PICICA: "A notícia: no facebook tem um grupo Nheengatu on line,
com quase cem membros, onde diariamente se escreve e se troca
informações nesta língua. Foi lá que os usuários tomaram conhecimento do
dicionário de Stradelli, lançado no momento em que a banda dos Titãs apresenta Nheengatu, seu novo álbum com capa reproduzindo pintura do século XVI - Torre de Babel - de Pieter Bruegel."
O NHEENGATU QUE DÁ BARATO
José Ribamar Bessa Freire
25/05/2014 - Diário do Amazonas
Tinha
cara de bebê chorão. Morava na Ilha do Governador, no Rio. Não lembro
mais o nome dele. Agnaldo ou Agnando, uma coisa assim, mas era conhecido
como Pindá. Como qualquer vendedor de drogas em porta de escola,
percorria diariamente universidades para abastecer a clientela, cujos
vícios e gostos conhecia muito bem. Na UERJ, se esgueirava pelos
corredores, qual felino de mansa pisada. Ia de sala em sala, levando a
mercadoria. Silencioso e discreto, só abordava os consumidores
potenciais sem presença de testemunhas. Um belo dia, sumiu. Dizem que
foi preso.
Conheci-o
há mais de vinte anos. Quem nos apresentou, se não me engano, foi
Gilberto, um professor de engenharia, que era chegado na coisa e da qual
era também dependente:
- Esse é Pindá, meu fornecedor. Mercadoria garantida. Pode confiar.
- Pindá é anzol
em Nheengatu - eu disse, explicando que Nheengatu era uma língua de
base tupi falada em todo o Rio Negro, tão viva que se tornaria depois,
em 2002, língua cooficial no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Bastou
isso para que o tráfico se fizesse carne e habitasse entre nós. Pindá,
um profissional sério, jogou o anzol e eu mordi a isca. Ele percebeu que
eu, recém transferido do Amazonas para o Rio, passava por crise aguda
de abstinência causada por suspensão brusca do uso do objeto do desejo.
No dia seguinte, voltou, abriu sua maletinha e deu o bote pingando três
pontos de exclamação:
- Olha aqui! Pra você! Coisa fina!
Ficou
observando minha reação. Vi a mercadoria armazenada dentro de uma caixa
de papel confeccionada sob medida, coberta por camada de pó branco e
cristalino. Dava uma overdose.
A dopamina
- Quanto custa? - perguntei, tentando esconder a ansiedade.
Mas
ele percebeu o aumento na frequência dos meus batimentos cardíacos. Era
experiente no trato com dependentes. Baseado - baseado mesmo - na
vontade do consumidor de experimentar sensações mais fortes, costumava
oferecer doses cavalares do produto, cada vez maiores. Deu o preço.
Custava os olhos da cara somados ao olho do pescoço em francês. Uma
fortuna!
- Muito caro. Quase um mês de salário. Tenho que pedir financiamento no banco - ironizei.
-
É coisa rara. Tá todo mundo querendo. A doutora Ruth Monserrat, lá do
Fundão, já fez uma encomenda. Aquele alemão, o Wolf Dietrich - conhece? -
paga em euro ou em dólar. Não é caro não.
Tentei desvalorizar a mercadoria para baixar o preço:
- Tem até traça... - eu disse, apontando o pó.
-
Não é traça. A caixa é de papel alcalino com cola anti-traça - ele
disse. Parecia adivinhar que naquele momento meus neurônios já liberavam
noradrenalina e dopamina. Ele nos entendia. Durante anos, nos consolou,
fornecendo o que cada um de nós precisava.
Soprei
o pó, tirei a mercadoria da caixa e comecei a folhear com cuidado. Era o
Vocabulário da Língua Geral Portuguez-Nheengatú e Nheengatú-Portuguez,
768 páginas, escrito por Ermano Stradelli e editado em 1929, depois de
sua morte, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A edição
foi feita com material vagabundo, em papel jornal, mas se trata de
raridade bibliográfica, que contém um tesouro, dificilmente encontrado
nos sebos.
Disfarcei a emoção desdenhando:
- É. Ainda bem que tenho todo ele fotocopiado.
