PICICA: "UPPs, governos e Rede Globo (e suas
concorrentes da grande mídia) estão, como é bastante notório, unidos
nesse projeto. Controlar territórios pobres de modo militarizado, não
para garantir a segurança daquela população, mas para discipliná-la como
público consumidor e assujeitado. O “Esquenta” de hoje, ao não
enfrentar a falência das UPPs ou enfrentar o tema da violência policial,
mostrou-se como dimensão contraditória desse projeto. Contraditória
porque esse programa, justamente por ser uma tentativa de disputar a
representação simbólica da classe subalterna em ascensão (como parte do
esforço de domesticá-la), precisa mostrá-la como sujeito, de alguma
maneira – mesmo uma versão bastante parcial e disciplinada desse
sujeito. Ao fazer isso, abre um terreno de disputa menos desvantajoso
para a autoexpressão desse sujeito e de suas lutas do que a programação
“comum” da Rede Globo e das demais grandes emissoras de TV.
Como disse o megainvestidor
norte-americano Warren Buffett, lembrado outro dia pelo Vladimir
Safatle: “Quem disse que não há luta de classe? Claro que há, e nós
estamos vencendo”. Não sei quem está vencendo, sei que precisamos
refinar nossos instrumentos de análise, pois tanto as estratégias de
resistência e produção subalterna, como as de tentativa de seu
apassivamento, apropriação e direcionamento, têm se sofisticado. Mais
útil do que celebrar as pequenas aberturas como se fossem
revolucionárias, ou lamentar de modo impotente o fato de que não o são, é
investigar a realidade dialeticamente, para pensar estratégias que
alarguem a materialidade dessas frestas e evitem seu disciplinamento."
“Esquenta!”, DG e a disputa pela representação da nova classe trabalhadora
Vejo o “Esquenta” como um dos retratos do
empoderamento conquistado por uma classe subalterna durante os anos
Lula, e também de seus limites (que parecem cada vez mais incontornáveis
nos moldes da atual governabilidade conservadora).
Esse empoderamento veio, como se sabe,
pela conquista de aumento do poder de consumo. Um empoderamento que pode
ser frágil e sem dúvida algum contraditório, mas foi empoderamento,
porque o acesso a esses bens ampliou as condições materiais de
autocomunicação e auto-organização desses setores – veja-se os
“rolezinhos”, um dos exemplos mais marcantes desse fenômeno. Frágil,
porque é preciso analisar o peso do endividamento das famílias nessa
expansão do consumo, e mais ainda porque basicamente não se tocou nas
estruturas que concentram poder – material e ideológico – nas classes e
setores dominantes.
Porém, embora não se tenha enfrentado
essas estruturas, elas não ficaram imunes à maior inclusão desse setor
subalterno no mercado de consumo. Não se promoveu a democratização dos
meios de radiodifusão nem se mexeu, aparentemente, nos privilégios
fiscais de Globo e cia, mas fica cada vez mais difícil para a Globo e
cia ignorarem a existência dessa classe em relativa ascensão econômica.
Engana-se redondamente quem pensa que
basta, para não perder a hegemonia ideológica e de mercado sobre esse
setor, fazer propaganda dirigida para ele (o que tem acontecido
bastante, claro). A Globo sabe que seu grande concorrente, cada vez
mais, é a internet, com suas redes de autoprodução e difusão de cultura e
entretenimento, inclusive entre esse segmento de trabalhadores pobres.
Prova disso é a reformulação que está fazendo em diversos programas para
tentar torná-los mais “interativos” e parecidos com as redes sociais –
não assisti ao Fantástico de ontem, mas dizem que foi mais um marco
nesse sentido. Então, preocupada com a hegemonia de audiência e
ideológica sobre o setor pobre consumidor, o ‘consumitariado’, a Globo
sabe que, cada vez mais, não bastará mostrá-lo como objeto; é preciso,
tal como acontece nas redes sociais, promover sua inclusão como sujeitos
produtores de cultura e entretenimento, em alguma medida.
O “Esquenta” é a principal resposta da
Globo, até aqui, a esse duplo movimento: à ascensão consumidora de uma
classe, e às mudanças forçadas pela nova lógica social de produção e
comunicação, em escala global (cujas raízes não cabe examinar neste
texto), que têm como grande símbolo as redes sociais.
