PICICA: "Em certa medida, o bombardeio dos portais, comentadores e sites da
“esquerda” conseguiu colar a propaganda que os protestos na Ucrânia são
hegemonizados ou, pelo menos, estão decisivamente comprometidos, pela
interferência da extrema-direita, apesar de minoritária. Também
conseguiu forjar uma imagem benévola e estranhamente admirável de Putin,
o herói da resistência antiamericana e antiocidental. Essa imagem, além
de fruto da desinformação, revela antes de tudo o descaminho
político-ideológico completo dessa mesma “esquerda”."
Dilma, Putin e Tea Party: estranha atração
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Em 2011, Obama comparou o movimento Occupy Wall Street ao Tea Party. Segundo Obama, ambos os movimentos exprimiriam grandes insatisfações durante a crise. Ambos contestariam os donos de Wall Street, questionando um governo refém do sistema financeiro. Para Obama, tanto o Occupy quanto o Tea Party não se definiram como esquerda nem direita. Obviamente interessado em desqualificar o primeiro, que à época promovia mais de 300 ocupações pelo país e pelo menos uma greve geral (em Oakland), o presidente americano achatou diferenças essenciais. Realmente, tanto OWS quanto Tea Party canalizaram as insatisfações durante a pior crise do capitalismo, desde o quebra-quebra de 1929. Mas a semelhança termina aí, no contexto.
O Tea Party invoca os founding fathers e seu nome remonta ao século 18, quando colonos brancos americanos se insurgiram contra a taxação da Coroa britânica. É um movimento tradicionalista, que prega o resgate dos valores originários americanos do trabalho e da nação. O Occupy, diferentemente, brotou de uma nova rede de produção de subjetividade que, no começo daquele ano, havia protagonizado manifestações e ocupações na casa dos 100 mil em Madison, Wisconsin. O Occupy nutriu-se, também, de um ciclo global de lutas: os ventos da primavera árabe atravessaram o Mediterrâneo para povoar a Europa das acampadas do 15-M, soprando-as a seguir pelo mundo todo numa miríade de ocupas, inclusive no Brasil.
O Tea Party condena Wall Street porque é o signo imoral do declínio do império americano. É a Babilônia onde se corrompem os valores fundamentais. O Tea Party quer o fim dos especuladores e yuppies degenerados de Nova Iorque, prezando pela volta do bom patrão e do bom trabalhador dos good old times. É um defensor do “trabalho produtivo”, contra a contaminação rentista pelo sistema financeiro. Já o Occupy não faz nenhuma crítica baseada em valores originais e nem se fundamenta nos founding fathers brancos e proprietários. Para o Occupy, o problema sempre foi estrutural: é o próprio valor do trabalho no capitalismo que está no coração da crise, uma sociedade partida entre o 1% e os 99%. O cerne do discurso do Occupy é a desigualdade sistêmica, em que a corrupção, mais do que problema moral, é o próprio sistema de exploração, racismo e concentração de renda e direitos nos mais ricos.
Se as redes mobilizadas ao redor do estilo-Occupy não se converteram em nenhuma campanha eleitoral, e tampouco foram capitalizadas pelo Partido Democrata, que seria supostamente a “esquerda” no pingue-pongue bipartidário americano, o Tea Party apoiou nada menos do que 132 candidatos nas eleições de 2010 nos EUA. O leitor não precisa adivinhar que todos eram republicanos, o partido à direita.
No ano passado, o Tea Party conferiu a Putin o prêmio de “defensor da paz”. Segundo o cofundador do movimento, o presidente russo fez jus à premiação devido a seus esforços de prevenir a guerra na Síria e pela “brava resistência contra as políticas socialistas do presidente Obama”. Para a direita americana, Putin está à direita de Obama, cujas políticas “socialistas” já eram consideradas de direita pelo Occupy. Em pronunciamento enfático, em dezembro de 2012, Putin se colocou como defensor da fé cristã, crente na moral e razão contra a decadência da civilização ocidental. As políticas ultraconservadoras do presidente russo, — por exemplo, a respeito dos direitos LGBT ou o direito ao aborto, — têm sido incensadas a ponto dele ser alçado a popstar da direita americana.
