maio 02, 2014

"Lênin para o século 21", por Bruno Cava

PICICA: "Se Marx pensou na comuna como aposta de organização e Lênin o soviete, hoje estão em gestação os lugares de subjetivação, isto é, as formas concretas da transição. Os muitos focos de luta centelham globalmente, uma vez que a dominação capitalista é globalmente integrada. A cooperação transversal, a liderança distribuída, a horizontalidade dos processos, a arquitetura em rede, a produção biopolítica — tudo isso são parâmetros tanto do capital mais avançado, quanto da resistência e da franja de reinvenções dos novos movimentos. Daí que não adianta tentar reeditar formas falidas que nada mais tenham a ver com o cotidiano produtivo das vidas, por meio de organizações totalmente obsoletas. Tal nostalgia de outros momentos do século passado não condiz com a necessidade de calcar-se na organização produtiva realmente existente, e leva a uma espécie de autismo político. Sem requalificação, sem apoiar-se nas tendências, todo o movimento estudantil, sindical e orgânico está fadado à impotência, à incapacidade de fazer qualquer coisa de eficaz e expansivo. Enquanto isso, os teóricos e empreendedores do capital não perdem tempo defendendo a ortodoxia para adaptar-se à realidade produtiva, redimensionando os mecanismos de controle e inventando novos. A luta de classe é dinâmica, na medida da liquidação das formas antigas."

Lênin para o século 21
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Lênin, numa passagem muito incompreendida, afirmava que, como os operários têm chefes nas fábricas, eles também vão precisar de chefes no partido. Contudo, ao contrário da primeira impressão, o ativista bolchevique não está defendendo a subordinação do trabalhador e o vanguardismo por si mesmo. É que Lênin não acreditava numa revolução que não estivesse baseada solidamente na realidade vivida pelas pessoas de seu tempo. O ponto de partida para a organização revolucionária precisa ser o cotidiano produtivo. Não pode haver eficácia na luta, se não estiver calcada sobre relações de produção já experimentadas, sobre a organização do dia a dia. O processo de luta se desenrola, exatamente, partindo dessas relações mais cotidianas, para subvertê-las, para extrapolar as tendências internas de libertação. A política é a arte da reorganização do existente, e não algum projeto idealista a partir de cabeças iluminadas ou esclarecidas.

Embora a Rússia no começo do século 20 fosse predominantemente agrária e subdesenvolvida, Lênin via na instalação das fábricas uma tendência, uma mudança qualitativa nas formas de organização social. Na época, a fábrica era a unidade mais produtiva da sociedade moderna. Era o motor do desenvolvimento capitalista. Desprezada por anarquistas pequeno-burgueses, que só viam mecanização e despolitização no rude meio operário, Lênin via na fábrica elementos potentes de cooperação e articulação, que poderiam ser reorganizados. O lado negativo da fábrica estaria antes no controle exercido pelos patrões, no esmagamento sistemático da auto-organização operária, mas não em sua existência como tal. O objetivo é aumentar a produtividade do modelo da fábrica, ao libertar o trabalho do capital. Contra quem desviava com nojo ou elitismo o olhar da vida nas fábricas e ao redor delas, considerando-as um inferno corruptor do homem e da natureza; Lênin insistia em apontar focos de subjetividade, arranjos produtivos inovadores no interior do meio operário.

Daí que, em franca contraposição aos populistas russos (os narodniks), Lênin preferisse centrar a teoria da organização nas fábricas, e não da propriedade comunal pré-capitalista (a obščina).  Se os “puros e duros” narodniks elogiam o pobre em seu “habitat natural”, quase nostalgicamente, como sacralidade a defender-se; para Lênin a virtude da pobreza já está desde sempre no artifício, na capacidade de reinventar relações solidárias e criar vida em condições de privação e sofrimento, como na fábrica. A potência do pobre está na ficção, numa imaginação real e em movimento, e que transfigura o sofrimento em mais vida e luta.

