PICICA: "A comunicação
“Racismo e cultura”, no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas
Negros, realizado em 1956, marca – e justifica – a opção pela ação
política de Frantz Fanon.
Sem abandonar a gramática psicanalítica de Pele Negra, Máscaras Brancas* -
talvez mesmo tomando-a por base -, este texto anuncia o ponto de virada
de Fanon na exegese do racismo e suas consequências para a alma/psiquê
dos oprimidos: depois do mergulho para dentro, o mergulho no mundo, o
reconhecimento da necessidade da luta armada e da eliminação completa de
qualquer traço de estruturas opressoras.
Além do texto completo, réplica de uma edição
portuguesa de 1980, o registro radiofônico da voz firme de Fanon, um
raro registro multimídia. As legendas em português foram feitas tendo
por base a edição portuguesa acima mencionada, com algumas adaptações
para o português do Brasil."
Racismo e cultura: a leitura psicanalítica e política de Frantz Fanon
A comunicação
“Racismo e cultura”, no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas
Negros, realizado em 1956, marca – e justifica – a opção pela ação
política de Frantz Fanon.
Sem abandonar a gramática psicanalítica de Pele Negra, Máscaras Brancas* -
talvez mesmo tomando-a por base -, este texto anuncia o ponto de virada
de Fanon na exegese do racismo e suas consequências para a alma/psiquê
dos oprimidos: depois do mergulho para dentro, o mergulho no mundo, o
reconhecimento da necessidade da luta armada e da eliminação completa de
qualquer traço de estruturas opressoras.
Além do texto completo, réplica de uma edição
portuguesa de 1980, o registro radiofônico da voz firme de Fanon, um
raro registro multimídia. As legendas em português foram feitas tendo
por base a edição portuguesa acima mencionada, com algumas adaptações
para o português do Brasil.
Segue o texto de Fanon
Racismo e Cultura [1]
A reflexão sobre o valor normativo de certas
culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção.
Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é o efeito de
ricochete de definições egocentristas, sociocentristas.
Em primeiro lugar, afirma-se a existência de
grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas
hierarquizadas; por fim, a noção da relatividade cultural.
Da negação global passa-se ao reconhecimento
singular e específico. É precisamente esta história esquartejada e
sangrenta que nos falta esboçar ao nível da antropologia cultural.
Podemos dizer que existem certas constelações
de instituições, vividas por homens determinados, no quadro de áreas
geográficas precisas, que num dado momento sofreram o assalto direto e
brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvolvimento técnico,
geralmente elevado, do grupo social assim aparecido, autoriza-o a
instalar uma dominação organizada. O empreendimento da desculturação
apresenta-se como o negativo de um trabalho, mais gigantesco, de
sujeição econômica e mesmo biológica.
A doutrina da hierarquia cultural não é,
pois, mais do que uma modalidade da hierarquização sistematizada,
prosseguida de maneira implacável.
A moderna teoria da ausência de integração
cortical dos povos coloniais é a sua vertente anátomo-fisiológica. O
surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante. O racismo não
é um todo, mas o elemento mais visível, mais quotidiano, para dizermos
tudo, em certos momentos, mais grosseiro de uma estrutura dada.
Estudar as relações entre o racismo e a
cultura é levantar a questão da sua ação recíproca. Se a cultura é o
conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do
homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo
é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com
racismo e culturas sem racismo.
Contudo, este elemento cultural preciso não
se enquistou. O racismo não pôde esclerosar-se. Teve de se renovar, de
se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto
cultural que o informava.
Como as Escrituras se revelaram
insuficientes, o racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia
encontrar no biológico a base material da doutrina. Seria fastidioso
lembrar os esforços empreendidos nessa altura: forma comparada do
crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo,
características das camadas celulares do córtex, dimensões das
vértebras, aspecto microscópico da epiderme, etc.
