maio 07, 2014

"Getúlio cai nas armadilhas do filme histórico", por José Geraldo Couto

PICICA: "São muitas as armadilhas que rondam o filme histórico. A principal delas é a de cair no didatismo de uma aula ilustrada. Outras tantas são as ciladas da cinebiografia de “grandes vultos”. A mais comum: confundir-se com a hagiografia, fazer do biografado um ser predestinado, descolado do restante dos mortais, “maior que a vida”.

Ainda que seja uma narrativa eficiente e agradável, Getúlio, de João Jardim, não escapa completamente desses perigos. Talvez fosse mais correto dizer: no afã de ser uma narrativa eficiente e agradável é que Getúlio incorre neles."

Getúlio cai nas armadilhas do filme histórico


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Podendo optar por várias linhas narrativas, obra de João Jardim hesita e fica entre superfície e artifícios. Já “Longwave”, mesmo despretensioso, não derrapa 

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

São muitas as armadilhas que rondam o filme histórico. A principal delas é a de cair no didatismo de uma aula ilustrada. Outras tantas são as ciladas da cinebiografia de “grandes vultos”. A mais comum: confundir-se com a hagiografia, fazer do biografado um ser predestinado, descolado do restante dos mortais, “maior que a vida”.

Ainda que seja uma narrativa eficiente e agradável, Getúlio, de João Jardim, não escapa completamente desses perigos. Talvez fosse mais correto dizer: no afã de ser uma narrativa eficiente e agradável é que Getúlio incorre neles.



Personagem-esfinge

Getúlio Vargas, como se sabe, é uma figura imensa e contraditória, um desses personagens-esfinges que desafiam biógrafos, historiadores e artistas. O principal acerto dos realizadores de Getúlio foi restringir seu recorte narrativo aos últimos dias do presidente (interpretado porTony Ramos), aqueles que vão do atentado contra seu principal inimigo, Carlos Lacerda (Alexandre Borges), até o tiro com que Vargas saiu da vida para entrar na História. Dois tiros, portanto, servem como balizas temporais.
Mas, mesmo dentro desse tempo-espaço concentrado – recurso de que se serviram desde o Shakespeare de Julio Cesar até o Spielberg de Lincoln –, sobravam muitas linhas narrativas ou focos de atenção possíveis: a investigação policial do atentado contra Lacerda; as intrigas políticas que levaram ao isolamento do presidente; os dilemas morais e a tragédia íntima de Getúlio; sua relação com a família, em especial com a filha Alzira (Drica Moraes); os eventuais paralelos subterrâneos com o Brasil atual etc.

Sem conseguir – ou sem desejar – optar por nenhuma dessas vertentes em detrimento das outras, o Getúlio de João Jardim acabou ficando no meio do caminho, ou melhor, na superfície de cada uma delas. Nem é uma tragédia moral, um estudo das paixões humanas como Julio Cesar, nem uma discussão do mecanismo da realpolitik como Lincoln, nem um thriller político à maneira dos filmes de Costa-Gavras, Elio Petri e Francesco Rosi, nem um melodrama familiar que flagrasse o “lado humano” do personagem.

Realismo ou paródia

João Jardim e o roteirista George Moura não tinham, evidentemente, a obrigação de seguir nenhuma dessas opções. Mas o que fica dessa indefinição, a meu ver, é uma narrativa competente, mas sem substância, que acaba tendo de ser inflada por uma música bombástica, uma montagem crispada, um uso exacerbado dos ruídos. Seu modo de encenação, contido pelas amarras da verossimilhança e da sobriedade de tom, acaba por lembrar aquelas “reconstituições” de crimes que vemos nos noticiários de televisão. À força de buscar o realismo, acentua-se a artificialidade, a impostação.

O crítico Jean-Claude Bernardet costuma dizer que só é possível tratar do período da ditadura militar brasileira pela via da paródia – que pressupõe sempre uma reflexão autocrítica sobre o próprio modo de narrar. Tendo a achar que isso vale, em alguma medida, para os filmes históricos de modo geral. Sempre que se levam a sério demais, ou seja, sempre que pretendem fazer o espectador acreditar que “foi assim que as coisas aconteceram”, soam tão falsos quanto representações teatrais escolares ou brincadeiras de mocinho e bandido.


Olhar oblíquo

Um modo oblíquo e autoirônico de abordar um fato histórico importante foi a via escolhida pela comédia Longwave – Nas ondas da revolução, do suíço Lionel Baier, para falar da Revolução dos Cravos que acabou com meio século de ditadura salazarista em Portugal.

Nessa coprodução franco-suíço-portuguesa, uma equipe de rádio suíça de língua francesa é enviada a Portugal, em abril de 1974, para produzir matérias meio chapa-branca sobre a ajuda suíça supostamente fornecida ao país nas áreas de infraestrutura, tecnologia, educação etc.

Percorrendo o interior português numa Kombi, com um equipamento precário e sem falar a língua, esse pequeno exército Brancaleone é atropelado pela revolução e interage com ela das maneiras mais imprevistas e inusitadas.

As passagens mais impagáveis são aquelas em que o veterano radialista Cauvin (Michel Vuillermoz) julga estar falando português, idioma que ele conhece de orelhada.

Sem a pretensão de ser uma obra-prima ou de revolucionar o cinema, Longwave conta com um roteiro engenhoso que, em vez de tentar “reconstituir os fatos”, opta por construir uma narrativa que alude à atmosfera daquele momento histórico, em que entram a surpresa, a confusão, a alegria, as promessas de liberdade (inclusive sexual). Longe de qualquer intenção didática – e muito menos panfletária –, o filme é uma celebração da vida e de suas infinitas possibilidades. Sempre que um bando de loucos acredita nisso, não dá outra: é bonita a festa, pá.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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