maio 19, 2014

"Água Bem Comum", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Dilma tem razão quando diz, indiretamente, que Alckmin falhou na política hídrica, no entanto há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor uma análise apressada; a política de lucro, e logo mais capitalização sobre a escassez -- que é a definição técnica de renda financeira -- que o neoliberalismo tucano admite para a água antevê sempre problemas, pois a demanda social é atendida somente quando a coincidência disso com os interesses econômicos. 
No entanto, no neodesenvolvimentismo nem tudo são flores, as apostas em obras gigantescas, criam um modelo que varia entre insustentabilidade ambiental ou a estrutura de distribuição grandiosa, que pode efetivamente funcionar, mas que não traz uma emancipação à vista -- a sustentação em um sistema cisternas e uma rede marcada pela microcaptação em vez da macro-exploração cria relações democráticas e relativamente independentes do Estado, o que não se vê nas gigantescas máquinas construídas a partir da transposição de rios, como se vê, afinal, desde a época do Faraó."

Água Bem Comum



A água está na ordem do dia. A água é algo tão terrivelmente natural que nos esquecemos como ela chega até nós. Ou melhor, nos esquecemos até que surjam riscos de não haver mais água potável. Ou até que inundações destruam cidades e plantações. Em um país como o Brasil, a água, ou sua falta, sempre foi algo sentido à distância, como um problema do sertão nordestino ou das longínquas periferias metropolitanas. Com a possibilidade, absolutamente anormal, de um colapso no fornecimento hídrico em São Paulo, com as enchentes anormais no Norte do país, que devastaram o Acre e as angústias em relação à Transposição do Rio São Francisco, uma nova rodada de reflexões e lutas em relação aos recursos hídricos se impõe.

"Água bem comum", ou acqua bene commune, é um bom mote e remete ao nome de um movimento que surgiu na Itália há poucos anos, na esteira da luta contra a privatização da água, espalhando-se logo mais pela Europa. E a água como bem comum é uma luta central do nosso tempo. Porque nossa luta precisar estar na luta pela distribuição comum de água, isto é, para além da administração burocrático-estatal dos recursos hídricos ou de sua paulatina conversão em mercadoria -- o que se vê quando um executivo de uma corporação do porte da Nestlé defende, sem maiores constrangimentos, a privatização da água ou, prestem atenção, quando a filial da mesma no Brasil lança uma ofensiva contra fontes de águas medicinais.

A gestão dos recursos hídricos, ou os recursos hídricos sendo sujeitos de um regime de gestão e gerenciamento, igualmente. A passagem da superabundância de água para o regime de processamento e fornecimento enquanto "serviço público" é própria da modernidade: de repente, as fontes "naturais" diminuíram, em grande parte pelos efeitos nocivos da produção industrial e a poluição urbana, e ter acesso a fontes e  técnicas de processamento e recondicionamento de água se tornou uma questão estratégica para os Estados, das atividades mais centrais dos governos. Água bem público, isto é, produto de Estado -- e o Estado é, também e sobretudo, uma máquina hidráulica, que decide para onde água -- a vida -- pode ou não pode não ir.

É claro, a relação entre Estado -- ou proto-Estado -- e água é muito anterior ao neoliberalismo e à modernidade. A própria civilização nasceu, não por acaso, no Egito pois foi lá que o poder político passou a dominar, e assim, a desnaturalizar o uso de um Rio [o Nilo], controlando seus ciclos naturais e impondo, assim, regras sobre o que há de mais elementar para a vida humana. Hoje, uma das maneiras que permitem, e explicam, a dominação israelense sobre os palestinos é, justamente, a disputa e a consequente repartição desigual dos recursos hídricos -- como bem lembrado por Lenora Bruhn em recente evento sobre a Nakba na PUC-SP.

Com o neoliberalismo, uma nova ofensiva: água enquanto produto mercantil com o movimento que vai desde a venda onipresente de garrafinhas de água mineral até, vejamos só, a exclusão gradual de parcelas importantes dos recursos hídricos para consumo direto ou indireto -- como no caso da geração de energia --- das indústrias dentro de um modelo de produção voltado apenas ao lucro privado. 

A gestão privada de recursos hídricos, com empresas privadas, ou semi-privadas, fazendo às vezes do que os órgãos públicos já faziam, é mais consequência do que causa de problemas. A água, mesmo quando administrada por órgãos públicos, já estava contabilizada em termos econômicos, embora sua eventual falta, nesse caso, atendesse a determinações de Estado e às contingências de seu domínio. Com a privatização do fornecimento, como aconteceu, p.ex., na Argentina por determinação do FMI, o lucro imediato e, logo mais, a possibilidade de fazer renda financeira com água passa a nortear a gradação, quantidade, qualidade de seu fornecimento e de sua falta.

A geração de energia a partir da água, com imensas hidrelétricas, como vemos no Brasil e causa tanta polêmica em obras como a usina de Belo Monte -- ou a igualmente megalomaníaca usina de Três Gargantas na China -- tem por resultado a destruição de cursos originais de rios com consequências imprevisíveis. A construção de barragens na Amazônia brasileira está diretamente conectada à cheia violentíssima do Rio Madeira. Em ambos os casos, o uso do "potencial hídrico [para gerar energia]" esconde uma demanda de energia voltada à alimentação de plantas industriais ineficientes -- inclusive no caso chinês, mais ainda no caso brasileiro --, voltadas à superprodução de bens industriais.

