PICICA: "Nem povo, nem plebe, nem raça. Um sujeito coletivo ou uma
multiplicidade de singularidades irredutíveis que exerce seu poder em
lutas comuns e delas tira sua organização"
O que é, quem é a multidão
Nem povo, nem plebe, nem raça. Um sujeito coletivo ou uma multiplicidade de singularidades irredutíveis que exerce seu poder em lutas comuns e delas tira sua organização
Por Homero Santiago
Em O que é a filosofia? Gilles Deleuze e Félix Guattari definiam o filosofar como a arte de criar conceitos, e aí localizavam a sua utilidade. Os conceitos são úteis porque organizam nosso pensamento para enfrentar problemas que pomos ou que nos são postos e porque são capazes de nos despertar para “acontecimentos”, no sentido muito especial que os autores dão à palavra: não o pronto, o já dado e conhecido, mas o novo, a novidade in fieri, ou seja, fazendo-se. Daí um critério para ajuizar as filosofias e os filósofos: “a grandeza de uma filosofia avalia-se pela natureza dos Acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam”.
É desse ponto de vista que pensamos ser necessário reconhecer a grandeza do pensamento de Antonio Negri. Não tanto pelo êxito de público que suas obras conquistaram quanto por terem constituído um novo marco no debate político-filosófico atual. Mesmo aos que criticam Negri, é inegável o seu mérito em recolocar na ordem do dia toda uma série de questões que pareciam destinadas ao esquecimento, além de ter sabido lançar novas interrogações que, de uma forma ou de outra, não podem mais ser ignoradas por aqueles que querem pensar a transformação social. É um novo vocabulário conceitual que ele criou e que nos permite, gostemos ou não, hoje, ver coisas novas, e ver novas coisas se fazendo, acontecendo.
Provavelmente com nenhum outro conceito Negri foi tão longe, nesse exercício, quanto por meio do conceito de multidão.
O termo “multidão” foi usado desde o início da modernidade por autores como Maquiavel, Hobbes e Espinosa, ora como sinônimo de “povo” ou “plebe”, ora como equivalente ao que então se nomeava “vulgar” e que se aproxima do que costumamos designar “massa” ou “populacho”. Em seu sentido conceitual mais forte (o que aqui interessa), o termo faz sua aparição no estudo da filosofia Espinosa na que Negri publica em 1981 sob o título A anomalia selvagem: poder e potência em Baruch de Spinoza. A partir daí o conceito ocupa um lugar de proa em vários textos negrianos e sobretudo no longo trabalho que ele dedica ao resgate do lugar da ideia de poder constituinte de Maquiavel a Lênin (O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, 1992), até adentrar de vez o pensamento político contemporâneo com a publicação da trilogia, preparada a quatro mãos com o norte-americano Michael Hardt, composta por Império (2000), Multidão (2005) e Comum (2009).
Aí, já desde o volume inicial, conciliam-se uma acurada descrição do capitalismo contemporâneo e uma análise da trajetória da modernidade, mostrando como o termo desta, e portanto a abertura da pós-modernidade, culmina numa nova organização do poder que os autores denominam “Império”. O traço mais peculiar do percurso analítico, a marcar sua originalidade em face de outras tentativas de semelhante teor, é a ênfase no aspecto subjetivo dessa história, sem concessão de privilégios à dinâmica do sistema capitalista, procedimento que, denunciam, foi frequente até em autores vinculadas à tradição marxista. Ou seja, o foco não recai sobre o poder ou o capital, exclusivamente, mas também, quiçá até principalmente, sobre as forças subjetivas que atuam ao longo da modernidade na resistência ao poder, não importa qual, ensejando um processo antagônico, que é o responsável pela própria constituição do Império, portanto de nossa atualidade.
É esse ponto de vista, que Negri vinha exercitando desde os anos 70, que lhe permite identificar o surgimento e a efetuação, em concomitância ao Império, de um novo sujeito coletivo, um novo agente da práxis coletiva que é nomeado multidão — conceito que é várias vezes qualificado um “conceito de classe”, pelo que fica clara a intenção de, por seu intermédio, renovar algumas questões cruciais da política de esquerda.
O que é, nesse sentido, a multidão? Uma definição simples é quase impossível; portanto, sem pretensão de exaustividade, limitemo-nos a uma caracterização mínima — útil principalmente ao leitor que dá seus primeiros passos no pensamento de Negri.
Um traço característico da multidão é consistir numa multiplicidade de singularidades irredutíveis, impossível de ser representada e portanto diversa do que se designa pelas ideias de povo (um “povo” é geralmente constituído como tal por um Estado) e de massa (ideia que implica a neutralização das diferenças, uniformização). Assim, em primeiro lugar, multidão nos dá o nome de um agente ou sujeito coletivo que pode agir em comum, unitariamente, com a simultânea manutenção de suas diferenças internas.
Mas não só o nome de um sujeito. A novidade da nomeação explica-se por falarmos de um novo nome para um novo sujeito ou agente. Multidão é um “conceito de classe” tanto por retomar a discussão de classe quanto por renová-la. Tradicionalmente, o sujeito coletivo anticapitalista foi pensado como o proletariado, a classe operária ou a classe trabalhadora. Agora, pela nova nomeação, quer-se sublinhar que o sujeito coletivo não está mais restrito a esses grupos tradicionais e que, sobretudo, não precisa buscar sua unidade a partir da pura determinação do sistema capitalista.
