrig), eplepsia, e síndrome de Tourette. (Testes clínicos recentes confirmam muitas das teses do imperador Shen Nung e do Dr. O’Shaughnessy.) Apesar das descobertas em experiências no meu laboratório e outras, os efeitos anticancer em pacientes são mais duvidosos e nem o THC nem o CBD são comprovadamente agentes antineoplásticos, isto é, adequados para tratar o crescimento anormal de tecido.

Judy Foreman, uma excelente jornalista da área médica, dedica um capítulo à maconha no seu mais recente livro A Nation in Pain: Healing Our Biggest Health Problem11 [Uma nação em dor: curando nosso maior problema de saúde, em tradução livre]. De forma lúcida, ela examina as informações sobre riscos e benefícios da maconha enquanto terapia para pacientes com dor, destacando onde parece melhorar, e onde é insuficiente, e onde não é possível afirmar valor algum com clareza. Foreman escreve:
Para irmos direto ao ponto, a maconha funciona. Não de forma muito impressionante, mas tão bem quanto os opioides. Isto é, pode reduzir dor crônica em mais de 30%. E com poucos efeitos colaterais sérios. Para se ter certeza, alguns estudiosos acham muito cedo considerar a maconha e os canabinoides sintéticos como tratamento de primeira linha para dor, argumentando que outras drogas devem ser testadas antes. Essa visão, porém, pode ser cautelosa demais.”
No fim das contas, a maconha pode ser utilizada em combinação com opioides como a morfina, permitindo menores doses e poucos dos efeitos colaterais decorrentes dos analgésicos da família opioide. Embora a maconha amenize a dor crônica, seu impacto é mínimo em dores agudas, como depois de uma cirurgia.

Como a cannabis reduz a dor? Alguns dos benefícios podem resultar da dissociação cognitiva: você percebe que a dor é patente, mas não reage a ela emocionalmente. Se você consegue separar-se da dor assim, há menos sofrimento.

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Toda terapia, seja droga ou procedimento cirúrgico, requer um equilíbrio entre benefícios versus riscos. Talvez a preocupação mais controversa e importante sobre os canabinoides é a possibilidade de aumentar o risco de psicoses como esquizofrenia, situação mais recorrente entre adolescentes e jovens. Muitos estudos analisaram a saúde de jovens na Suécia, Nova Zelândia e Holanda, que admitiram uso de maconha, em comparação aos jovens que não usavam. A conclusão de pelo menos 36 estudos relacionaram o uso de cannabis ao desenvolvimento posterior de esquizofrenia e outras psicoses.12

A limitação de tais estudos observacionais é que eles sugerem uma associação, mas de modo algum provam uma ligação causal. De fato, na literatura médica há incontáveis estudos observacionais que foram levados a sério, mas depois se mostraram ultrapassados quando testes com placebo controlados vieram à tona. O Women’s Health Iniciative é um bom exemplo. Trata-se de uma pesquisa aleatória, com placebos controlados, que desmentiu o pensamento de quatro décadas sobre os benefícios alegados da terapia de substituição hormonal em mulheres na pós-menopausa, na prevenção de demência e doenças do coração. Não é possível conduzir uma pesquisa aleatória controlada com centenas de adolescentes, escolhendo um grupo para fumar ou ingerir cannabis e outro para receber placebos. Portanto, a relação causal entre maconha e o desenvolvimento de esquizofrenia e outras psicoses permanecerá um caso não resolvido.

O que está provado é que a maconha afeta reações cognitivas e psicomotoras. Numerosos estudam revelam que a droga retarda o tempo de reação de uma pessoa e prejudica a atenção, a concentração, a memória de curto prazo e a avaliação de riscos. As mudanças na performance psicomotora podem ir além da sensação de estar “chapado”.  Testes com pilotos profissionais concluíram que a maconha prejudicou a condução em um simulador de voo por até 24 horas.13 Além disso, a maioria dos pilotos não percebeu que o efeito durou até o dia seguinte. Muitas pesquisas relacionaram a cannabis a acidentes de carro: estima-se que motoristas que usaram maconha são de duas a sete vezes mais propensos a se envolver em acidentes que aqueles que não usaram drogas ou álcool.14

A Associação Americana Psiquiátrica, em seu novo dicionário médico (DSM-5), definiu o diagnóstico de “transtorno do uso de cannabis”. Essas pessoas têm por hábito o uso com consequências nocivas, como inaptidão de desempenhar grandes responsabilidades no trabalho e problemas sociais persistentes em família. Tanto o DSM-5 quanto o International Classification of Diseases 10th edition (ICD-10) também incluem uma lista de possíveis sintomas da abstinência de maconha: fatiga intensa, sonolência, retardo psicomotora, ansiedade e depressão.15 Há ainda um debate caloroso sobre se a maconha vicia ou não. Proponentes da maconha duvidam que possa haver vício real, condição psicológica com desejo e uso compulsivo a despeito de seus males. Argumentam também que a dependência, caso haja alguma, é menos nociva do que em outras drogas. Oponentes da maconha, principalmente aqueles dos institutos nacionais de saúde,afirmam que dependência e vício são riscos reais, embora em um percentual mais baixo do que a cocaína ou heroína.16