O primitivismo intelectual e emocional aparecia como uma consequência banal, um reconhecimento de existência.
Tais afirmações, brutais e maciças, dão lugar
a uma argumentação mais fina. Contudo, aqui e ali, vêm à superfície
algumas ressurgências. É assim que a “labilidade emocional do Negro”, “a
integração subcortical do Árabe”, “a culpabilidade quase genérica do
Judeu”, são dados que se encontram em alguns escritores contemporâneos.
Por exemplo, a monografia de J. Carothers, patrocinada pela OMS, exibe, a
partir de “argumentos científicos”, uma lobotomia fisiológica do Negro
de África.
Estas posições sequelares tendem, no entanto,
a desaparecer. Este racismo que se pretende racional, individual,
determinado, genotípico e fenotípico, transforma-se em racismo cultural.
O objeto do racismo já não é o homem particular, mas uma certa forma de
existir. No limite, fala-se de mensagem, de estilo cultural. Os
“valores ocidentais” reúnem-se singularmente ao já célebre apelo à luta
da “cruz contra o crescente”.
Sem dúvida, a equação morfológica não
desapareceu completamente, mas os acontecimentos dos últimos trinta anos
abalaram as convicções mais firmes, subverteram o tabuleiro de xadrez,
reestruturaram um grande número de relações.
A lembrança do nazismo, a miséria comum de
homens diferentes, a escravização comum de grupos sociais importantes, o
surgimento de “colônias europeias”, quer dizer, a instituição de um
regime colonial em plena Europa, a tomada de consciência dos
trabalhadores dos países colonizadores e racistas, a evolução das
técnicas, tudo isto alterou profundamente o aspecto do problema.
Temos de procurar, ao nível da cultura, as consequências deste racismo.
O racismo, vimo-lo, não é mais do que um
elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo.
Como se comporta um povo que oprime? Aqui, encontram-se constantes.
Assiste-se à destruição dos valores
culturais, das modalidades de existência. A linguagem, o vestuário, as
técnicas são desvalorizados. Como dar conta desta constante? Os
psicólogos que têm tendência para tudo explicar por movimentos da alma
pretendem encontrar este comportamento ao nível dos contatos entre
particulares: crítica de um chapéu original, de uma maneira de falar, de
andar…
Semelhantes tentativas ignoram
voluntariamente o caráter incomparável da situação colonial. Na
realidade, as nações que empreendem uma guerra colonial não se preocupam
com o confronto das culturas. A guerra é um negócio comercial
gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A primeira
necessidade é a sujeição, no sentido mais rigoroso, da população
autóctone.
Para isso, é preciso destruir os seus
sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o
assassinato objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais
ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é
desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados.
Desmoronadas, as linhas de força já não
ordenam. Frente a elas, um novo conjunto, imposto, não proposto mas
afirmado, com todo o seu peso de canhões e de sabres.
No entanto, a implantação do regime colonial
não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a
observação histórica diz-nos que o obetivo procurado é mais uma agonia
continuada do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta
cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no
estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e
simultaneamente mumificada, depõe contra os seus membros. Com efeito,
define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do
pensamento individual. A apatia tão universalmente apontada dos povos
coloniais não é mais do que a consequência lógica desta operação. A
acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo
da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo
diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele
decide assumir.
É assim que se assiste à implantação de
organismos arcaicos, inertes, que funcionam sob a vigilância do opressor
e decalcados caricaturalmente sobre instituições outrora fecundas…
Estes organismos traduzem aparentemente o
respeito pela tradição, pelas especificidades culturais, pela
personalidade do povo escravizado. Este pseudorespeito identifica-se,
com efeito, com o desprezo mais consequente, com o sadismo mais
elaborado. A característica de uma cultura é ser aberta, percorrida por
linhas de força espontâneas, generosas, fecundas. A instalação de
“homens seguros” encarregados de executar certos gestos é uma
mistificção que não engana ninguém. É assim que as djeemas cabilas nomeadas pelas autoridades francesas são reconhecidas pelos autóctones. São dubladas por uma outra djeema eleita democraticamente. E naturalmente a segunda dita a maior parte das vezes a sua conduta à primeira.
