fevereiro 02, 2007

Carta para Silvério Tundis e Humberto Mendonça

Foto: Rogelio Casado - Auditório Dr. Zerbini
Faculdade de Ciências da Saúde
Universidade Federal do Amazonas, 01.02.2007














Nova turma de médicos residentes do estado do Amazonas
são recepcionados no auditório Dr. Zerbini

Queridos amigos Beto e Silvério

O dia de ontem, 01.02.2007, tem um especial significado para nós três. Trinta anos depois das nossas formaturas no curso médico da Universidade Federal do Amazonas, dois sentimentos tomaram conta de mim ao participar da aula inaugural para os médicos residentes da turma de 2007 da UFAM, no velho auditório da Faculdade de Ciências da Saúde - Dr. Zerbini.

Nesse dia deu-se início à primeira Residência Médica em Psiquiatria do estado do Amazonas. O sentimento aqui foi de intensa alegria.

Entre os presentes, os professores Cleomir Matos e Jorge Masulo, ambos da gloriosa turma de 1977. Só faltaram vocês dois, que partiram para o andar de cima, a contragosto, bem o sei. Daí meu sentimento de tristeza.

Silvério, querido companheiro, hoje dás nome a um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) na Zona Norte da cidade de Manaus, onde é grande o número de portadores de transtorno mental. Wilson Alecrim, nosso professor em Doenças Infecciosas e Parasitárias, atual Secretário Estadual de Saúde, aceitou minha sugestão de batismo para o primeiro CAPS manaura, inaugurado com pompa e circunstância em 4 de maio de 2006. Merecida homenagem para quem liderou o processo de construção da Reforma Psiquiátrica no estado do Amazonas, estrada que ajudei a abrir contigo e tantos outros companheiros. Não são poucos os que querem acrescentar ao nome do CAPS teu nome de guerra: CAPS Silvério Tundis - Sissica, como eras carinhosamente conhecido. O professor João Bosco Araújo, de A Crítica, e o teu querido amigo jornalista Deocleciano Bentes de Souza estão entre eles.

Beto, meu irmão, dás nome a duas entidades: o Pronto Atendimento Humberto Mendonça, do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, onde tudo começou - nossa luta e nossa resistência contra a psiquiatria conservadora e desumana -, e o Centro Acadêmico de Medicina Humberto Mendonça, da UFAM. Neste último, houve uma disputa fratricida com os companheiros do PC do B, dos anos 1980, que temiam estar homenageando o PT por tabela. Alías, deve-se ao nosso querido companheiro Marcos Barros, a defesa do teu nome ao Centro Acadêmico de Medicina, voz respeitada por todos os alunos que por ele passaram. Acertaram na mosca sem querer, pois mal sabiam que tu foste um dos fundadores do PT da cidade de Diadema-SP, como eu e Silvério o fomos em Manaus. Quanto a mim, não há o que estranhar - carrego a estrela tatuada no peito há décadas, o que me trouxe muitos contratempos, mas também muitas alegrias -, a surpresa é com Silvério, que optou por não tornar pública sua preferência partidária. Também não precisava, ele só andava com a turma do PT, embora transitasse entre todas as forças políticas da época. Até onde sei, nenhum de nós tinha vocação para a política partidária, mas soubemos atender às exigências daquele momento histórico. Não me arrependo.

Tudo isso fiquei a pensar por ocasião da aula inaugural proferida pela professora Neila Falcone no auditório da Faculdade de Ciências da Saúde, nosso velho "Dr. Zerbini". O estudantes de hoje sequer suspeitam o suadouro que tomávamos ali, nos anos 1970, por ocasião da aula de Patologia, à falta de ar condicionado. Hoje, convém levar um agasalho.

Como se fosse um filme, outras cenas me vieram à memória. Regozijei por saber que nenhum estudante amazonense deixará sua terra natal para fazer residência médica em psiquiatria por falta de opção. Opção que não tivemos, e que tanto sofrimento trouxe ao seio de nossas famílias. Meu filho Pablo, era recém-nascido, e só podia vê-los, a ele e sua mãe, nas férias, a um custo que nossos bolsos não permitiam. Não via a hora de terminar a residência médica, ainda que tenha tido o conforto dos amigos que ali fiz.