Daí, por fim, podemos pensar a multidão como uma nova determinação do agente coletivo. O que definia a classe operária era certa posição no processo produtivo, a condição de seus integrantes como não possuidores de meios de produção, despossuídos e, por conseguinte, explorados; critérios todos, observemos, negativos (a classe se definia pelo que não possuía) ou restritivos (o operário não era senão acidentalmente mulher, homem, homossexual, negro, etc.). Pelo conceito de multidão, busca-se conceber o sujeito coletivo em sua inteira positividade e amplitude; no limite, ele se refere a todos, todos que são explorados, que lutam pela construção de um mundo comum e que se são, como multidão, responsáveis pela riqueza social, exatamente porque portadores do trabalho vivo, ou seja, de uma “pobreza” (um termo que Negri usa num sentido muito preciso de que se serve Marx) que “não é simplesmente miséria, mas é possibilidade de muitíssimas coisas, que o desejo indica e o trabalho produz”. Em suma, multidão é o nome do sujeito que tudo produz: a riqueza, a realidade, o mundo social. E por isso revela-se também um conceito ontológico.
Negri é e sempre foi um marxista. Não há dúvida. Mas igualmente um pensador que detecta uma crise do marxismo que da década de 70 e cujo ápice é a tese de um “fim da história” enunciada por Francis Fukuyama em 1989. O curioso é que para Negri é exatamente isso que ocasiona, ou antes passa a exigir da parte daqueles que, em suas palavras, não querem “comprazer-se na própria passividade”, uma renovação teórica profunda, uma verdadeira guinada ontológica mediante um “retorno a Espinosa” que é também um “retorno ao comunismo”. A justificativa diz tudo: porque “Espinosa é a ontologia”. A crença num “fim da história”, ele argumenta, depende de dois pressupostos negativos: recusar “toda verdade que a práxis humana constitui”, negar “ao comum construir-se pragmaticamente como tal”. É assim, e só assim, que “o tal ‘fim da história’ instala-se como senhor”. No fundo, para Negri, a questão não é somente política, mas antes ontológica, no sentido de que concerne à potência produtiva da práxis humana em geral e especialmente à da práxis coletiva, comum. Daí toda a importância do retorno a Espinosa e a sua ontologia. A particular conexão entre potência e multidão que o espinosismo estabelece seria, primeiro, um antídoto eficaz a toda e qualquer tentação de apregoar um “fim da história”; segundo, uma via profícua para renovação do marxismo. Toda questão prática, repete o italiano inúmeras vezes, é no fundo uma questão ontológica e é a própria ontologia do ser espinosano que nos garantiria um horizonte sempre aberto à criação ou constituição de novas formas de vida, à invenção de uma nova história; pois o ser, em Espinosa, “é já revolução”, noutras palavras, “infinito reabrir-se da possibilidade”.
Quem tem esse poder de constituir a própria realidade social, sempre nova? A multidão e só ela. Nisso, de alguma forma, Negri presta homenagem a seu passado operaísta, especialmente à tese fundamental do italiano Mario Tronti formulada na década de 60 no hoje clássico Operários e capital: “ao nível de capital socialmente desenvolvido, o desenvolvimento capitalista subordina-se às lutas operárias, vem depois delas e a elas deve fazer corresponder o mecanismo político da sua própria produção.” Tentemos entender. A esquerda sempre se preocupou com o capitalismo, e nisso fez bem; importa, contudo, inverter a perspectiva analítica: o ponto de vista do operário vem antes, o ponto de vista do capital é segundo, pois é o primeiro, mediante uma potência exprimida em suas lutas, que move o capital, faz que ele se mexa e inove tentando responder às lutas operárias. Num exemplo grosseiro: a automatização das fábricas não passa de resposta às greves dos trabalhadores, pois, como todos sabem, máquina não pede aumento de salário.
Lido ontologicamente, como o faz Negri, isso quer dizer: é a multidão, portadora do trabalho vivo que é fonte de toda riqueza, que constitui o mundo social e o próprio capital tal como ele hoje se apresenta no Império. O capital apenas “vampiriza”, explora, é inteira negatividade, ao passo que só a multidão cria, constitui, é inteira positividade. Só ela é dotada de um poder constituinte. Mas eis que, sendo assim, sobrevém uma última questão, incontornável, e que é a mais difícil de todas: quem é a multidão?
Levando ao pé da letra Deleuze e Guattari, de onde partimos, seria complicado precisar. Para eles, um conceito é autorreferencial, portanto irredutível a um estado de coisas; ele diz o acontecimento, não os que fazem acontecer. Já Negri, em coerência com sua trajetória, tem de se ver com isso, e vai conduzir a questão a um tópico clássico da reflexão marxista. Dizer quem é a multidão é topar com o problema da organização.
A multidão tudo pode, ela tudo constitui, então por que ela constitui justamente aquilo que lhe explora, a vampiriza, a destitui, mais rápido ou mais lentamente, mas sempre, do seu próprio poder? Porque lhe falta a organização. Trata-se do venerável problema leninista, só que agora com nova tonalidade ontológica. Na pergunta, ao menos, pois qualquer resposta deverá submeter-se a uma exigência por assim dizer clássica: ela só pode provir da práxis, das lutas.
A multidão é o conceito que permite designar a práxis coletiva, mas a efetivação prática desse conceito não se dá senão pela práxis. Um aspecto chamativo dos livros de Negri, em especial da trilogia redigida com Hardt, é sempre deter-se aí. A organização não pode ter resposta teórica, a resposta tem de ser prática. São as lutas, o poder em exercício da multidão, que constituem o real na medida em que a própria multidão se constitui como tal; só às lutas caberá dizer quem é a multidão e como poderá ela exercer o seu poder e, organizadamente, constituir um novo real que faça jus aos seus anseios de democracia, liberdade, felicidade: o comum.
*Homero Santiago é Professor Livre-Docente do Departamento de Filosofia da USP
Esse texto foi publicado originalmente na revista CULT
Fonte: Outros Livros
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