A preocupação constantemente afirmada de
“respeitar a cultura das populações autóctones” não significa, portanto,
que se considerem os valores ceiculados pela cultura, encarnados pelos
homens. Bem depressa se adivinha, antes, nesta tentativa, uma vontade de
objetivar, de encaixar, de aprisionar, de enquistar. Frases como: “eu
conheço-os”, “eles são assim”, traduzem esta objetivação levada ao
máximo. Assim, conheço os gestos, os pensamentos, que definem estes
homens.
O exotismo é uma das formas desta
simplificação. Partindo daí, nenhuma confrontação cultural pode existir.
Por um lado, há uma cultura à qual se reconhecem qualidades de
dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em
movimento, em perpétua renovação. Frente a esta, encontram-se
características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura.
Assim, numa primeira fase, o ocupante instala
a sua dominação, afirma maciçamente a sua superioridade. O grupo
social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado segundo um
método polidimensional.
Exploração, torturas, razias, racismo,
liquidações coletivas, opressão racional, revezam-se a níveis diferentes
para fazerem, literalmente, do autóctone um objeto nas mãos da nação
ocupante.
Este homem objeto, sem meios de existir, sem
razão de ser, é destruído no mais profundo da sua existência. O desejo
de viver, de continuar, torna-se cada vez mais indeciso, cada vez mais
fantasmático. É neste estágio que aparece o famoso complexo de
culpabilidade. Wright dedica-lhe nos seus primeiros romances uma
descrição muito pormenorizada.
Contudo, progressivamente, a evolução das
técnicas de produção, a industrialização, aliás limitada, dos países
subjugados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores,
impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de
produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer
não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O
racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de
exploração brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos
meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de
exploração do homem, logo das formas do racismo.
Não é, pois, na sequência de uma evolução dos
espíritos que o racismo perde a sua virulência. Nenhuma revolução
interior explica esta obrigação de o racismo se matizar, de evoluir. Por
toda a parte há homens que se libertam abalando a letargia a que a
opressão e o racismo os tinham condenado.
Em pleno coração das “nações civilizadoras”,
os trabalhadores descobrem finalmente que a exploração do homem, base de
um sistema, toma diversos rostos. Neste estágio, o racismo já não ousa
mostrar-se sem disfarces. Contesta-se. Num número cada vez maior de
circunstâncias, o racista esconde-se. Aquele que pretendia “senti-los”,
“adivinhá-los”, descobre-se visado, olhado, julgado. O projeto do
racista é então um projeto perseguido pela má consciência. A salvação só
pode vir-lhe de um empenhamento passional tal como se encontra em
certas psicoses. E não é um dos menores méritos do professor Baruk o ter
precisado a semiologia desses delírios passionais.
O racismo nunca é um elemento acrescentado
descoberto ao sabor de uma investigação no seio dos dados culturais de
um grupo. A constelação social, o conjunto cultural, são profundamente
remodelados pela existência do racismo.
Diz-se corretamente que o racismo é uma chaga
da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É
preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os
níveis de sociabilidade. A importância do problema racista na literatura
americana contemporânea é significativa. O negro no cinema, o negro e o
folclore, o judeu e as histórias para crianças, o judeu no café, são
temas inesgotáveis.
Para voltar à América, o racismo obceca e
vicia a cultura americana. E esta gangrena dialética é exacerbada pela
tomada de consciência e pela vontade de luta de milhões de negros e de
judeus visados por esse racismo.