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O livro A New Leaf [Uma nova folha, em tradução livre] detalha a história da regulação da maconha, apresentando em pormenores os conflitos legais e políticos em torno da proibição. Artigos recentes das revistas The New Yorker17 e The Nation18 descrevem de maneira sucinta a seara política em torno da legalização da maconha para uso médico ou recreativo nos Estados Unidos. No artigo da The New Yorker, o professor Mark Kleiman, especialista em política de drogas da Universidade da Califórnia em Los Angeles, vê a legalização do ponto de vista de um cientista, como se fosse uma experiência em andamento. A legalização testará um grupo de hipóteses sobre políticas públicas, e ele prefere não concluir nada até que mais informações estejam disponíveis.

Assim como toda iniciativa social, consequências negativas são prováveis, e Kleiman defende um monitoramento minucioso do uso excessivo entre adolescentes e da direção sob influência da maconha quando disponível para uso recreativo. Ele, “aparentemente”, segundo a reportagem da The New Yorker, “obtém um prazer mórbido ao informar aos políticos que eles subestimam a complexidade do problema”. Outra grande preocupação é que quando a maconha legal estiver à venda no estado de Washington, o mercado negro existente não desaparecerá; ou melhor, a maconha legal e de venda livre competirá com fontes ilícitas. Kleiman defende que para apoiar o mercado legal, deve haver ainda mais rigor na lei para aqueles que não respeitam as regras. E, em Washington, poucos congressistas querem ouvir tal proposta.

De igual maneira, Kleiman não acha que o álcool será menos visado se a maconha for legalizada. Embora reconheça que o álcool é a mais perigosa das duas drogas, o professor levanta a possibilidade de que a maconha possa ser consumida de forma complementar à bebida alcoólica. Concluindo, ele enxerga: “O mundo maniqueísta da política” – o pêndulo pode ir da ilegalidade da maconha, venda e uso levando à prisão até “aqueles que acham que ‘deveríamos vendê-la como água’”.

Em contraste com a matéria cautelosa do The New Yorker, os artigos da revista The Nation propõem uma evidente endosso à legalização. Na capa da revista, uma foto do jovem Barack Obama com o V da vitória ao lado de colegas apinhados ao redor da logo da “Choom Gang” [grupo conhecido nos anos 70 por jogar basquete e puxar “unzinho”]. O editorial, assinado por Katrina vanden Heuvel, pontua que os últimos presidentes, entre eles Bill Clinton, George W. Bush e Barrack Obama, todos “de uma forma ou outra não respeitaram as leis norte-americana de drogas”, portando ou fumando cannabis. Se tivessem sido flagrados pela polícia, poderiam estar presos, sem qualquer chance de uma carreira na Casa Branca. O livro A New Leaf destaca os riscos de prisão por porte de maconha. A discriminação racial, com um número desproporcional de afro-americanos presos, é a triste realidade da proibição:
Enquanto os usuários de cannabis que são encaminhados à delegacia raramente vão para a prisão, há ainda mais de 30 mil pessoas presas por mero porte. Segundo um amplo relatório de 2013 publicado pela União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), entre 2001 e 2010 houve mais de oito milhões de detenções por maconha nos Estados Unidos (88% por porte), e o cumprimento da lei por porte custa sozinho mais de 3,6 milhões de dólares em 2010. Em todo o país, os negros têm quase quatro vezes mais probabilidade que os brancos de serem detidos por porte, apesar de índices de uso praticamente iguais; em alguns países, o número aumenta de 4 a 30 vezes. Enfim, 62% dos capturados têm menos de 24 anos, o que significa que isso constará em sua ficha ao longo da vida adulta.”
Todo esse desperdício de horas, dinheiro e prisões tiram a atenção do uso indiscriminado e do tráfico de drogas:
Novamente, quando a maconha – que responde por 80% dos entorpecentes ilegais nos Estados Unidos – for retirada da guerra contra as drogas, o país poderá efetivamente discutir e implantar uma nova e mais flexível política de saúde pública para outras drogas pesadas.”

