maio 16, 2014

"Pochmann: ortodoxia nostálgica e economicista", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Ao criticar o “mito” da “grande classe média”, Márcio no entanto tampouco enxerga o outro lado da inclusão social, patrocinando seus próprios mitos de esquerda desenvolvimentista. A estrutura social aparece como reflexo objetivo das transformações do capitalismo, como se o capital estivesse em épica jornada. No livro, a passagem do fordismo ao pós-fordismo é apresentada apenas como uma estratégia vitoriosa do capital, achatando a ambivalência do processo. Não aparece o lado da produção de subjetividade, a formação de novos sujeitos. Isto significa que só aparecem na análise os momentos de reorganização do capital, mas não da classe trabalhadora, suas transformações políticas e antropológicas. Porque ela muda, junto das mutações do próprio conceito de trabalho, que nunca foi a-histórico."
 
Pochmann: ortodoxia nostálgica e economicista
 
Resenha de POCHMANN, Márcio. O mito da grande classe média; Capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo, 2014.

MarcioPochman



Fazer de um país fraco com miseráveis um país forte de classe média, este é o projeto declarado do governo. Seu slogan “país rico é país sem pobreza” se realiza publicitariamente na figura da “nova classe média”. Dezenas de milhões de brasileiros que, graças às políticas de inclusão social dos governos Lula/Dilma, “ascenderam” socialmente. São milhões de brasileiros incluídos no mercado de trabalho e consumo. Formou-se uma nova composição social. O mito da grande classe média, do economista Márcio Pochmann, se insere nessa discussão vívida sobre os projetos de desenvolvimento e suas bases sociais, políticas e econômicas.

O autor coloca em xeque que o Brasil esteja se tornando um país de classe média. O termo de comparação é a classe média surgida na Europa ocidental e nos Estados Unidos, no período seguinte à segunda guerra mundial. Naquele período, as economias centrais do capitalismo global se industrializaram densamente, segundo o modelo fordista. No fordismo, a construção da cidadania se dá pela inclusão no mercado de trabalho e consumo da grande indústria, e pela generalização do consumo de bens duráveis, como casa, carro e utensílios domésticos, que uma indústria nacional diversificada produz. Nesse contexto fordista, a esquerda europeia adotou a linha do reformismo gradual, de inspiração keynesiana, fundada na defesa de um estado forte, planificador e investidor da produção nacional, e garantidor direto dos direitos sociais como saúde, educação e transportes. Apoiada nas relações de produção do fordismo, essa esquerda se organizou em sujeitos e instâncias políticas típicas desse período: o sindicato, o partido operário, os movimentos sociais tradicionais, que pressionaram o capital e dele arrancaram direitos. Márcio explica que, como resultado dessa específica correlação de força entre capital e trabalho, operante no panorama fordista, foi possível formar no primeiro mundo uma “classe média densa e estruturada”, até então inédita.

O fordismo foi um fenômeno de regulação do capital bastante localizado histórica (1945-75) e geograficamente. Suas características simplesmente não aconteceram na América Latina em nenhum período. Hoje, em especial, a formação da “grande classe média” no Brasil não está condicionada pelas coordenadas próprias da luta de classe no fordismo. Não existem mais as condições históricas que propiciaram aqueles sujeitos políticos, suas formas de organização e atuação. O momento do capitalismo é de pós-industrialização da economia, com primazia do setor de serviços, globalização das cadeias produtivas e deslocalização financeira dos centros de comando. Na ausência da centralidade da grande indústria, desaparece também o operariado de massa, outrora estruturado politicamente em sindicatos e no partido operário.