Longe vai Fevereiro de 1978. Lá estávamos, eu e Beto, na Comunidade Terapêutica Pró-Reintegração Social da Criança, em Diadema-SP, para fazer nossa Residência Médica em Psiquiatria Social, tendo Oswaldo Di Loretto e Gabriel Figueiredo entre nossos preceptores. Descemos em Brasília, e de lá fomos de ônibus pedir a benção do velho psiquiatra Luís Cerqueira, livre-docente da Universidade de Ribeirão Preto, a quem conhecemos no memorável IV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em Fortaleza-CE, no ano de 1976. Como não lembrar da Carta Aberta dos Estudantes Brasileiros escrita pelo Beto e lido por mim na plenária final, que por pouco não desaba com tantas palmas a saudar a liberdade de expressão, proibida naqueles tempos de repressão da ditatura militar? As palavras do velho Cerqueira até hoje guardo-as de memória: "Vim cumprimentá-lo meu jovem. Estava com um velho amigo, lá em cima, que dizia não saber o queriam esses jovens. Disse a ele: pois eu vou lá embaixo cumprimentá-los, é por causa de filhas da puta como você que esse país não muda". Como não lembrar do dono da Clínica Dr. Eiras tentando desvalorizar a obra de Jurandir Freire Costa - História da Psiquiatria no Brasil -, objeto de elogio no texto do Beto. Refutei-o categoricamente, amparado no apoio caloroso de tantos que vieram me cumprimentar. Bons tempos! Foi com as bençãos do velho Cerqueira que fomos para a Comunidade Terapêutica, e ali vivemos um dos mais ricos encontros de nossas vidas profissionais ao conhecer Franco Basaglia, cuja vinda ao Brasil foi patrocinada, entre outras entidades, pela nossa Comunidade Terapêutica.

Quanta história para contar para as novas gerações. Tenho um livro escrito com mais de uma centena de páginas sobre esse período. Não conseguia concluí-lo. Agora, sim, encontrei seu epílogo. Estou certo de que estamos abrindo um novo ciclo na história da psiquiatria e da reforma psiquiátrica no Amazonas.

Para ser justo, estou redistribuindo os cumprimentos que tenho recebido como Coordenador Estadual de Saúde Mental por esse evento tão auspicioso. Contando com a sensibilidade do atual Secretario Estadual de Saúde Wilson Alecrim, e sua paixão pela docência, e com o entusiasmo dos professores Raymison Monteiro, ex-Secretário Adjunto de Saúde da Capital, e do professor Luís Ferreira, responsáveis, respectivamente, pelas Coordenação Estadual e Regional de Residência Médica, estavam dadas todas as condições para tornar a Residência Médica em Psiquiatria em ação programática de governo. Eduardo Braga torna-se, assim, o primeiro governador do estado, depois de José Lindoso, a reconhecer a importância do setor, tanto que um dos seus próximos passos é transformar o velho Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, atualmente com pouco mais de 50 internos de longa permanência, num Hospital de Clínicas, mantidos os 20 leitos em psiquiatria do Pronto Atendimento.

Novos desafios nos aguardam. Recebam os velhos protestos de sempre: não tem graça nenhuma a falta de vocês. Sorte minha ter encontrado o companheiro Fernando Kladt a quem indiquei para a Coordenação do Programa de Residência Médica em Psiquiatria. Formado pela UFRJ, com passagem pelo processo de intervenção no Hospital Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, de tão terrível memória. Dono de um bom humor, estou certo de que vocês incorporariam esse D'Artagnan extemporâneo no grupo dos três mosquiteiros que ousamos ser um dia. Fernando tem sido um companheiro da pesada.

Entre os novos parceiros, entusiastas desse novo período, está a professora Neila Falcone. Sua aula inaugural para os médicos residentes é um exemplo de dedicação ao ensino e sensibilidade para com as demandas de saúde das nossas populações.

Aguardem novas notícias.

Fraternalmente,

Rogelio Casado Posted by Picasa

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