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Há muitos anos, recebi uma consulta de uma jovem com anemia. O clínico tinha feito uma avaliação completa da sua condição, mas não achou motivo para a doença. A paciente tinha passado por períodos estressantes no trabalho, e quando perguntei como lidava com isso, ela disse que costumava fumar maconha toda noite. Segundo o exame de medula óssea, havia número reduzido de células, não tão grave para ser classificado como anemia plástica, mas sem dúvida anormal para uma mulher com vinte e poucos anos. Os numerosos componentes da cannabis não são tidos como tóxicos para as células sanguíneas; fumar maconha nunca causou anemia. Lembro-me, porém, que algumas colheitas ilícitas têm sido tratadas com toxinas que podem apresentar efeitos perniciosos ao desenvolvimento de células sanguíneas.

Então, juntos decidimos suspender o fumo, e depois de alguns meses a anemia estava resolvida. Um exame subsequente de medula óssea revelou a restauração completa dos números normais de células sanguíneas. Não foi uma prova definitiva, mas certamente sugeriu que algo da erva que ela comprara de um traficante foi a causa. Se não houver uma fiscalização adequada da maconha à venda, aqueles que procuram a cannabis de rua podem se expor a perigosos ingredientes.

No livro Weed Land [Terra da marola, em tradução livre], Peter Hecht, jornalista do The Sacramento Bee, mapeia a evolução da lei da maconha para fins medicinais na Califórnia, a primeira dos Estados Unidos.19 Muito do apoio para sua jornada veio da união de forças entre ativistas da Aids e médicos acadêmicos como Donald Abrams do hospital geral de São Francisco, que comprovou os benefícios clínicos para apetite aumentado e alívio de dor em pacientes com caquexia decorrente do HIV. Maconha para fins médicos, agora legal em vinte estados mais o Distrito de Columbia, é regulamentada mais como suplemento que como uma droga. Não há uma padronização de porções ideais para o THC psicoativo e o CBD não psicoativo, embora devam ser sem toxinas. (Um empresa britânica, GW Pharmaceuticals, fabrica o Sativex, um spray oral que contém extratos de duas variedades de cannabis padrão que são misturadas para dar doses exatas de THC e BD. O Sativex foi aprovado em muitos países, mas não nos Estados Unidos.) *Nota do tradutor: No Brasil, segundo reportagem da Superinteressante, a Anvisa lançará um roteiro para importar o medicamento ainda em 2014.

Para um médico como eu, prescrever terapia é uma situação desconfortável, porque a receita médica deve especificar a quantidade exata da droga recomendada. Além disso, efeitos colaterais podem ocorrer em pacientes que tomam múltiplos medicamentos, devido à chamada “interações droga-droga”. Essas interações não foram bem examinadas em relação ao THC e o CBD, em parte por causa do acesso restrito à planta para a comunidade de pesquisada clínica. Os cientistas em meu laboratório estudaram substâncias químicas puras, THC e CBD, sob restrita supervisão federal; compramos os canabinoides de empresas químicas que usam controle de qualidade. Como apontam Martin e Rashidian, o estudo médico da planta em si, contendo as susbtâncias químicas ativas, é outra questão:
O governo federal impôs uma série de restrições adicionais e exclusivas para a pesquisa com a cannabis, com pouca sensatez – exceto no campo político. O governo concedeu a uma única instituição, a Universidade do Mississipi, a permissão de cultivar cannabis legalmente para pesquisa em nome do Estado, embora seja livre para contemplar outros contratos. E a cannabis é a única substância para pesquisa cujo único provedor é o governo. Para um cientista obter cannabis da fazenda federal, na Universidade do Mississipi, é preciso um montão de aprovações… do FDA, DEA, do conselho do Serviço de Saúde Pública.”
Talvez, à medida que os estados legalizem a maconha, essa barreira à pesquisa possa ser menor, assim como foi para a pesquisa com células-tronco, antes restrita, nos EUA, por lei federal. E, quanto mais estudos sobre a maconha para fins médicos ou recreativos aparecerem, é provável que oponentes e entusiastas descubram que não estavam nem totalmente certos, nem totalmente errados.

1. Mohamed Ben Amar, “Cannabinoids in Medicine: A Review of Their Therapeutic Potential,” Journal of Ethno-pharmacology, Vol. 105 (2006); Arno Hazekamp and Franjo Grotenhermen, “Review on Clinical Studies with Cannabis and Cannabinoids 2005–2009,” Cannabinoids, Vol. 5 (2010).

2. Y. Maor, J. Yu, P.M. Kuzontkoski, B.J. Dezube, X. Zhang, and J.E. Groopman, “Cannabidiol Inhibits Growth and Induces Programmed Cell Death in Kaposi Sarcoma–Associated Herpesvirus-Infected Endothelium,” Genes & Cancer, Vol. 3, No. 7–8 (2012); X. Zhang, J.F. Wang, G. Kunos, and J.E. Groopman, “Cannabinoid Modulation of Kaposi’s Sarcoma–Associated Herpesvirus Infection and Transformation,” Cancer Research, Vol. 67, No. 15 (August 1, 2007).