Não é por acaso, então, que Douglas
Silva, o DG, um dos jovens negros assassinados numa favela do Rio de
Janeiro nessa semana, fosse um dançarino de destaque do Esquenta, e não
do Fantástico, Domingão do Faustão, do programa do Luciano Huck, Fátima
Bernardes, Ana Maria Braga ou Serginho Groisman. Obviamente, nesses
outros programas também devem trabalhar jovens pobres e negros de
favelas do Rio de Janeiro. Porém, muito provavelmente, não na mesma
proporção do Esquenta, e o mais importante: não tanto diante das
câmeras, e muito menos em posições de destaque e como porta-vozes da
estética produzida pelos segmentos da periferia, como no programa de
Regina Casé. Estética essa que não é homogênea, claro, e que é
seletivamente recortada nas suas representações admitidas e priorizadas
no “Esquenta!”.
O Esquenta é, pois, uma pequena abertura
conquistada pelas lutas dessa classe em relativa ascensão. Conquistada
pelas lutas, sim: as pequenas grandes conquistas do ciclo lulista – não
só Bolsa-Família, mas, mais ainda, políticas como o aumento real
sustentado do salário-mínimo – foram arrancadas do poder: respostas do
Estado para tentar se legitimar diante de anos e anos de mobilização
popular por justiça social. É claro que a resposta lulista foi limitada,
deu-se nos marcos de não promover reformas estruturantes; e por isso
mesmo, parece delinear-se não só sua precariedade, como seu esgotamento.
Porém, isso não muda o fato de que esses parcos avanços foram obtidos
pelas lutas, como tentativas dos poderosos de “dar os anéis (ou nem
isso) para não perder os dedos”. De modo análogo, o programa “Esquenta”.
Dada a função que cumpre e sua composição
social de classe (no palco e na audiência), o Esquenta não tinha como
não se dedicar, hoje, à morte de seu dançarino Douglas DG, não tinha
como não contextualizá-la como mais um episódio brutal da violência
contra a juventude pobre e negra das periferias do Rio de Janeiro e do
Brasil… Devemos comemorar, pois, que se tenha falado nesses assuntos,
ainda que de modo passageiro e superficial, no programa de Regina Casé
de hoje. Trata-se de um furo do bloqueio midiático sobre a discussão
desses temas, conquistado pelas lutas dos movimentos negros, das
periferias, de cultura, populares.
Porém, basta olhar com um pouco mais
atenção para a edição de hoje do Esquenta para se perceber os limites e o
caráter contraditório da “abertura” em que ele consiste. Praticamente
não se falou da violência policial sistemática dirigida contra a população pobre e negra das favelas. Não se tocou no fato de que o Estado é um dos grandes instrumentos desse ciclo de criminalização da pobreza e da juventude negra.
O tom geral foi o de se falar da
violência em abstrato, sem denunciar as políticas de segurança pública
como parte fundamental desse quadro violento. Contraditoriamente, o
discurso genérico “contra a violência” que marcou o programa de hoje
pode alimentar justamente a legitimação da resposta policialesca que é
parte do problema, e não de sua solução. A resposta do governo do Rio à
morte de DG, que tem indícios sérios de responsabilidade da polícia, é
bastante eloquente sobre isso: na repressão ao protesto da população
indignada da comunidade do Pavão-Pavãozinho, mais um jovem morto pela
ação da PM: Edilson da Silva.
Não é uma coincidência que o Esquenta de
hoje não tenha falado sobre Edilson. Não era conveniente para os
interesses da Globo lembrar que insistir na resposta policial à
violência só vem agravando-a ainda mais (perdi o começo do programa e
posso ter tido algum lapso de atenção, mas, caso alguém tenha tocado no
tema por lá, foi de modo extremamente passageiro e sem desdobrar a
crítica). Mais conveniente era falar de combater a violência, em
abstrato, e até mesmo a impunidade (!), como o fez Jô Soares no programa
(e não para falar de impunidade de policiais…). Ou seja: a solução
seria punir ainda mais… Como se os jovens das favelas já não estivessem
sendo punidos, muitas vezes com a morte, por sua condição social e
identidade racial.
Significativas, também, foram outras
falas do Esquenta, como a de Fátima Bernardes. A apresentadora disse que
o Estado tem de estar presente na favela também com educação. É claro
que já é alguma coisa reconhecer-se a necessidade de superação da
desigualdade no acesso à educação, saúde, etc. Porém, a armadilha desse
tipo de discurso é que critica a omissão do Estado, mas silencia diante
da outra face complementar dela: o inchaço de seu aparato repressor.