Com isso, Lênin vai participar de uma organização que se molda à semelhança do modelo da fábrica, tomada pelo lado da produção de subjetividade. Um partido-fábrica, que vai propor a tomada do poder dos meios de produção, para conferir-lhes outro sentido, o comunismo, liberto das coações e violências de classe. O capitalista representado pelo estado é visto como um entrave para a expansão das forças produtivas. A extinção do estado deve ser concomitante à tomada do poder. A organização bolchevique, portanto, tenta repetir e potenciar a forma fabril como um ponto de partida, organizando os operários nos sovietes e no partido revolucionário. Eis aí o leninismo de Lênin: uma teoria da revolução imediatamente imbricada numa teoria da organização (o partido-fábrica, a partir da leitura da tendência) e numa teoria da subjetividade (relações de produção que são subvertidas, potenciadas no comunismo). Essa teoria se enredou com a prática do partido bolchevique em circunstâncias extremamente favoráveis. Como se sabe, isso deflagrou um devir revolucionário que acelerou dramaticamente a luta de classe da Rússia. Os descaminhos posteriores, seja por razões exógenas ou endógenas, ou por uma combinação de ambas, não eliminam a força comprovada do leninismo.

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Obviamente, a teoria de Lênin elaborada no começo do século 20 não vale mais em tempos de capitalismo tardio, globalizado e integrado. A revolução russa determinou as formas de luta em seu desdobramento histórico por todo o século passado, porém, suas premissas devem ser repensadas radicalmente. O próprio leninismo, atualmente, chega a ser uma palavra maldita, um xibolete associado a grupúsculos obscuros e vanguardas impotentes, completamente descoladas da vida do trabalhador. Diferentemente daquele tempo, a classe trabalhadora hoje compreende não apenas o operariado de fábrica, como também a inteira rede social de produção de serviços, relações, imagens, afetos, bens materiais e imateriais. Se sucede uma tendência, hoje, não está mais na formação das fábricas, segundo o modo de organização do começo do século 20. Está, isso sim, no investimento progressivo de toda a metrópole dentro dos circuitos de produção e circulação, na inclusão de todos no mercado de trabalho e consumo — uma socialização geral e irreversível.

Por mais que a agricultura e a indústria convencional continuem existindo, o fato é que um processo de pós-industrialização atinge a sociedade dissolvendo formas antigas, inclusive reconfigurando as relações de produção dos ditos setores “primário” e “secundário” da economia. Da mesma forma que a agricultura fora industrializada, a indústria é pós-industrializada. O capitalismo não se contenta mais com a extração de mais-valor da produção fabril. O capital explora também e sobretudo as redes deslocalizadas de serviços, trocas simbólicas e compartilhamento, o inteiro tecido biopolítico em que estão todos, formalmente reconhecidos como trabalhadores ou não, implicados em sua vida cotidiana. Por isso, sem se respaldar na própria vida social e suas formas de produção, qualquer apelo de luta anticapitalista/antiestatal corre o risco de rapidamente degenerar para banalidades antiautoritárias, sem premência ou dinâmica expansiva.

Neste contexto, seria possível resgatar o triângulo de Lênin: subjetividade – organização – revolução? Talvez sim.

Se a tendência hoje é da formação de um proletariado cognitivo (a dita “proletarização pós-fordista), então é aí que devem ser pesquisadas as relações de produção — relações que são, imediatamente, um novo e geral cotidiano produtivo. A classe trabalhadora virou suco e isso em certo sentido foi bom, porque significou a derrubada dos muros da fábrica. O operariado se liquefez ele próprio, vazando das estruturas fabris para derramar-se sobre a metrópole biopolítica. Portanto, sem desprezar, de modo elitista, o imbricamento das pessoas com suas ferramentas, modos de cooperação e formas de trabalho; é preciso identificar os tempos e espaços da cooperação social, e onde estão os pontos de atrito, em que se é canalizado e explorado pelos patrões. Certamente, no começo do século 21, muitas vezes os patrões estão mais deslocalizados e abstratos do que antes, na figura das finanças, de comandos difusos e cada vez mais invisíveis de um funcionamento econômico, alçado à condição transcendental.