3. S. Ghosh, A. Preet, J.E. Groopman, and R.K. Gaju, “Cannabinoid Receptor CB 2 Modulates the CXCL 12/ CXCR 4-Mediated Chemotaxis of T Lymphocytes,” Molecular Immunology, Vol. 43 (2006); A. Preet, R.K. Ganju, and J.E. Groopman, “∆ 9 -Tetrahydrocannabinol Inhibits Epithelial Growth Factor–Induced Lung Cancer Cell Migration in Vitro as Well as Its Growth and Metastasis in Vivo,” Oncogene, Vol. 27 (2008); X. Zhang, Y. Maor, J.F. Wang, G. Kunos, and J.E. Groopman, “Endocannabinoid-like N-arachidonoyl Serine Is a Novel Pro-angiogenic Mediator,” British Journal of Pharmacology, Vol. 160 (2010); A. Preet, Z. Qamri, M. Nasser, A. Prasad, K. Shilo, X. Zou, J.E. Groopman, and R. Ganju, “Cannabinoid Receptors, CB 1 and CB 2, as Novel Targets for Inhibition of Non-Small Cell Lung Cancer Growth and Metastasis,” Cancer Prevention Research, Vol. 4 (2011); A. Shrivastava, P.M. Kuzontkoski, J.E. Groopman, and A. Prasad, “Cannabidiol Induces Programmed Cell Death in Breast Cancer Cells by Coordinating the Cross-Talk Between Apoptosis and Autophagy,” Molecular Cancer Therapeutics, Vol. 10 (2011).

4. W.A. Devane, F.A. Dysarz III, M.R. Johnson, L.S. Melvin, and A.C. Howlett, “Determination and Characterization of a Cannabinoid Receptor in Rat Brain,” Molecular Pharmacology, Vol. 34 (November 1, 1988).

5. S. Munro, K.L. Thomas, and M. Abu-Shaar, “Molecular Characterization of a Peripheral Receptor for Cannabinoids,” Nature, Vol. 365 (1993).

6. W.A. Devane, L. Hanus, A. Breuer, R.G. Pertwee, L.A. Stevenson, and G. Griffin, “Isolation and Structure of a Brain Constituent That Binds to the Cannabinoid Receptor,” Science, Vol. 258 (December 18, 1992).

7. D. Baker, G. Pryce, G. Giovannoni, and A.J. Thompson, “The Therapeutic Potential of Cannabis,” Lancet Neurology, Vol. 2 (May 2003).

8. Mitch Earleywine, Understanding Marijuana: A New Look at the Scientific Evidence (Oxford University Press, 2002).

9. L. Degenhardt, W.T. Chiu, N. Sampson, et al., “Toward a Global View of Alcohol, Tobacco, Cannabis, and Cocaine Use: Findings from the WHO World Mental Health Surveys,” PLoS Medicine, Vol. 5 (July 2008).

10. See Amar, “Cannabinoids in Medicine: A Review of Their Therapeutic Potential,” and Hazekamp and Grotenhermen, “Review on Clinical Studies with Cannabis and Cannabinoids 2005–2009.”

11.Oxford University Press, 2014

12. M. Large, S. Sharma, M.T. Compton, T. Slade, O. Nielssen, “Cannabis Use and Earlier Onset of Psychosis,” Archives of General Psychiatry, Vol. 68, No. 6 (2011).

13. V.O. Leirer, J.A. Yesavage, and D.G. Morrow, “Marijuana Carry-Over Effects on Aircraft Pilot Performance,” Aviation, Space, and Environmental Medicine, Vol. 62, No. 3 (1991); D.G. Newman (Australian Government, Australian Transport Safety Bureau), “Cannabis and Its Effects on Pilot Performance and Flight Safety: A Review” (2004).

14. M. Asbridge, J.A. Hayden, and J.L. Cartwright, “Acute Cannabis Consumption and Motor Vehicle Collision Risk: Systematic Review of Observational Studies,” BMJ, Vol. 344, No. 14 (2012).

15. D.S. Hasin, K.M. Keyes, D. Alderson et al., “Cannabis Withdrawal in the United States: Results from NESARC,” Journal of Clinical Psychiatry, Vol. 69, No. 9 (2008).

16. See Baker et al., “The Therapeutic Potential of Cannabis,” and Foreman, A Nation in Pain.

17. Patrick Radden Keefe, “Buzzkill,” The New Yorker, November 18, 2013.

18. Katrina vanden Heuvel, “Why It’s Always Been Time to Legalize Pot,” and other articles in The Nation ’s “Special Issue: Marijuana Wars,” November 18, 2013.

19. Peter Hecht, Weed Land: Inside America’s Marijuana Epicenter and How Pot Went Legit (University of California Press, May 2014). 

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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