PICICA: "Somos máquinas desejantes. Não no sentido
metafórico, literalmente. Máquinas acopladas a outras máquinas,
máquinas produzindo conexões. Tudo em nós cria, faz, corta, processa,
produz… Nosso corpo é uma usina. É assim que Deleuze e Guattari definem o
ser humano em “O Anti-Édipo”. Suas críticas à psicanálise vão longe, neste texto abordaremos o conceito de máquinas desejantes e o inconsciente produtivo."
Deleuze: Máquinas Desejantes
“O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida,
e por fora,
o doente brilha,
reluz,
em todos os seus poros,
estourados”
- Antonin Artaud
Somos máquinas desejantes. Não no sentido
metafórico, literalmente. Máquinas acopladas a outras máquinas,
máquinas produzindo conexões. Tudo em nós cria, faz, corta, processa,
produz… Nosso corpo é uma usina. É assim que Deleuze e Guattari definem o
ser humano em “O Anti-Édipo”. Suas críticas à psicanálise vão longe, neste texto abordaremos o conceito de máquinas desejantes e o inconsciente produtivo.
Tudo para
Deleuze é produção, constante movimento. Nós também somos este fluxo
material: átomos se juntando e se separando, formando moléculas que se
sobrepõe, decompõe, justapõe. O movimento é sempre de expansão, sempre
algo passando por cima de algo, sempre alguma coisa engolindo outra.
Confuso? Pois é assim mesmo que Deleuze quer, as máquinas desejantes são
uma multiplicidade pura que nega a identidade.
Estas partículas se juntam para formar
coisas, elas adquirem uma determinada ordem que possui a capacidade de
manter-se. E aqui é onde nós nos encontramos: a organização das máquinas
desejantes cria o organismo (e o corpo é uma máquina dentro de uma
máquina social). As células são máquinas microscópicas, os dentes são
máquinas de morder, o olho é uma máquina de ver, o estômago é uma
máquina de digerir, o pênis é uma máquina de fecundação, o útero é uma
máquina de fazer bebês.
Estas máquinas acoplam-se umas às outras
em sistemas binários formando regimes associativos: junto-separado,
corte-fluxo, enche-esvazia. Produção de produção. Sempre em movimento,
sempre movimentando e sendo movimentadas por máquinas menores e maiores.
Produção sem lógica, sem nexo, sem finalidade. Homem e terno e celular e
carro caro se torna máquina alto executivo. Mulher e megafone e cartaz e
tinta na cara se torna máquina feminista. Criança e espada de plástico e
cavalo de brinquedo e máscara vira máquina super-herói. Sempre uma
coisa e outra coisa, sempre “e… e… e…”.
“O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções” – Deleuze, O Anti-Édipo.
Esta produção é também o que define nosso
inconsciente: uma usina, uma metalúrgica operando na máxima capacidade
(a natureza não economiza). “O inconsciente produz. Não pára de
produzir. Funciona como uma fábrica” (Deleuze, Abecedário). Somos fruto
dessa produção desenfreada. O desejo se cria, se faz, se expande e nós
sentimos isso em nós, zunindo, rangendo. E quando o desejo cresce e
transborda, ele cria, e toda criação acontece no real (porque não há
nada além da realidade). Não há negatividade na natureza; como ela
existe, ela parte sempre de um ponto maior que zero. Por isso não falta
nada ao desejo: todo desejo é produção de realidade.
Nesta oficina se processa toda a produção
inconsciente que nos atravessa, podemos sentir o desejo a fluir por
nossos poros e ultrapassar nossa pele. O inconsciente produtivo se
utiliza da matéria para sua criação. Mas quando o inconsciente é
impedido de produzir, ou quando o desejo não pode expandir-se, ele
rebate e volta-se para dentro de nós, abrindo um buraco que passamos a
definir como falta (ver Deleuze e o Desejo).
O inconsciente produtivo não é um palco
onde se interpreta uma peça de teatro grego, não interiorizamos nada
porque não há interior, existem apenas fluxos, máquinas dispostas em
determinadas ordens. O inconsciente não repete indefinidamente uma peça
de teatro porque na verdade é uma usina atômica. Ele explode e podemos
ouvir o estrondo nos atravessar e ecoar pelo espaço ao nosso redor. Esta
produção desejante é completamente anedipiana, ela resiste ao Édipo.
Ninguém nos pergunta “quais são suas
máquinas desejantes?”, ninguém quer saber como você está organizado,
querem logo te encaixar em algum lugar. Nossas máquinas desejantes são
organizadas pela máquina social. O padre diz que você é filho de Deus, o
psicanalista te convida a se deitar no divã. A fantástica usina fica
então reduzida a um “sujo segredinho familiar”: papai-mamãe-filhinho.
Toda produção desejante é esmagada por Édipo e suas interpretações. O
desejo não quer ser interpretado, ele quer criar, quer expandir-se.
Nós somos máquinas desejantes movidas por
um inconsciente produtivo, façamos jus à definição! Enquanto formos
organizados por máquinas sociais, nossa produção se perderá
indefinidamente ou estará diretamente ligada a meios externos que não
nos convém. Máquinas gregárias ao invés de máquinas nômades. Primeira
tarefa positiva da esquizoanálise: descobrir suas próprias máquinas
desejantes. Não interpretar, mas experimentar. Esta é a condição
essencial para as produções se transformarem em intensidades. Produção a
serviço da improdução (ver Corpo sem Órgãos). Só assim é possível passar de máquinas entorpecidas para máquinas revolucionárias.
“se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do desejo e dos fenômenos de desejo, o desejo continuará sendo manipulado pelas forças de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revolucionárias” – Deleuze, Conversações.
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