Mentira.
Ele sabia que não era possível fotocopiar sem esfarinhar o livro. Ele
sabia que eu ia comprar, eu sabia que ele sabia que eu sabia. O que se
seguiu foi jogo de dissimulação, fingimento, embromação, rasteiras,
camuflagem. No final, aconteceu o previsível: apesar de muito choro,
mordi a isca do Pindá, comprei pelo preço que ele pediu, afinal o
dicionário era inacessível, pois nunca havia sido reeditado.
Destino do Pindá
Agora
foi. A Editora Ateliê, de Cotia (SP), acaba de reeditar, em 2014, o
dicionário de Stradelli, com revisão de Geraldo Gerson de Souza, orelha
escrita por José de Souza Martins (USP) e apresentação de Gordon
Brotherston e Lúcia Sá (Universidade de Manchester) que chamam atenção
para os usos que pode ter:
- É possível utilizar o Vocabulário de Stradelli
como um dicionário qualquer, procurando termos específicos, concordando
ou discordando das definições do autor, estudando a morfologia e a
fonética da língua. Isso não impede, todavia, que leitores interessados
na Amazônia e sua história percorram as páginas desse impressionante
trabalho na tentativa de ampliar seus conhecimentos sobre fauna, flora,
medicina, pesca, caça, agricultura, astronomia, história, política,
rituais e costumes, além de literatura e folclore indígena caboclo -
tudo isso a partir do nheengatu.
Relembrar
a história do Pindá foi a forma que encontrei para anunciar aqui o
lançamento de obra tão importante para a Amazônia e para o Brasil.
Concluo com três notas: uma pequena crítica sem qualquer demérito para a
obra, uma informação sobre o destino de Pindá e uma notícia sobre o
nheengatu, que está sendo cada vez mais falado, escrito e até cantado.
A
crítica: a bibliografia citada nesta reedição foi atualizada com outros
trabalhos, mas não há qualquer menção a muitos autores que pesquisaram o
tema, entre os quais Aryon Rodrigues, referência obrigatória quando se
trata de línguas tupi, nem qualquer indicação sobre a única história que
se tem até hoje do nheengatu - Rio Babel, a história da línguas da Amazônia
(Eduerj 2004 1ª edição e 2011 2ª edição) de autoria de um cliente
chorão e meio cabotino do Pindá, o fornecedor de livros do professor
Gilberto e de toda a Uerj..
O
destino de Pindá: foi preso não por vender obras raras por preços
exorbitantes, com estratégia de comercialização dos vendedores de droga,
que atraem a presa, seduzem e manipulam a dependência. Foi preso por
não pagar pensão alimentícia. Sumiu do mapa, levando com ele as fichas
dos professores da UERJ que mantinha mais atualizadas do que aquelas que
figuram na Plataforma Lattes.
A notícia: no facebook tem um grupo Nheengatu on line,
com quase cem membros, onde diariamente se escreve e se troca
informações nesta língua. Foi lá que os usuários tomaram conhecimento do
dicionário de Stradelli, lançado no momento em que a banda dos Titãs apresenta Nheengatu, seu novo álbum com capa reproduzindo pintura do século XVI - Torre de Babel - de Pieter Bruegel.
No entanto, é uma pena que na divulgação do novo CD se reproduza um erro histórico com a afirmação de que o nheengatu é uma "língua artificial criada pelos jesuítas no Brasil".
Nem é artificial, nem foi criada pelos jesuítas, cuja contribuição
consistiu em dotar com ortografia uma língua que já existia - e que foi
se modificando com o uso como qualquer língua - possibilitando sua
divulgação escrita na catequese e sua expansão pelos rios da Amazônia. De qualquer forma, o esforço dos Titãs por recuperar as raízes históricas do Brasil confirma que o Nheengatu falado, escrito ou cantado até na França ainda pode dar o maior barato, como queria o saudoso Pindá.
P.S1.Stradelli, E. Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português. Cotia, SP. Ateliê Editorial. 2014. 536 pgs
P.S.2 - Nheengatu on line
Fonte: TAQUIPRATI
Nenhum comentário:
Postar um comentário