Esse é o discurso que se tenta construir, agora, para legitimar a
ocupação militarizada das favelas: o problema não estaria exatamente
nela, mas na ausência das políticas sociais. Ou seja, uma vez que se
“compense” a violência sistemática, a criminalização da pobreza, com
“políticas sociais” (“UPP social”), aí o problema estaria resolvido…
Como se não fosse preciso mudar radicalmente as políticas de segurança
pública, como se elas e a omissão do braço social do Estado não fossem
parte de uma mesma política.
O fato é que são. O projeto das UPPs
mostra muito bem isso, como parte de uma lógica de gestão neoliberal da
pobreza. Neoliberal?! Sim. O neoliberalismo produz a “ascensão do Estado
penal”, “em resposta à crescente inseguridade social, e não à
insegurança criminal”, diz o sociólogo Loïc Wacquant, autor da já
clássica obra “Punir os pobres: o governo neoliberal da inseguridade
social” (2009). O “neoliberalismo realmente existente”, diz Wacquant,
consiste não na redução do Estado (conforme sua propaganda ideológica),
mas em sua reengenharia, na “construção de um Estado forte capaz de
opor-se de modo efetivo à resistência social à mercantilização e de
moldar culturalmente subjetividades em conformidade com isso”. Trata-se,
diz ainda o francês radicado nos Estados Unidos, de uma “articulação
entre Estado, mercado e cidadania que direciona o primeiro para impor o
selo da segunda na terceira”.
O Estado não diminui, mas ganha um novo
perfil, ainda mais forte como máquina de estratificação social a serviço
da mercantilização. No caso da “ocupação” das favelas, isso fica
bastante claro: o projeto das UPPs envolve não apenas o disciplinamento
político de uma classe via repressão explícita, mas também uma disputa
econômica pelo controle do mercado consumidor e produtivo dos
territórios “pacificados”… A retórica é de que o controle territorial
pelo Estado teria por fim “levar serviços básicos” às favelas, mas o que
se tem registrado não é isso.
A disputa pelo controle da economia dos
territórios das favelas alcança não apenas a concorrência comercial pela
prestação de alguns serviços, mas, de modo bastante central, a ofensiva
de inclusão daquelas terras no mercado imobiliário dominado pelas
grandes empresas “do asfalto”. Não por acaso, tem se registrado alta
brutal de preços dos imóveis de favelas “pacificadas”, o que tem
expulsado a pobreza para áreas mais periféricas do Rio e gerado lucros
exorbitantes para o capital imobiliário.
Vale lembrar que em janeiro deste ano, o
secretário de segurança pública do Rio de Janeiro foi homenageado pelo
Esquenta devido ao seu trabalho com as UPPs. Foram blocos e mais blocos
que falavam dos benefícios das Unidades, contradizendo outros muitos
veículos midiáticos populares que trataram do assunto.
UPPs, governos e Rede Globo (e suas
concorrentes da grande mídia) estão, como é bastante notório, unidos
nesse projeto. Controlar territórios pobres de modo militarizado, não
para garantir a segurança daquela população, mas para discipliná-la como
público consumidor e assujeitado. O “Esquenta” de hoje, ao não
enfrentar a falência das UPPs ou enfrentar o tema da violência policial,
mostrou-se como dimensão contraditória desse projeto. Contraditória
porque esse programa, justamente por ser uma tentativa de disputar a
representação simbólica da classe subalterna em ascensão (como parte do
esforço de domesticá-la), precisa mostrá-la como sujeito, de alguma
maneira – mesmo uma versão bastante parcial e disciplinada desse
sujeito. Ao fazer isso, abre um terreno de disputa menos desvantajoso
para a autoexpressão desse sujeito e de suas lutas do que a programação
“comum” da Rede Globo e das demais grandes emissoras de TV.
Como disse o megainvestidor
norte-americano Warren Buffett, lembrado outro dia pelo Vladimir
Safatle: “Quem disse que não há luta de classe? Claro que há, e nós
estamos vencendo”. Não sei quem está vencendo, sei que precisamos
refinar nossos instrumentos de análise, pois tanto as estratégias de
resistência e produção subalterna, como as de tentativa de seu
apassivamento, apropriação e direcionamento, têm se sofisticado. Mais
útil do que celebrar as pequenas aberturas como se fossem
revolucionárias, ou lamentar de modo impotente o fato de que não o são, é
investigar a realidade dialeticamente, para pensar estratégias que
alarguem a materialidade dessas frestas e evitem seu disciplinamento.
PS: este texto foi aprimorado pelo
diálogo com o professor Edson Farias e por sugestões da Anne Botelho.
Obviamente, porém, as opiniões registradas aqui, com as imprecisões que
possam ter, são de responsabilidade unicamente minha.
Fonte: Imaginar para revolucionar
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