Em dezembro daquele mesmo ano agitado, explodiu o ciclo global de lutas também na Rússia. Os protestos mobilizaram marchas de até 120 mil manifestantes, fora de qualquer rede partidária, centrais sindicais ou movimentos organizados tradicionais. A causa imediata fora a fraude nas eleições, que viriam a confirmar um terceiro mandato para Putin. O muito autorizado Hugo Albuquerque, do Descurvo, escreveu na época sobre como a revoltas russas baseavam-se em três temas principais: a questão nacional (o racismo contra minorias), a desigualdade (na transição pós-soviética) e a falta de liberdade (censura, criminalização etc) — todas elas cujo vértice continua sendo a oligarquia encabeçada por Vladimir Putin, uma máfia capitalista que herdou os lugares de poder do antigo império estalinista. Diante dos protestos, Putin reagiu grosseiramente. Ele não hesitou em aplicar táticas repressivas e tramoias policialescas dignas da antiga KGB, com a prisão política de líderes, a vigilância intrusiva e a intimidação massiva de ativistas em toda a Rússia, além de aprovar novas leis antiprotesto e instalar uma virtual polícia secreta.
A agitação continuou na Rússia até 2013. Nesse ano, o ciclo global também explodiu na vizinha Ucrânia. Reeditando a Praça Tahrir, os manifestantes ucranianos criaram um acampamento de resistência na capital Kiev, para exercer diretamente a democracia. A EuroMaidan enucleou um movimento forte de ação direta, repleto de contradições. Sua causa imediata foi a reação a um acordo entre o governo ucraniano, encabeçado pelo presidente Yanukovich, e a União Europeia, aliada de Obama.
Diferentemente da Rússia, a Ucrânia passou a década de 2000 relativamente protegida contra o desmonte derradeiro dos sistemas de bem estar e a capitalização selvagem das estruturas econômicas, no período da transição pós-socialismo. Segundo Denis, ativista e pesquisador do grupo Autonomia, em Kiev, essa relativa manutenção se deveu a um complexo equilíbrio de forças que mantinha os governantes sempre na corda bamba. Em 2013, no entanto, a crise econômico-financeira pegou a Ucrânia de jeito, e forçou o governo a tomar uma decisão. Num primeiro momento, Yanukovich esboçou o alinhamento com a UE, mas acabou torcido para a vizinha Rússia, com quem o país tem acordos de fornecimento de gás.
A opção pró-Putin de Yanukovich foi encarada por muitos como uma capitulação diante dos oligarcas no poder na Rússia, e os ucranianos não precisaram olhar muito longe para ver a penúria de seus vizinhos. Em meio ao acúmulo sucessivo de indignações, durante um governo especialmente contestado pela corrupção sistêmica e um perfil mafioso de reação à oposição, e nutrindo-se também a “Revolução Laranja” (2004), o caldo da panela entornou.
A partir de novembro de 2013, centenas de milhares de manifestantes foram às ruas e, diante da brutalidade da polícia de Yanukovich, enfrentaram uma repressão diária, com espancamentos, prisões políticas e tiros letais, além de temperaturas abaixo de zero. Os manifestantes levantaram barricadas, atacaram prédios do governo e sustentaram a EuroMaidan mesmo sob o fogo cerrado de atiradores. Milhares se feriram e algumas dezenas foram mortas dos dois lados. Desde o começo, a “esquerda” partidária ucraniana desqualificou os protestos, como irresponsáveis. Depois de um acirramento em fevereiro deste ano, a magnitude e determinação dos protestos acabaram por tornar o governo de Yanukovich politicamente insustentável. O presidente foi destituído pelo parlamento e se exilou, ao mesmo tempo que eram convocadas novas eleições. À semelhança do que ocorrera com os governos oligárquico-dinásticos de Ben Ali e Hosni Mubarak, no norte da África, três anos antes.
Hugo inscreve a EuroMaidan no ciclo global de lutas, junto de Turquia e Brasil em 2013, porque “reflete uma tendência global e local: a conjunção de uma população fortalecida pelo absurdo acesso à informação promovido pela Internet — e a cultura que isso envolve — contrastada com um cenário de incertezas para o futuro — sobretudo os mais jovens — e, de tal forma, forçada a agir dentro de cada contexto social e local. Essa revolta não poupou dos Estados Unidos à Rússia, do Brasil de Lula e Dilma ao Chile de Piñera.”
Quando a multidão mobilizada na Ucrânia mostrou a capacidade de destituir um governo e contagiar a região como um todo, símbolos neonazistas inundaram as notícias de portais, blogues e sites de “esquerda”. Com o apelo da imagem, as suásticas, uniformes e saudações fascistas facilitaram um mapa cognitivo confortável: a revolução teria sido sequestrada pelos neonazistas. E isso muda tudo. O risco da recrudescência do nazifascismo justificaria, portanto, uma condenação imediata do processo como um todo, nivelado pelos extremistas.
Por incrível que pareça, a tábua de salvação para a “esquerda” escandalizada com os nazis foi… Vladimir Putin, o ex-agente da KGB, cabeça de um governo ultracorrupto e triturador de minorias e oposições, com traços fundamentalistas.
