PICICA: "Uma copesquisa nas ciências, então, implica antes de qualquer coisa
uma ocupação constante em construir outras pontes e outras formas de
relação entre a instituição da ciência e as forças sociais, vivas, que
já circulam e se relacionam. Estas que também produzem saberes e que
também se beneficiam e participam ou podem participar da instituição da
ciência (numa universidade com maior acesso, e com gestão mais aberta à
cidade, por exemplo). Nesse ponto, por um lado, o caso é enredar
experiências mais institucionais no sentido de libertar a produção de
saberes vivos que já existem, embora fragmentados ou isolados,
dando-lhes relevância política; por outro lado, reconhecer a extensão
das redes de produção de ciências para além dos confinamentos
disciplinares e institucionais, pesquisando junto dos sujeitos sociais
mobilizados produtiva e politicamente. Esta pesquisa se torna, desta
maneira, também uma ação política, coordenando as duas frentes."
Copesquisa em ciências e sociedade
Foto: UEM, maio 2014
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Democratizar as ciências
O governo brasileiro estabelece a ciência como ativo estratégico, conforme o projeto de melhorar a situação do país na divisão internacional do trabalho. A política do governo, basicamente, consiste em qualificar a produção de conhecimento para capacitar o parque produtivo nacional, e reverter a “balança comercial” tecnológica desfavorável. Nesse propósito, têm sido executados programas de desenvolvimento científico e tecnológico, como o Brasil maior ou o Ciência sem fronteiras, repletos de escolhas e critérios sobre o tipo e a forma de ciência em que o país precisaria investir.
Ao mesmo tempo, vivemos um período de intensas mobilizações que exprimem o desejo por maior democracia em termos de acesso e gestão. Durante várias décadas no Brasil, os movimentos e lutas sociais se orientavam por pautas mais táticas, com demandas imediatas ou reivindicações no sentido de melhorar a margem dos trabalhadores, dentro da regulação capitalista. Recentemente, no entanto, um extenso cinturão de sujeitos de luta se recombinou e adquiriu força material para expandir a pauta, querendo não apenas conteúdos mais vantajosos na estrutura representativa existente, mas novas formas de democracia, participação e cogestão. Com incidência direta na questão das ciências, tão centrais nas discussões sobre os projetos de cidade, desenvolvimento e progresso tecnológico, de que a sociedade precisa.
Nesse contexto, a democratização das ciências nunca foi tão atual. A reapropriação não apenas da discussão e decisão sobre as ciências de maneira mais aberta e abrangente, mas também o coengendramento de modos de produzir ciências e saberes em redes mais heterogêneas, quebrando o discurso especialista e os positivismos metodológicos. A democratização passa, por um lado, pelo redimensionamento das coordenadas do desenvolvimento científico. Por outro lado, passa por uma renovação epistemológica da própria ciência, além das normas e modelos impostos seja por uma estatização do projeto nacional de pesquisa (com fins de inserção vantajosa no mercado globalizado), seja pela mercantilização gradual das esferas de produção de conhecimento a serviço das indústrias multinacionais (farmacêutica, agronegócio, automobilística, petroquímica etc), — um e outro se misturando sem maiores atritos numa simbiose típica do neodesenvolvimentismo em curso. Em ambos os casos, estamos na tentativa de reeditar um modelo forjado nas economias centrais do segundo pós-guerra, a Big Science, se orienta por empreendimentos hegemonizados pelos grandes players do capitalismo.
A democratização não pode ser, contudo, apenas fazer o elogio romântico da small science, nem somente pluralizar os caminhos do conhecimento e sua institucionalização, como se fosse necessário contemplar outros setores, numa reconciliação geral. Trata-se, na realidade, de destituir os projetos e modelos que aparelham a instituição da ciência, para gradualmente afirmar politicamente outras redes de produção de saber, imediatamente antagonistas e criativas. Estas não existem, simplesmente, “fora” da grande fábrica da Big Science, como se o caso fosse criar instituições paralelas e abandonar a disputa das afluências de recursos em determinados programas, sua gestão e acesso. O fato é que, dentro da própria instituição da ciência, coexistem experiências e redes que procedem por outros métodos, mas que ao mesmo tempo são mantidas isoladas, desconectadas, e funcionalizadas segundo uma gestão superior, que acomoda, inclusive, sua produtividade segundo o modelo dominante.
Por isso, é preciso assumir a imanência entre os saberes maiores (integração pela Big Science) e os saberes menores ou vivos, costurados juntos, ainda que os últimos sejam tendencialmente dissensuais aos primeiros. Isto significa que a democratização do campo das ciências passa por uma aliança com esses saberes menores e o lugar em que acontecem, inclusive por dentro das malhas e labirintos das instituições existentes, sobredeterminadas que estão pelo estado e mercado. A luta pela democracia não é, portanto, simplesmente institucional, já que sorve das forças sociais, as únicas que podem conferir a energia de democratização e romper os modelos, — mas também é uma luta institucional.