O método de Lênin consiste em estar “dentro e contra”; dentro das relações de produção, subvertendo-as, e contra os patrões (condensados ou difusos), tomando-lhes o poder. Nada de imaginar reservas sacrossantas que estariam a salvo do capitalismo. A libertação não está em construir sociedades alternativas, mas em ativar uma alternativa de sociedade (o comunismo), na imanência do cotidiano social mais imediato e disseminado. Por isso que, se o telefone celular ou a rede social da internet estão tendencialmente indissociáveis da organização das relações (de trabalho, afetivas, de diversão, de comunicação), então é possível subverter as relações de produção aí implicadas, para que o telefone celular e a rede social sejam usadas politicamente, potenciando a subjetividade. O mesmo vale para o consumo: embora o programa do capital seja assujeitar o consumidor dentro de padrões dóceis e multiculturais, neutros em relação à política, essa relação de produção pode ser reorganizada, a fim de gerar efeitos de subjetividade. A mobilidade urbana, se é condição para a superexploração dos fluxos e a ordenação da cidade, também pode se converter em mobilização. E assim por diante, o ponto está em que somente pesquisando como as pessoas se organizam produtivamente, — matriz sobre o que o vampirismo capitalista funciona —, seja possível mapear as resistências e criatividades, que podem ser integradas coletivamente numa estratégia.

Isto significa que é preciso, também, contestar os novos narodniks que defendem alguma pureza em grupos supostamente intocados, que estariam mais em contato com a “natureza” ou depurados da contaminação das tecnologias, das redes, da integração global. É preciso, ainda, contestar os utopistas, — usualmente elitizados e muitas vezes munidos apenas de retórica, — para quem a salvação consista em separar-se da mediocridade do mundo, em comunidades Osho, retiros ecológicos new age, casas Fora do Eixo ou seitas de baixa dieta proteica à moda Jim Jones. Para que uma revolução possa acontecer, é imprescindível que suceda efeito de escala, dentro e contra o modo capitalista dominante, numa alternativa de vida. Que, nesse processo, as formas concretas da transição (para o comunismo) já existentes sejam libertadas de dentro dos modos existentes de cooperação, autoprodução de sujeitos e libertação, e assim reorganizadas e requalificadas. E que os pontos de atrito sejam tensionados segundo a própria conformação das relações de produção do capitalismo atual, o que evidentemente passa pelo racismo, o patriarcado, a heteronormatividade e tantas outras opressões majoritárias.

Se Marx pensou na comuna como aposta de organização e Lênin o soviete, hoje estão em gestação os lugares de subjetivação, isto é, as formas concretas da transição. Os muitos focos de luta centelham globalmente, uma vez que a dominação capitalista é globalmente integrada. A cooperação transversal, a liderança distribuída, a horizontalidade dos processos, a arquitetura em rede, a produção biopolítica — tudo isso são parâmetros tanto do capital mais avançado, quanto da resistência e da franja de reinvenções dos novos movimentos. Daí que não adianta tentar reeditar formas falidas que nada mais tenham a ver com o cotidiano produtivo das vidas, por meio de organizações totalmente obsoletas. Tal nostalgia de outros momentos do século passado não condiz com a necessidade de calcar-se na organização produtiva realmente existente, e leva a uma espécie de autismo político. Sem requalificação, sem apoiar-se nas tendências, todo o movimento estudantil, sindical e orgânico está fadado à impotência, à incapacidade de fazer qualquer coisa de eficaz e expansivo. Enquanto isso, os teóricos e empreendedores do capital não perdem tempo defendendo a ortodoxia para adaptar-se à realidade produtiva, redimensionando os mecanismos de controle e inventando novos. A luta de classe é dinâmica, na medida da liquidação das formas antigas.

Ainda é possível promover um bom encontro com Lênin, na contínua atualização de suas hipóteses e dadas as condições reais das lutas e as circunstâncias com que nos defrontamos diretamente, legadas e retrabalhadas. O que fazer segue uma pergunta incontornável, em meio à desorientação de nosso tempo.


REFERÊNCIAS BÁSICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs; capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1-5. Ed. 34. [1980]

LÊNIN, Vladimir I. O que fazer? [1902]

___. Um Passo a Frente, Dois Passos Atrás [1904]

___. Imperialismo, fase superior do capitalismo [1915].

___. O Estado e a revolução. [1917]

MEZZADRA, Sandro; CHIGNOLA, Sandro. Fuori dalla pura politica. Laboratori globali della soggettività. 7/12/2012. http://www.uninomade.org/fuori-dalla-pura-politica/

NEGRI, Antonio. Trinta e três lições sobre Lênin. Edição italiana manifestolibri. [1973]

___. Da fábrica à metrópole; ensaios políticos. Edição italiana DataNews. [2006]

ROGGERO, Gigi. La misteriosa curva della retta di Lenin; per una critica dello sviluppo del capitalismo oltrei i ‘beni comuni’. Ed. Usher. [2011]

Fonte: Quadrado dos Loucos

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