Para Márcio, a restruturação do capitalismo, na passagem do fordismo para o pós-fordismo, dissolveu as instâncias e sujeitos políticos daquela esquerda, que tanto serve de referência à boa fração da brasileira. Seguindo sua narrativa, com o derretimento das formas “clássicas” de lutas do trabalho, se desarticularam as formas de pressão e mediação ante o capital, o que por sua vez serviu de sésamo para a regressão das conquistas e direitos sociais. Nesse momento, o welfare state vira uma quimera política, já que a margem de lucratividade do capital se torna cada vez mais inacessível, rapidamente fluidificada e abstraída dos lugares da produção. A dinâmica do valor pulveriza-se mundialmente, movendo-se com liberdade por sobre as fronteiras, numa era de desregulamentação e privatização. Representado pelo neoliberalismo, o capitalismo no pós-fordismo se torna hegemônico a partir dos anos 1990, com a derrocada final do socialismo real e o desmantelamento do estado de bem estar social, nos países de primeiro mundo. O resultado disso é que a classe trabalhadora vira suco. É nesse cenário que se forma a “grande classe média”, consumidora sim de bens duráveis e inserida a seu modo no mercado de trabalho, porém desestruturada e inorgânica, enquanto classe. Impossibilitada de organizar-se, pressionar o capital e formular projetos alternativos em termos próprios, a nova classe trabalhadora termina por tendencialmente aderir aos valores do próprio capitalismo: despolitização, moralmente conservadora e consumista, atravessada inclusive por pulsões fascistas. Eis aí o diagnóstico pessimista de boa parte da esquerda brasileira, para quem a ascensão da “grande classe média” acelera o fim da história.

Então, o que fazer quando tudo está escoando? É aí que, segundo o quadro pintado por Márcio, só apareça um único sujeito com nitidez para disputar hegemonia com a dissolução final da pauta de classe e a consequente vitória derradeira do neoliberalismo. É o governo do PT e seu projeto de desenvolvimento, o único sujeito forte para formular e realizar uma estratégia vantajosa aos novos trabalhadores brasileiros. Diante de uma globalização que reserva ao Brasil um papel coadjuvante, faz-se necessário forjar um pacto abrangente entre o que sobrou da esquerda e a burguesia nacional mais esclarecida, a fim de inserir a economia do país nas cadeias produtivas globais em condições minimamente vantajosas. Isto significa, por um lado, enfrentar o “capital financeiro” e promover uma industrialização que diversifique o “setor produtivo”; por outro lado, dinamizar o mercado interno, combatendo as ineficiências e arcaísmos crônicos, incluindo todos nos circuitos de trabalho e consumo. Para o autor, não há alternativa à esquerda ao projeto do governo do PT, já que, afinal, não existem bases materiais para radicar outros sujeitos políticos ou tensionar uma “correlação de forças” muito desfavorável. Deveríamos nos unir, portanto, em estratégica coalizão pelos interesses industrial-nacionais.

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Ao criticar o “mito” da “grande classe média”, Márcio no entanto tampouco enxerga o outro lado da inclusão social, patrocinando seus próprios mitos de esquerda desenvolvimentista. A estrutura social aparece como reflexo objetivo das transformações do capitalismo, como se o capital estivesse em épica jornada. No livro, a passagem do fordismo ao pós-fordismo é apresentada apenas como uma estratégia vitoriosa do capital, achatando a ambivalência do processo. Não aparece o lado da produção de subjetividade, a formação de novos sujeitos. Isto significa que só aparecem na análise os momentos de reorganização do capital, mas não da classe trabalhadora, suas transformações políticas e antropológicas. Porque ela muda, junto das mutações do próprio conceito de trabalho, que nunca foi a-histórico.

A cegueira da análise compromete as conclusões políticas. Márcio não lembra que o fordismo das economias centrais e também o socialismo real foram destruídos não por iniciativa do capital, mas antes pelas próprias lutas operárias. A passagem para o pós-fordismo foi uma imposição de uma luta de classe ampliada, ao que o capitalismo teve de reestruturar-se, reflexamente. As lutas operárias, anticoloniais, estudantis e feministas dos anos 1960 e 70 bombardearam a ordem fordista/socialista a tal ponto que o modelo se tornou produtiva e politicamente insustentável, em Paris, Nova Iorque, Budapeste ou Praga. A globalização do capital nunca avançou independente da globalização das lutas. Uma produção de subjetividade em disseminação mundial que explica não só o surgimento da cultura pop dos Beatles, como também a possibilidade de um movimento black power global ou de transformar a cultura em trincheira para a luta de classe. A classe trabalhadora quis virar suco. Seu projeto histórico não se limitava ao welfare state, este foi um projeto mediador e arbitral de uma esquerda dirigista aliada à parcela nacionalista da burguesia. O projeto era deixar o macacão em casa e organizar sua vida e seu tempo. Na base do fordismo ainda estava o pequeno patrão pai de família homem branco ocidental, governando com os jugos da família nuclear, do colonialismo e do racismo, da heteronorma — tudo isso que a esquerda clássica não fez autocrítica. Por isso, é mais correto politicamente enxergar que a classe não virou suco, ela se liquefez para escoar dos muros da sociedade disciplinar, nomadizou-se, derramando-se pela cidade, para produzir mais viva e liberta. Nada disso aparece na narrativa extremamente ortodoxa do autor. O livro traz argumentos ilustrados com tabelas e gráficos, como se estivesse reunindo dados empíricos, embora só consiga com isso reforçar o próprio economicismo, já abundante na narrativa.