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Dos métodos
Ao longo do século 20, o tronco anglo-saxão da filosofia das ciências devastou os edifícios teóricos do cientificismo normativo ou disciplinar. A Ciência tem pés de barro e caminha sobre a terra. Todos os esqueletos no armário do que se pretendia Ciência, com maiúscula, foram expostos em praça pública. A trajetória desse trabalho de demolição de fundamentos culmina no anarquismo metodológico de Paul Feyerabend, cuja obra se pauta pela leveza narrativa, incentivo à experimentação e pluralismo democrático de formas e conteúdos. Para o autor, os fundamentos destroçados não devem ser reunidos nalguma nova grande ideia, mas recombinados criativamente segundo um mosaico de marcos epistêmicos, tão múltiplo quanto a própria composição social.
Apesar da desconstrução da Ciência e suas pretensões insustentáveis, a Big Science não se desarticulou. Muito pelo contrário, nas últimas décadas, fortaleceu-se continuamente, aumentando o valor das patentes, integrando as redes científicas à indústria e promovendo endêmicas campanhas de desinformação em aspectos-chave, como transgênicos, meio ambiente ou tabagismo. Fica claro como não basta destroçar, nas teorias, o edifício epistemológico sustentando o modelo, porque ideias só podem vencer ideias. Falta um suplemento paralelo de ação política, que formule alternativas concretas a partir dos sujeitos existentes e tendências de luta, para retomar as estruturas da prática científica. Novamente, tais sujeitos não precisam se restringir apenas àqueles diretamente envolvidos nessa atividade, podendo colher energias num meio social em intensa mobilização por direitos.
Pesquisadores como Bruno Latour, hoje, invocam as ciências para reorientar as lutas. Na questão ecológica, por exemplo, o autor convoca a instituição da ciência para construir um novo tipo de objetividade e racionalidade, que congregue tendências atualmente díspares em causas comuns. Está falando de um conceito forte de ciência, que propicie forças para enfrentar o establishment industrialista-modernizante. Latour aposta na (alegada) excelência da antropologia simétrica em realizar a mediação entre a pluralidade de modos de existência, num trabalho que ele qualifica como “diplomático”. A antropologia dos modernos seria um tipo de ecumenismo, um esperanto ontológico. No entanto, muitas vezes a relação estabelecida entre as forças políticas dominantes e as resistências, em cada modo de existência, acaba sendo conflitiva, dissensual, — onde qualquer “consenso possível” é dos atuais vencedores até que se transformem as condições do problema e as correlações de força, possibilitando aí sim, outros consensos mais interessantes.
De toda sorte, o problema é que, descolada da composição social, a instituição da ciência se distanciou também da capacidade de produzir narrativas alternativas e frontes abrangentes de mobilização. O fechamento epistêmico foi estratégico para segregar a discussão, criando interdições e reservas de mercado. O programa do século 20 de separar-se como saber especialista e racionalidade superior, segundo a integração estatal e mercadológica, levou as ciências a se tornar um assunto distante, quase hermético, para a grande maioria das pessoas. Daí a ocupação do discurso pelas instituições programáticas estatais ou pelo próprio mercado, — dois modelos entrelaçados que andam juntos para mediar a produção dos saberes com a sociedade, cingindo-os em projetos políticos indiscutíveis aos meros mortais.
Um grande desafio consiste, em consequência, em como reatar o envolvimento social com as ciências. Não só para determinar os rumos e políticas, como também para reapropriar-se da instituição da ciência dentro de uma multiplicidade de propostas e utilidades, transformando institucionalmente e, quem sabe, o próprio conceito de ciência. Essa é a linha de métodos mais democratizantes, tão oportunos hoje no Brasil, como no âmbito das science studies ou no âmbito da STS (Science, Technology and Society). Os saberes vivos que circulam pela sociedade também são produtivos, antes e depois do processamento pelas mediações em que as ciências têm sido separadas e acondicionadas (para então serem reintegradas nos grandes modelos, a Big Science sempre foi ao fim e ao cabo interdisciplinar).
Uma copesquisa nas ciências, então, implica antes de qualquer coisa uma ocupação constante em construir outras pontes e outras formas de relação entre a instituição da ciência e as forças sociais, vivas, que já circulam e se relacionam. Estas que também produzem saberes e que também se beneficiam e participam ou podem participar da instituição da ciência (numa universidade com maior acesso, e com gestão mais aberta à cidade, por exemplo). Nesse ponto, por um lado, o caso é enredar experiências mais institucionais no sentido de libertar a produção de saberes vivos que já existem, embora fragmentados ou isolados, dando-lhes relevância política; por outro lado, reconhecer a extensão das redes de produção de ciências para além dos confinamentos disciplinares e institucionais, pesquisando junto dos sujeitos sociais mobilizados produtiva e politicamente. Esta pesquisa se torna, desta maneira, também uma ação política, coordenando as duas frentes.
Trata-se de uma organização das autonomias, quando não estiverem subordinadas ou integradas pelos grandes modelos da Big Science. O resultado disso será menos a proposição de outro grande modelo totalizante, do que o adensamento de redes de cooptações laterais e produção heterogênea, de onde proliferam alternativas constituintes para fazer ciência e vivê-la como democracia.
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Parte deste texto foi apresentada como fala ao Grupo de Pesquisa em Science Studies da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 27/5/2014. Dedico especialmente à professora Cristina Machado, pelo percurso que, do Círculo de Viena à astrologia afirmativa, me ensinou as bases também para pesquisar nesse campo tão crucial.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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