Esta fase passional, irracional, sem
justificação, apresenta ao exame um aspecto aterrador. A circulação dos
grupos, a libertação, em certas partes do Mundo, de homens anteriormente
inferiorizados, tornam cada vez mais precário o equilíbrio. Bastante
inesperadamente, o grupo racista denuncia o aparecimento de um racismo
nos homens oprimidos. O “primitivismo intelectual” do período de
exploração dá lugar ao “fanatismo medieval, ou mesmo pré-histórico”, do
período de libertação.
A dada altura tinha sido possível acreditar
no desaparecimento do racismo. Esta impressão euforizante, à margem do
real era simplesmente a consequência da evolução das formas de
exploração. Os psicólogos falam então de um preconceito tornado
inconsciente. A verdade é que o rigor do sistema torna supérflua a
afirmação quotidiana de uma superioridade. A necessidade de apelar em
graus diferentes à adesão, à colaboração do autóctone, modifica as
relações num sentido menos brutal, mais cambiado, mais “culto”. Aliás,
não é raro ver surgir neste estágio uma ideologia “democrática e
humana”. O empreendimento comercial de sujeição, de destruição cultural,
cede progressivamente o passo a uma mistificação verbal.
O interesse desta evolução está em que o racismo é tomado como tema de meditação, algumas vezes até como técnica publicitária.
É assim que o blues, “lamento dos
escravos negros”, é apresentado à admiração dos opressores. É um pouco
de opressão estilizada que agrada ao explorador e ao racista. Sem
opressão e sem racismo não haveria blues. O fim do racismo seria o toque de finados da grande música negra…
Como diria o demasiado célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão.
Ainda hoje, para muitos homens, mesmo de cor, a música de Armstrong só tem verdadeiro sentido nesta perspectiva.
O racismo avoluma e desfigura o rosto da
cultura que o pratica. A literatura, as artes plásticas, as canções para
costureirinhas, os provérbios, os hábitos, os patterns, quer se proponham fazer-lhe o processo ou banalizá-lo, restituem o racismo.
O mesmo é dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não podem ser racistas inconscientemente.
Dizemo-lo mais uma vez: o racismo não é uma
descoberta acidental. Não é um elemento escondido, dissimulado. Não se
exigem esforços sobre-humanos para o pôr em evidência.
O racismo entra pelos olhos dentro
precisamente porque se insere num conjunto caracterizado: o da
exploração desavergonhada de um grupo de homens por outro que chegou a
um estágio de desenvolvimento técnico superior. É por isso que, na
maioria das vezes, a opressão militar e econômica precede, possibilita e
legitima o racismo.
O hábito de considerar o racismo como uma disposição do espírito, como uma tara psicológica, deve ser abandonado.
Mas como se comportam o homem visado por esse
racismo, o grupo social escravizado, explorado, dessubstancializado?
Quais são os seus mecanismos de defesa?
Que atitudes descobrimos aqui?
Vimos numa primeira fase o ocupante legitimar
a sua dominação com argumentos científicos, vimos a “raça inferior”
negar-se como raça. Porque nenhuma outra solução lhe é permitida, o
grupo social racializado tenta imitar o opressor e com isso
desracializar-se. A “raça inferior” nega-se como raça diferente.
Partilha com a “raça superior” as convicções, as doutrinas, e tudo o que
lhe diz respeito.
Tendo o autóctone assistido à liquidação dos
seus sistemas de referência, ao desabar dos seus esquemas culturais, já
não lhe resta senão reconhecer com o ocupante que “Deus não está do seu
lado”. O opressor, pelo caráter global e terrível da sua autoridade,
chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma
singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de
existir.
Este acontecimento, normalmente designado por
alienação, é naturalmente muito importante. Encontramo-lo nos textos
oficiais sob o nome de assimilação.
Ora, esta alienação nunca é totalmente
conseguida. Talvez porque o opressor limite quantitativa e
qualitativamente a evolução, surgem fenômenos imprevistos, heteróclitos.