No que diz respeito ao consumo de água, o Nordeste brasileiro é um paradigma: região historicamente afetada pela seca, jamais foi alvo de qualquer intervenção política. O monopólio das águas, na forma das barragens de represas artificiais ou dos açudes, concedia poder efetivo a velhos coronéis. O que escapava a isso, acabava sendo uma interessante fonte de pressão "natural" para expulsar enormes contingentes humanos da região, os quais se tornaram a mão-de-obra barata para a indústria em outras regiões. 

A própria política de Transposição do Rio São Francisco é uma das pedras de toque do Lulismo na sua política de investimento no Nordeste -- invertendo o sinal da política estratégica nacional do país desde muito --, mas muito embora possa ter consequências ambientais menos severas do que as usinas na Amazônia, retrata uma política de Estado e molar, o qual se sustenta no modelo da mega-obra e não, digamos, em modelos mais inteligentes e democratizantes como a construção de amplas redes de cisternas


A crise da água em São Paulo, por seu turno, é o que mais chama a atenção, sobretudo pelo seu ineditismo. O governador paulista Geraldo Alckmin inaugurou o uso do volume morto -- isto é, o volume de água que está abaixo dos mecanismos de coleta da água -- do reservatório Cantareira, protelando o racionamento de água necessário pelas circunstâncias. O volume morto, pela maneira como se acumulam detritos e sedimentos é terrivelmente perigoso. Mas em um momento digno do realismo fantástico latino-americano, o governador bandeirante o inaugurou com pompa e cerimônia. Apesar do discurso de que é uma "tragédia natural", um acaso da mãe da terra, tudo isso esconde que a situação de calamidade iminente, mais do que uma seca ocasional. 

A omissão populista quanto à queda dos reservatórios, a falta de investimentos em canos para evitar vazamentos e a falta de uma política para uso da água potável geraram a crise. O não investimento na exploração do potencial hídrico do Aquífero Guarani é um detalhe, não falta água, ela sobra, mas com o atual nível de desperdício, com núcleo metropolitanos demasiadamente habitados, deflagraram a crise. 


Os desdobramentos da crise paulista não são alentadores. Inclusive porque a própria distribuição habitacional faz com que os pobres morem em lugares mais distantes, altos, precários e com menor possibilidade armazenar água do que os ricos. Se isso ainda pode ser piorado, com um racionamento mais duro aqui e não ali, é evidente que existe um risco posto, que aumenta na medida em que a transparência política diminui. Pior ainda, nas áreas mais ricas, os canos são mais novos, o que impede ou diminui a contaminação em situações nas quais a pressão do fluxo de água é menor.

O modelo paulista de gestão da água em São Paulo está nas mãos da Sabesp, uma empresa de economia mista, cujo maior acionista é o governo paulista. O lucro da empresa só no ano passado chegou a quase 2 bilhões de reais, com um faturamento de 11 bilhões. A Sabesp, apesar do controle do governo estadual paulista, tem ações na bolsa como qualquer corporação. Ela se situa, pois, no terreno pantanoso entre o Estado e o Mercado, expondo que a diferença entre ambos é mais relativa do que se imagina. 

Mais ainda, a relação de seus investimentos está longe, muito longe de políticas abertas e democraticamente construídas, com muita transparência corporativa, mas baixíssima transparência social e política. A empresa serve aos seus acionistas, as empreiteiras com quem contrata e, em derradeiro lugar, às demandas sociais e ambientais. O neoliberalismo tucano certamente colocaria pouquíssimo peso na demanda social e, tanto mais, na demanda societária naquilo que lhe cabe decidir.

Dilma tem razão quando diz, indiretamente, que Alckmin falhou na política hídrica, no entanto há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor uma análise apressada; a política de lucro, e logo mais capitalização sobre a escassez -- que é a definição técnica de renda financeira -- que o neoliberalismo tucano admite para a água antevê sempre problemas, pois a demanda social é atendida somente quando a coincidência disso com os interesses econômicos. 
No entanto, no neodesenvolvimentismo nem tudo são flores, as apostas em obras gigantescas, criam um modelo que varia entre insustentabilidade ambiental ou a estrutura de distribuição grandiosa, que pode efetivamente funcionar, mas que não traz uma emancipação à vista -- a sustentação em um sistema cisternas e uma rede marcada pela microcaptação em vez da macro-exploração cria relações democráticas e relativamente independentes do Estado, o que não se vê nas gigantescas máquinas construídas a partir da transposição de rios, como se vê, afinal, desde a época do Faraó.

Um horizonte possível para uma luta constituinte pela água como bem comum teria em vista redes menores e melhores de água nas quais a distribuição, e o cuidado comum, com os recursos hídricos -- desde a extração, tratamento e saneamento -- sejam o foco e as faltas d'água não podem se dever a razões de Estado ou maneiras de ganho -- como, também, as superabundâncias precisam, desde o primeiro momento estar a favor da vida, o que demanda a democratização da discussão sobre a água. Do contrário, o mar virará sertão em toda parte.

Fonte: O Descurvo

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