A ortodoxia da análise repercute a ortodoxia de certa esquerda no governo, mas também fora dele. A “grande classe média” até agora falhou porque não reproduz a bitola da esquerda fordista/keynesiana. É um mito porque não se parece à “densa e estruturada” classe média fordista do segundo pós-guerra europeu e norte-americano, a Meca dos sonhos branco-esquerdistas. Já a nossa não passaria de um suco Tang: desestruturada e inorgânica, tendencialmente conservadora, manipulável, negativamente liquefeita a ponto de balouçar ao sabor das flutuações econômicas, correntes consumistas ou derivas midiáticas. Uma análise muito próxima de André Singer (Os sentidos do lulismo, 2012), que fala em “subproletariado”, realçando o caráter de “subclasse” da nova composição social. Estamos novamente na literatura de formação do Brasil, que diagnostica o fracasso congênito do projeto de desenvolvimento devido a suas heranças malditas: os ibéricos pessimistas, os índios preguiçosos e atrasados, os negros malandros e sentimentais, as mulheres promíscuas… e por aí vai, cabendo à esquerda aliar-se com a burguesia mais esclarecida para modernizar e emancipar o país, seguindo o exemplo da modernidade colonizadora e São Paulo.

Tanto Márcio quanto André no fundo fazem a mesma coisa: uma história da luta de classe do ponto de vista do capital, uma ciência do capitalismo perfeitamente acomodável na ideologia do governo. Apesar de colocarem-se como críticos dos rumos do PT e vocalizadores de uma guinada à esquerda, seus livros estranhamente acabam parecendo justificativas lógicas para os pactos e mediações em que os governos Lula/Dilma, paulatinamente, se atolaram. É que, se a “nova classe média” que serve de base social ao governo é um suco manipulável facilmente pela direita, então é preciso apegar-se quase paranoicamente às últimas instâncias de organização da “boa e velha” classe, ao PT. E tentar realizar algum tipo de nacional-industrialismo e welfare dentro das tenebrosas condições pós-fordistas de hegemonia neoliberal.

Trata-se de um livro que reproduz a incapacidade crônica da esquerda, e não só no poder federal, em reconhecer culturas dissidentes e lutas heterodoxas na condição subdesenvolvida, além do marco da modernidade estatal e capitalista. Um livro estritamente ideológico, no sentido que sua narrativa passa a borracha nas resistências e desmerece sistematicamente as subjetividades. Não à toa, o levante de junho de 2013 seja um não-fato na narrativa de Márcio, enquanto Singer restringe-se a reconhecer-lhe um amorfo caráter reivindicativo. Os ideólogos não percebem que, — não fossem tão nostálgicos, nem acomodados nas pranchetas maceteadas de sua zona de conforto intelectual e política, — poderiam pesquisar e identificar outras bases materiais e sujeitos sociais, que atuam no pós-fordismo, dentro do suco, tensionando-lhe sem saudosismos.

Não seriam os termos pós-fordistas da luta, os mesmos termos em que, fora das economias centrais da Europa, se formaram as culturas diaspóricas, como os fluxos e redes afroatlânticas, em permanente reorganização e luta? Não poderíamos simplesmente pular a miragem da sociedade disciplinar fordista onde algo como o keynesianismo ainda poderia fazer sentido, e encontrar as nossas próprias tendências e coordenadas da luta de classe, além da fixidez e das estruturas “clássicas”? Nonsense, dirão! Para eles, não passa de pós-modernismo sofisticado, a serviço do avanço dissolvente da nêmese neoliberal. Com essa “nova classe média”, pelo jeito, precisaríamos mesmo era continuar fazendo o jogo da direita.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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