O grupo inferiorizado tinha admitido, com uma
força de raciocínio implacável, que a sua infelicidade provinha
diretamente das suas características raciais e culturais.
Culpabilidade e inferioridade são as
consequências habituais desta dialética. O oprimido tenta então
escapar-lhes, por um lado, proclamando a sua adesão total e
incondicional aos novos modelos culturais e, por outro lado, proferindo
uma condenação irreversível do seu estilo cultural próprio. [2]
Contudo, a necessidade que o opressor tem,
num dado momento, de dissimular as formas de exploração não provoca o
desaparecimento desta última. As relações econômicas mais elaboradas,
menos grosseiras, exigem um revestimento quotidiano, mas, a este nível, a
alienação coninua a ser terrível.
Tendo julgado, condenado, abandonado, as suas
formas culturais, a sua linguagem, a sua alimentação, os seus
procedimentos sexuais, a sua maneira de sentar-se, de repousar, de rir,
de divertir-se, o oprimido, com a energia e a tenacidade do náufrago, arremessa-se sobre a cultura imposta.
Desenvolvendo os seus conhecimentos técnicos
no contato com máquinas cada vez mais aperfeiçoadas, entrando no
circuito dinâmico da produção industrial, encontrando homens de regiões
afastadas no quadro da concentração dos capitais, logo dos lugares de
trabalho, descobrindo a linha de montagem, a equipe, o “tempo” de
produção, ou seja, o rendimento por hora, o oprimido verifica como um
escândalo a manutenção do racismo e do desprezo a seu respeito.
É a este nível que se faz do racismo uma
história de pessoas. “Existem alguns racistas incorrigíveis, mas
confessem que no conjunto, a população gosta de…”
“Com o tempo, tudo isto desaparecerá.”
“Existe na ONU uma comissão encarregada de lutar contra o racismo.”
Filmes sobre o racismo, poemas sobre o racismo, mensagens sobre o racismo…
As condenações espetaculares e inúteis do
racismo. A realidade é que um país colonial é um país racista. Se na
Inglaterra, na Bélgica ou em França, apesar dos princípios democráticos
afirmados respectivamente por estas nações, ainda há racistas, são esses
racistas que, contra o conjunto do país, têm razão.
Não é possível subjugar homens sem
logicamente os inferior
izar de um lado a outro. E o racismo não é mais
do que a explicação emocional, afetiva, algumas vezes intelectual, desta
inferiorização.
Numa cultura com racismo, o racista é, pois,
normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é, nele,
perfeita. Certamente que a ideia que fazemos do homem nunca está
totalmente dependente das relações econômicas, isto é, não o esqueçamos,
das relações que existem histórica e geograficamente entre os homens e
os grupos. Membros, cada vez mais numerosos, que pertencem a sociedades
racistas tomam posição. Põem a sua vida ao serviço de um mundo em que o
racismo seria impossível. Mas este recuo, esta abstração, este
compromisso solene, não estão ao alcance de todos. Não se pode exigir
impunemente que um homem seja contra os “preconceitos do seu grupo”.
Ora, é preciso voltar a dizê-lo, todo o grupo colonialista é racista.
Simultaneamente “aculturado” e desculturado, o
oprimido continua a esbarrar no racismo. Acha que esta sequela é
ilógica. Que o que ele superou é inexplicável, sem motivo, inexato. Os
seus conhecimentos, a apropriação de técnicas precisas e complicadas,
por vezes a sua superioridade intelectual frente a um grande número de
racistas, levam-no a qualificar o mundo racista de passional.
Apercebe-se de que a atmosfera racista impregna todos os elementos da
vida social. O sentimento de uma injustiça tremenda torna-se, então,
muito vivo. Esquecendo o racismo-consequência, atira-se com fúria sobre o
racismo-causa. Empreendem-se campanhas de desintoxicação. Faz-se apelo
ao sentido do humano, ao amor, ao respeito dos valores supremos…
De fato, o racismo obedece a uma lógica sem
falhas. Um país que vive, que tira a sua substância, da exploração de
povos diferentes inferioriza estes povos. O racismo aplicado a estes
povos é normal.