A ausência de pensamento crítico levou vários analistas de “esquerda” a agarrar-se ao argumento do mal menor. Incapaz de enxergar bases materiais e formular conceitos à altura dos conflitos e contradições de nosso tempo, essa “esquerda” prefere aderir o mais rápido possível àquilo que confirme sua própria identidade, reconfortando-se na velha zona de certezas e convicções com que analisa o mundo e age. Em alguns casos, um prato de lentilhas ajuda nessas certezas e convicções. Mas o esquema de leitura está velho em 60 anos. Remonta à Guerra Fria de antes da insurreição húngara de 1956, quando ainda poderia ser admissível autoenganar-se com a antiga União Soviética. Seria preciso apoiar Putin contra os “neonazistas da Maidan”, que por sua vez estariam financiados e apoiados pela UE e Obama, através da OTAN e, máximo alerta, da CIA.
Da mesma forma que Obama, em 2011, tinha achatado diferenças entre Occupy e Tea Party; agora, em 2014, desta vez supostamente contra Obama, a “esquerda” achata as diferenças entre a EuroMaidan e os neonazis. De fato, existem pequenos — porém disciplinados e espalhafatosos — grupos de extrema-direita diretamente envolvidos nas manifestações ucranianas, em especial, nas ações diretas e ataques ao governo. O que é falso é que as centenas de milhares de pessoas mobilizadas estejam trabalhando, ainda que sem saber, para os neonazis. Estariam manipuladas, “hegemonizadas”. A atuação sem dúvida nefasta da extrema-direita na Ucrânia — aliás, uma variável em toda a Europa, o leitor veja as últimas eleições na França — está sendo não apenas superdimensionada, no que contribuem as imagens apelativas exaustivamente repetidas, como também usada para nivelar as manifestações dentro do rótulo dos vândalos-violentos-que-abrem-o-caminho-para-a-direita. Nessa leitura, o governo mafioso dos oligarcas sob Yanukovich, que não difere muito no conteúdo de Putin, seria o mal menor.
Eu não costumo concordar com Zizek, mas ele, que conhece o Leste Europeu, acertou em cheio quando escreveu “O que a Europa deveria aprender com a Ucrânia“. No artigo, Zizek explica como a afinidade com a UE não nasce de nenhuma ilusão a respeito da benevolência e modernidade dos europeus ocidentais. Os ucranianos estão cansados de saber da crise aguda de desmonte do welfare, das revoltas sucessivas na Grécia, Espanha, Reino Unido. Os ucranianos lutam antes por um sonho europeu de direitos, do que pela realidade atual daqueles países. Um sonho que, para o filósofo esloveno, serve para revitalizar não só uma Ucrânia sucessivamente entregue à dilapidação pelo capitalismo mafioso, mas a própria Europa. Ele não cita o caso, mas é mais ou menos como os negros haitianos marchando ao som da Marselhesa para pelejar com os franceses que, perplexos, se julgavam o país da revolução.
Nesse imbróglio, o governo da presidenta Dilma adotou uma linha simpática a Putin, mesmo quando o estado russo anexou a Crimeia, em março. As tropas de blogueiros, comentadores e cabos ideológicos do governo, em pronta resposta, começaram uma campanha aberta de 1) difamação da EuroMaidan e, 2) promoção de Putin à “guerreiro da liberdade”.
Pepe Escobar, por exemplo, não se sente envergonhado em comparar a estratégia de Putin a Sun Tzu, colocando aspas na palavra “invadir” e adotando o eufemismo clássico “reunificação”, e por “razões étnicas”, para a ação militar. O único ponto de interrogação do articulista está na pergunta: será que Putin exagerou? Já o portal Outras palavras, que apesar de tudo ainda é uma referência razoável, tem sistematicamente reproduzido matérias, colunas e reportagens estritamente na agenda de Putin. A linha editorial requenta sem parar o Hitler´s argument: o título de um dos textos é “Dossiê Ucrânia: os neonazistas a um passo do poder”, outro tem na orelha: “Como milhares de ativistas, democráticos porém atomizados, foram dirigidos pela ultra-direita”, e um terceiro começa assim: “Diante de governo corrupto e mafioso, ruas de Kiev falavam numa delirante ‘transformação apolítica’. Então, neonazistas deram um passo adiante…”.
