PICICA: “Como podemos transformar a universidade numa instituição do comum?”
A revolução do saber vivo
29/05/2014
Por Gigi Roggero
Por Gigi Roggero, na revista Viewpoint , em 9/6/12 | Trad.: Silvio Pedrosa
“Como podemos transformar a universidade numa instituição do comum?”
–
Estamos
vivendo uma situação revolucionária. Poderíamos reformular a definição
clássica nos seguintes termos: as elites dominantes do capital global não podem mais viver como no passado; os trabalhadores, os precários, os pobres, o saber vivo se recusa a viver como no passado. Na crise global, as lutas transnacionais – das insurreições do norte da África às acampadas
na Espanha ou na praça Syntagma, do movimento universitário chileno ao
levante de Québec – são compostas pela convergência de uma classe média
empobrecida e um proletariado cuja pobreza é diretamente proporcional à
sua produtividade.
Neste
contexto, a universidade é um lugar crucial. Não tanto pela produção de
conhecimento: ao contrário, quanto mais a produção do saber se espalha
pela fábrica social, menos a universidade é um centro privilegiado de
sua transmissão – a torre de marfim está definitivamente desmoronando.
Mas a universidade é um lugar crucial das lutas, das possibilidades de
territorialização e generalização.
O
coletivo Edu-factory definiu tal contexto como uma “dupla crise” – isto
é, a crise da universidade e a crise econômica global. De fato, é
impossível compreender as transformações e lutas da universidade sem
relacioná-las às transformações e lutas do trabalho e da produção.
Então, de maneira estenográfica, esbocemos cinco tendências globais da
economia política da universidade e da sua crise. Isso é, cinco campos
de batalha para as lutas globais.
1.
A crise da ideia tradicional de conhecimento, que é também a crise da
mitologia esquerdista do conhecimento como um bem comum neutro e natural
a ser defendido da mercantilização. No capitalismo contemporâneo, o saber – uma fonte central e meio de produção – não é apenas uma mercadoria, é a mercadoria central na
acumulação capitalista. De fato, não há nenhuma neutralidade ou
naturalidade no saber: é sempre uma questão de produção e, no interior
das relações sociais capitalistas é, também, uma fonte de exploração.
Quando
falamos de saber vivo, estamos tentando identificar a nova composição
do trabalho vivo e a socialização da produção do saber. Este é um
processo ambivalente: o saber é o quê é produzido em comum pelo trabalho
vivo e é, também, aquilo que o capital explora; é a possibilidade de
autonomia da cooperação social e aquilo que o capital captura e
valoriza. Neste processo ambivalente, o saber se torna um terreno de
luta central: o comum não existe na natureza, mas precisa ser produzido.
2. A crise das disciplinas, ou seja, da moderna organização do conhecimento. Na
primavera de 2009, respondendo a uma questão colocada pela rainha da
Inglaterra, um grupo de economistas ortodoxos concluiu que a disciplina
economia não apenas não tinha sido capaz de prever a crise nascente, mas
que era absolutamente incapaz de entender qualquer coisa sobre a
economia e podia ser responsabilizada pela própria crise. O discurso
noutras disciplinas não tem sido muito diferente: elas são cada vez mais
incapazes de explicar o que está acontecendo. As disciplinas, assim
como a retórica da interdisciplinariedade, representa cada dia menos uma
forma de organização do conhecimento e mais e mais uma medida artificial da produção
do saber vivo – em outras palavras, um instrumento de exploração. Nas
lutas atuais o que está em jogo é a nova e autônoma organização do saber
baseada na sua produção comum.
3. A crise da figura tradicional do estudante. Desde
a sua posição enquanto produtores de conhecimento, os estudantes não
são mais integrantes de uma força de trabalho em aprendizado, mas são
imediatamente trabalhadores e trabalhadores precários. De fato, há uma
contínua sobreposição entre o mercado educacional e o mercado de
trabalho (pense na “formação continuada” ou no sistema de acreditação).
Não é por coincidência que as questões do trabalho (precariedade,
desvalorização da força de trabalho, empobrecimento, crise etc) têm sido
centrais nas lutas estudantis e universitárias nos últimos anos. E por
esta razão, as lutas universitárias tem um potencial de generalização
através de toda a composição de classe.
4. A crise da moderna dialética entre público e privado. Consideremos
a transformação da universidade em empresa. Isto não significa apenas a
entrada dos fundos privados nas instituições públicas. Nos modelos
americano e anglo-saxão, a definição das universidades empresariais não
depende tanto do seu status jurídico: elas são públicas e privadas e
financiadas pelo estado e por fundos privados. “Universidade
empresarial” significa que a universidade mesma se tornou uma empresa –
trabalhando com cálculo de custos e benefícios, racionalidade
orçamentária e cortes de custos na força de trabalho para competir no
mercado global da educação. Isto significa que uma universidade para
além da dialética entre público e privado, estado e mercado. Desde o
ponto de vista das lutas, isto significa que não temos nada a defender: o
que está posto é o processo constituinte de uma nova universidade. Nós a
chamamos universidade do comum.
5. A crise da universidade como um elevador para a mobilidade social. Precariedade
e endividamento – como condições permanentes de vida – demoliram a
ideia de que se vai para a universidade para ter uma posição mais
elevada do que a pregressa. Acima de tudo, isto significa uma ruptura
irreversível das promessas progressivas capitalistas, mesmo nas suas
formas individualistas e competitivas.
No
desmoronamento do sistema de welfare state (estado de bem estar social)
– exemplificado pelo insano aumento dos custos da educação
universitária em Québec -, a dívida se torna uma forma perversa de
acesso às necessidades sociais (moradia, educação, saúde, mobilidade
etc).
Podemos
falar de uma financeirização da universidade e da vida. O sistema de
dívida funciona como um processo de canalização das escolhas, um regime
disciplinar imposto não apenas ao presente, mas antes e principalmente
como hipoteca do futuro. É um regime moral de individualização: se você
está devendo, é culpado. Mas, exatamente por essas razões, temos de nos
opor aos julgamentos moralistas da esquerda a respeito do acesso ao
sistema de crédito, pois o uso do crédito também joga luz sobre a
incompressibilidade das necessidades sociais.
Nestas bases, concluamos com duas questões políticas levantadas pelos movimentos globais. Primeiramente, como podemos construir uma política de composição comum entre a classe média empobrecida e proletários “sem futuro”, esses dois elementos postos em comum pelo empobrecimento e a exploração capitalista, mas segmentados pelo aparato do capitalismo financeiro (dívida, individualização, estratificação salarial, política identitária etc)? Esse é um nó górdio da organização do comum.
Em
segundo lugar: atualmente, o campo de luta não está situado na defesa
do público (porque se trata de um público privatizado), mas no processo
constituinte para além do sistema de representação política. A ocupação
de praças, universidades e do espaço metropolitano não é um protesto,
não há demandas endereçadas ao governo. Essa prática indica a criação de
um novo espaço-tempo, de uma forma embrionária de organização da vida
em comum. A questão é: como podemos construir uma organização coletiva
da nossa cooperação autônoma e destruir o mecanismo de captura
capitalista? Como podemos transformar a universidade numa instituição do
comum?
Se
estamos vivendo numa situação revolucionária, também sabemos que ela
não rumará, em um movimento mecânico, para a revolução em si e o “1%”
não cairá se não o derrubarmos. Essa é nossa tarefa.
–
Gigi Roggero é doutor em ciências sociais e presentemente atua pelo coletivo Commonware, baseado em Bologna, na Itália
Foto: Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), na Bahia.
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Fonte: Universidade Nômade Brasil
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