O racismo não é, pois, uma constante do espírito humano.
É, vimo-lo, uma disposição inscrita num
sistema determinado. E o racismo judeu não é diferente do racismo negro.
Uma sociedade é racista ou não é. Não existem graus de racismo. Não se
deve dizer que tal país é racista, mas que não há nele linchamentos ou
campos de extermínio. A verdade é que tudo isso, e muito mais, existe
como horizonte. Estas virtualidades, estas latências, circulam
dinâmicas, inseridas na vida das relações psico-afetivas, econômicas…
Descobrindo a inutilidade da sua alienação, a
profundidade do seu despojamento, o inferiorizado, depois desta fase de
desculturação, de estrangeirização, volta a encontrar as suas posições
originais.
O inferiorizado retoma apaixonadamente essa
cultura abandonada, rejeitada, desprezada. Há nitidamente uma
sobrevalorização que se assemelha psicologicamente ao desejo de se fazer
perdoar.
Mas, por detrás desta análise simplificadora,
há bem a intuição por parte do inferiorizado de uma verdade espontânea
que irrompe. Esta história psicológica deságua na História e na Verdade.
Porque o inferiorizado reencontra um estilo
outrora desvalorizado, assiste-se a uma cultura da cultura. Semelhante
caricatura da existência cultural significaria, se fosse necessário
mostrá-lo, que a cultura é vivida, mas não pode ser fragmentada. Não se
põe entre a lâmina e a lamela. [Não se pode dissecá-la e examiná-la ao
microscópio]
Contudo, o oprimido extasia-se a cada
redescoberta. O encantamento é permanente. Outrora emigrado da sua
cultura, o autóctone explora-a hoje com arrebatamento. Trata-se, então
de contínuos matrimônios. O antigo inferiorizado está em estado de
graça.
Ora, não se sofre impunemente uma dominação. A
cultura do povo subjugado está esclerosada, agonizante. Não circula
nele qualquer vida. Mais precisamente, a única vida nela existente está
nela dissimulada. A população que normalmente assume aqui e ali alguns
pedaços de vida, que mantém significações dinâmicas para as
instituições, é uma população anônima. Em regime colonial, são os
tradicionalistas.
Pela ambiguidade súbita do seu comportamento,
o antigo emigrado introduz o escândalo. Ao anonimato do
tradicionalista, opõe um exibicionismo veemente e agressivo.
Estado de graça e agressividade são duas
constantes deste estágio, sendo a agressividade o mecanismo passional
que permite escapar à mordedura do paradoxo.
Porque o antigo emigrado possui técnicas
precisas, porque o seu nível de ação se situa no quadro de relações já
complexas, estas redescobertas revestem-se de um aspecto irracional.
Existe um fosso, um defasamento, entre o desenvolvimento intelectual, a
apropriação técnica, as modalidades de pensamento e de lógica altamente
diferenciadas e uma base emocional “simples, pura”, etc.
Reencontrando a tradição, vivendo-a como
mecanismo de defesa, como símbolo de pureza, como salvação, o
desculturado dá a impressão de que a mediação se vinga
substancializando-se. Este refluxo para posições arcaicas sem relação
com o desenvolvimento técnico é paradoxal. As instituições assim
valorizadas deixam de corresponder aos métodos elaborados de ação já
adquiridos.
A cultura encapsulada, vegetativa, após a
dominação estrangeira é revalorizada. Não é repensada, retomada,
dinamizada de dentro. É clamada. E esta revalorização súbita, não
estruturada, verbal, recobre atitudes paradoxais.
É neste momento que se faz menção do caráter
irrecuperável dos inferiorizados. Os médicos árabes dormem no chão,
cospem em qualquer lado, etc.