Se o caso da Crimeia fosse um processo legítimo de reunificação, — o que não seria impossível noutro cenário — não se daria mediante um ato unilateral manu militari, num “convencimento” realizado pelas forças armadas russas, e em velocidade relâmpago (neste ponto, eu divirjo do Hugo, aqui). Se — vamos adotar a mesma gramática — se a Ucrânia tem uma soberania imperfeita, carente de grande coesão nacional, isto é uma constante no Velho Mundo. Como escreveu Denis, do Autonomia, a Ucrânia pode não ser coesa como a Mãe Rússia, — onde a URSS e agora Putin tão despudoradamente reprime e segrega as minorias, — mas é mais coesa do que a Bélgica. E, seguindo o raciocínio, como ficam zonas orientais dos estados bálticos com maiorias “étnicas” russas? E a Transnistria, na Moldova oriental?
O problema grave, no entanto, não está em comemorar a invasão russa da Crimeia, mas em enxergar em Putin um contrapoder ao “imperialismo” dos UE/EUA, aparelhando a imagem dos neonazis para desqualificar o movimento da EuroMaidan. A “esquerda” cumpre uma cartilha antiamericana tosca, com um prazo de validade vencido há 60 anos. E começa a sair do armário. O Tea Party foi na mesma linha. Da mesma maneira que esquerdistas pró-Dilma não escondem a admiração pelo estadista e estrategista da KGB, numa nostalgia inexplicável da velha URSS; no seio do Tea Party, Putin foi considerado “mais líder” do que o governo americano. O movimento populista de direita puxou inclusive uma enquete pela internet, em que perguntava qual dos presidentes seria mais mão firme, Obama ou Putin. Putin venceu.
Mas o que isso tem a ver com a situação no Brasil? Respondo com o Hugo: “nada e tudo”. “Nada” porque, provavelmente, não teremos qualquer influência nos desdobramentos do que está acontecendo em Kiev. “Tudo”, porque no fundo estamos falando de nós próprios.
Em certa medida, o bombardeio dos portais, comentadores e sites da “esquerda” conseguiu colar a propaganda que os protestos na Ucrânia são hegemonizados ou, pelo menos, estão decisivamente comprometidos, pela interferência da extrema-direita, apesar de minoritária. Também conseguiu forjar uma imagem benévola e estranhamente admirável de Putin, o herói da resistência antiamericana e antiocidental. Essa imagem, além de fruto da desinformação, revela antes de tudo o descaminho político-ideológico completo dessa mesma “esquerda”.
Primeiro, porque ao considerar que as centenas de milhares de manifestantes foram hegemonizadas pela extrema-direita, simplesmente desqualifica essas centenas de milhares de manifestantes, considerando-os alienados, “apolíticos” e conservadores eles próprios. Para quem anseia por condenar o ciclo de protestos disparado em 2011, na primavera árabe, a Ucrânia veio bem a calhar. Ajudou a reforçar o argumento de que nada há para ver aí: sigamos adiante. Esse ciclo não seria capaz de construir alternativas de esquerda, a sua composição não passaria de um mingau ideológico, tremendamente desorganizado, e a consequência lógica será inexoravelmente a captura pela direita, usufruindo do clima de instabilidade. Seriam protestos “perigosos”, “manipuláveis”, “voluntaristas”. Quem viveu os protestos de centenas de milhares no Brasil sabe como não estamos distantes da base discursiva para a criminalização à “esquerda”. Não à toa, os mesmos portais dilmistas, ainda que discretos, estejam agora difamando a EuroMaidan e achatando a complexidade do processo revolucionário na Ucrânia.
Segundo, existe uma estranhíssima linha conectando as falas moralistas do Tea Party, de Putin e, tendencialmente, de Dilma. Os três adotam um discurso back to basics, quer dizer, colocam o “homem médio” e a “família vitoriana” no centro de suas estratégias políticas, valorizando o bom trabalhador e, reflexamente, o bom patrão. Todos propõem um projeto positivo de comunidade nacional. Leem como “homem médio” aquele desejoso de ordem e progresso, sem rebeldias, com uma linguagem simples e objetivos diretos. Todos elogiam o trabalho produtivo e a necessidade de ordem. São enfáticos em condenar a corrupção em si, o crime organizado e a baderna, como comprometedores dos verdadeiros valores nacionais, que eles representam. E mais: todos se colocam como uma liderança firme, capaz de manter a ordem. Diante de protestos como o Occupy americano, as jornadas de junho no Brasil, ou a “primavera de neve”, na Rússia (2011-13), os três se apressaram em condenar a violência (acionando violentas forças policiais e/ou se calando diante delas) e afirmar que nada justifica o vandalismo (no que reúnem a figura do manifestante).
Obama não vai estar na Copa do Mundo. Putin já anunciou que virá. A próxima Copa, em 2018, vai ser na Rússia.
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Foto: Ichiro Guerra/PR. São Petersburgo – Rússia, 05/09/2013
Fonte: Quadrado dos Loucos
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