maio 14, 2014

"A construção do imaginário sobre a resistência à ditadura civil militar brasileira e o lugar dos atores: dilemas vivos e assombrosos", por Tiago Rattes

PICICA: "O legado da ditadura ainda é forte entre as populações marginalizadas e vulnerabilizadas pela paz do capital, apesar das mobilizações e lutas sociais dos anos 1970 e 1980, com o novo sindicalismo, os “novos movimentos” e a condensação das lutas ao redor da fundação do PT. A luta pela memória é atual."

A construção do imaginário sobre a resistência à ditadura civil militar brasileira e o lugar dos atores: dilemas vivos e assombrosos

14/05/2014
Por Tiago Rattes


Por Tiago Rattes de Andrade, doutorando em história pela UFJF, para o dossiê UniNômade dos 50 anos do golpe

O legado da ditadura ainda é forte entre as populações marginalizadas e vulnerabilizadas pela paz do capital, apesar das mobilizações e lutas sociais dos anos 1970 e 1980, com o novo sindicalismo, os “novos movimentos” e a condensação das lutas ao redor da fundação do PT. A luta pela memória é atual.

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Colégio Sion, 1980. Foto: Juca Martins.


A perspectiva que reina há décadas na historiografia e nas ciências sociais brasileiras, de forma vulgar e resumida, pode assim ser esquematizada: a resistência à ditadura civil militar brasileira teve diversas frentes, pacíficas, armadas e institucionais, que culminaram numa espécie de efervescência da sociedade civil nos anos de 1980. Esta nos apresentou novos atores sociais, novos sindicalismos, e novas formas de organização social, levando  ao processo de democratização, materializado pela constituição de 1988. Essa constituição foi adjetivada de “cidadã”, expressão essa que demarca claramente o olhar enviesado sobre o imaginário do período e os valores em disputa.

Os novos atores sociais e o novo sindicalismo (que culminou na fundação do Partido dos Trabalhadores), para além da existência real desses atores como “novos”, têm grande relação com a tentativa de construir uma vitória sociológica sobre a tese do “populismo”. Ou seja, com a tentativa de demonstrar como supostamente tais setores em ascensão foram capazes de eliminar as contradições de seus similares em períodos passados, superando o atrelamento ao estado, a convivência paternal com o chefe de estado, a aceitação da suposta tutela, e a ausência de um dinamismo marcado pela origem rural de seus membros.

Hoje, mais do que nunca, faz-se necessária a revisão dessa percepção sobre o papel dos atores do final da década de 1970 e de toda década de 1980. A visão sobre os mesmos guarda em si grandes verdades, mas também esbarra na necessidade sociológica de classificar e apontar um caminho de superação. É como se uma tese descesse às ruas e tentasse organizar a realidade. Não se trata, contudo, de reduzir ou relativizar a importância daqueles atores e episódios. Sem as greves do ABC e do “novo” sindicalismo, a disputa pela democracia não teria sido a mesma. Trata-se afinal de debater como o imaginário é construído com base na afirmação e negação de atores e episódios do passado.
Em segundo lugar, a “escolha” desses atores tem relação também ainda com a tradicional tese marxista de como a dinâmica do capitalismo gera novas situações e novos atores, e como aquela etapa de nossa história nos colocaria numa espécie de modernidade. Por mais que, já na década de 1980, houvesse crítica contundente e abertura de novos paradigmas, a maioria esmagadora de nosso pensamento social brasileiro ainda estava embebido da tradicional análise europeizada de Marx e Weber. Mais do que nunca, queríamos ser modernos.

Em terceiro lugar, mais do que uma constatação, uma questão: onde estavam os setores excluídos das transformações que o capitalismo gerou no Brasil ao longo das décadas de 1970 e 1980? Burgueses e operários couberam nas análises e o rearranjo de suas forças foi tratado a esmo por diversos pensadores e partidos políticos. Principalmente, na construção de suas estratégias para o poder futuro (vejam-se o PT e os trabalhadores, o PSDB e os proprietários). Por outro lado, a visão da democracia como um formalismo deixou de lado os efeitos da ditadura entre os moradores de favela, negros e negras quilombolas e uma série de atores alijados pelo “progresso” capitalista, para o bem ou para o mal.

Provavelmente, é possível dizer que seja justamente essa noção de resistência, atores e democracia, que fez com que o imaginário sobre a resistência e da própria democracia tenha sido capitalizado de forma tão abrasiva nos que hoje detém boa parte do capital político, social e cultural brasileiro. Enquanto à boa parte da população ainda seja negado o acesso aos direitos mais básicos de participação, determinação e afirmação, com a exclusão habitacional, urbana, social e racial. Basta vermos como o processo de “pacificação” realizado pelos governos do RJ é cercado de contradições. Os atores ora excluídos do imaginário político e social brasileiro são aqueles a quem é imposta uma pacificação militarizada e  violenta. A pobreza segue o elemento central na privação de direitos dentro da democracia meramente formal.

Lula atingiu boa parte dos setores até então excluídos desse processo através de suas políticas sociais e da valorização do consumo interno.  O estado passou a existir em alguns aspectos para essas pessoas, assim como o mercado, o que de certa forma permitiu algum tipo de rearranjo na sociedade brasileira nas últimas décadas. Mas ainda não assistimos a um grande movimento de mudança de olhares sobre essa realidade. A disputa pela manutenção desse imaginário segue firme e pendendo para o lado de sempre.

Basta lembrarmos da imagem do corpo de Claudia sendo arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro.  Essa é a imagem clara da negação de direitos e espaço, que nasce também da forma como construímos o imaginário da resistência à ditadura e, por consequência, o lugar dos atores na sociedade pós-1988.



Tiago Rattes de Andrade é graduado em história, mestre em ciências Sociais e doutorando em história pela UFJF. Bloga em politicarevistada.blogspot.com Email: tiagorattes@yahoo.com

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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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