PICICA: "É com o pensamento de Nietzsche e
Espinosa que Deleuze desenvolve uma concepção do desejo completamente
inversa ao senso comum, à filosofia idealista, ao cristianismo e à
psicanálise (Freud e Lacan).
O desejo não é falta, é produção! “Não é
carência, mas excesso que ameaça transbordar” (Onfray, A Potência de
Existir). Por que tantos filósofos tomaram o caminho oposto? A resposta:
porque acreditavam num mundo transcendente, acima do real (mas não há
nada fora do todo!). Eles erraram ao acreditar que o desejo mira um
“mundo das ideias” (sim, Platão ainda ronda em nossa psicologia). O
desejo platônico/cristão/idealista cria fantasmas, cria outras
realidades, cria significantes que buscamos, paraísos que almejamos,
sonhos que nunca alcançamos."
Deleuze e o Desejo
Não poderíamos escrever um esboço para uma contra-história da psicologia
sem inverter uma ideia que circula desde Platão: o desejo como falta.
Dissemos que a psicologia se constrói com bases filosóficas e que a
história é escrita pelos vencedores; então, se trocarmos as personagens
na base de nossa estrutura de conhecimento, arriscamo-nos a levar abaixo
toda psicologia moderna.
No lugar de Platão, coloquemos, a título
de experimentação, Aristipo (435 – 366 a.C). Para Platão, este mundo é
apenas uma “cópia imperfeita” do verdadeiro e imperecível “mundo das
idéias”; já para Aristipo, o verdadeiro mundo é este, e o verdadeiro bem
é a busca do prazer aqui e agora, um hedonismo racional que procura o
prazer e evita a dor. Outra inversão: Hegel sai, entra Nietzsche. Para o
filósofo idealista, o desejo significa falta, “desejo de…”; enquanto
para Nietzsche, desejar algo que não seja o real seria julgar e condenar
insuficiente a própria realidade.
“Inventar fábulas sobre um ‘outro’ mundo diferente deste não tem sentido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de depreciação, de receio: neste caso nos vingamos da vida com a fatasmagoria de ‘outra’ vida distinta desta e melhor do que esta” (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos).
É com o pensamento de Nietzsche e
Espinosa que Deleuze desenvolve uma concepção do desejo completamente
inversa ao senso comum, à filosofia idealista, ao cristianismo e à
psicanálise (Freud e Lacan).
O desejo não é falta, é produção! “Não é
carência, mas excesso que ameaça transbordar” (Onfray, A Potência de
Existir). Por que tantos filósofos tomaram o caminho oposto? A resposta:
porque acreditavam num mundo transcendente, acima do real (mas não há
nada fora do todo!). Eles erraram ao acreditar que o desejo mira um
“mundo das ideias” (sim, Platão ainda ronda em nossa psicologia). O
desejo platônico/cristão/idealista cria fantasmas, cria outras
realidades, cria significantes que buscamos, paraísos que almejamos,
sonhos que nunca alcançamos. Um mundo estático de objetos “Verdadeiros”:
“Desejo: quem, a não ser os padres, gostaria de chamar isso de “falta”? Nietzsche o chamava de Vontade de Potência” (Deleuze, Diálogos).
E ainda podemos completar dizendo que Espinosa o chamava de conatus. Para
Deleuze só há o real, feito de matéria e átomos, construções
moleculares em movimento. Desejo não é falta, é produção! E quando
produz, produz o real, somente o real. Nós somos máquinas desejantes que
criam fluxos, promovem cortes, novos processos, novas
(des)organizações. O desejo é responsável por fabricar novos arranjos:
“desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto” (Deleuze,
Abecedário). O corpo é uma formação molecular aberta. A desestruturação
molecular que se desfaz para tomar novas formas num plano imanente: isto
é o desejo! Ele se forma na multiplicidade do real que, nunca pleno, se
rearranja. Movimento em um campo aberto, não o fechamento num objeto
estático.
Querer uma coisa, desejar alguém,
procurar algo não é ser puxado ou atraído por um objeto exterior com a
promessa de satisfação estática; é ser empurrado por dentro, é mover-se
no real. Mas para onde? Por que caminhos? Não há como saber! Definir o
desejo é matá-lo, uma palavra e o desejo seria estancado, ele não quer
ser interpretado, quer ser experimentado! Um vulcão em erupção é desejo,
uma flecha cortando o ar também, não pelo alvo, mas pelo zunido que faz
quando passa.
Por isso todo desejo é revolucionário,
porque investe no real, o rearranja, desestrutura. Desejo é movimento:
“faz passar estranho fluxos que não se deixam armazenar numa ordem
estabelecida” (Deleuze, Anti-Édipo), “constrói máquinas que,
inserindo-se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de
deslocar o tecido social” (Mil-Platôs).
Este é o problema de Deleuze com a psicanálise: o desejo é revolucionário! Nós somos máquinas desejantes,
mas a psicanálise reduz o desejo a um teatro grego, tenta entendê-lo
chamando de Édipo, tenta domá-lo pela castração. Ela o interpreta, o
compartimenta e por fim, o mata. Mas enfim… isto já é assunto para um
outro texto…
“Para a psicanálise, pode-se dizer que há sempre desejos demais. Para nós, ao contrário, nunca há desejos o bastante.” (Deleuze, cinco proposições sobre a psicanálise)
Fonte: Razão Inadequada
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