Os intelectuais negros consultam o bruxo antes de tomar uma decisão, etc.
Os intelectuais “colaboradores” procuram
justificar a sua nova atitude. Os costumes, tradições, crenças, outrora
negados e silenciados, são violentamente valorizados e afirmados.
A tradição já não é ironizada pelo grupo. O
grupo já não foge a si mesmo. Reencontra-se o sentido do passado, o
culto dos antepassados…
O passado, doravante constelação de valores, identifica-se com a Verdade.
Esta redescoberta, esta valorização absoluta
de modalidade quase irreal, objetivamente indefensável, reveste uma
importância subjetiva incomparável. Ao sair destes matrimônios
apaixonados, o autóctone terá decidido, com “conhecimento de causa”,
lutar contra todas as formas de exploração e de alienação do homem. Em
contrapartida, o ocupante multiplica nesta altura os apelos à
assimilação, depois à integração, à comunidade.
O corpo a corpo do indígena com a sua cultura
é uma operação demasiado solene, demasiado abrupta, para tolerar
qualquer falha. Nenhum neologismo pode mascarar a nova evidência: o
mergulho no abismo do passado é condição e fonte de liberdade.
O fim lógico desta vontade de luta é a
libertação total do território nacional. Para realizar esta libertação, o
inferiorizado põe em jogo todos os seus recursos, todas as suas
aquisições, as antigas e as novas, as suas e as do ocupante.
A luta é subitamente total, absoluta. Mas então já não se vê aparecer o racismo.
No momento de impor a sua dominação, para
justificar a submissão, o opressor invocara argumentações científicas.
Aqui, nada de semelhante.
Um povo que empreende uma luta de libertação
raramente legitima o racismo. Mesmo no decurso de períodos agudos de
luta armada insurrecional, nunca se assiste a uma tomada maciça de
justificações biológicas.
A luta do inferiorizado situa-se a um nível
nitidamente mais humano. As perspectivas são radicalmente novas. É a
oposição doravante clássica entre as lutas de conquista e as de
libertação.
No decurso da luta, a nação dominadora tenta
reeditar argumentos racistas, mas a elaboração do racismo revela-se cada
vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo, de atitudes primitivas perante
a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra já
não responde. Os imóveis de antes, os covardes constitucionais, os
medrosos, os inferiorizados de sempre, crispam-se e emergem eriçados.
O ocupante já não compreende.
O fim do racismo começa com uma súbita incompreensão.
A cultura espasmada e rígida do ocupante,
liberta, oferece-se finalmente à cultura do povo tornado realmente
irmão. As duas culturas podem enfrentar-se, enriquecer-se.
Em conclusão, a universalidade reside nesta
decisão de assumir o relativismo recíproco de culturas diferentes, uma
vez excluído irreversivelmente o estatuto colonial.
Notas
[1] Texto
da intervenção de Frantz Fanon no Primeiro Congresso dos Escritores e
Artistas Negros em Paris, em setembro de 1956. Publicado no número
especial de Présence Africaine, de junho-novembro de 1956.
[2] Por
vezes, aparece neste estágio um fenômeno pouco estudado. Intelectuais,
investigadores, do grupo dominante estudam “cientificamente” a sociedade
dominada, a sua estética, o seu universo ético.
Os raros intelectuais colonizados veem, nas
Universidades, o seu sistema cultural ser-lhes revelado. Acontece até
que os sábios dos países colonizadores se entusiasmam por este ou aquele
traço específico. Surgem os conceitos de pureza, ingenuidade,
inocência. A vigilância do intelectual indígena tem de redobrar nesta
altura.
*Fanon, médico psiquiatra de formação, era ávido leitor de Freud e Lacan, e profundo admirador do libertário psiquiatra catalão Tosquelles, com quem conviveu durante 15 meses no hospital psiquiátrico de Saint-Alban.
Fonte: Matutações
Fonte: Geledés
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