PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
fevereiro 28, 2007
Sônia Fleury: Por uma Política de Saúde
SAÚDE: UM POLÍTICO OU UMA POLÍTICA?
Nas últimas semanas a indicação de um novo ministro para a pasta da saúde passou a ocupar as páginas dos noticiários a partir de uma suposta contradição entre a escolha de um político ou de um perfil técnico para ser o dirigente da área. Esta questão veio à tona nas negociações com o PMDB, importante partido da base de apoio da coalizão governamental. Alguns críticos mordazes maldizem estas negociações como sendo a partilha do botim, desconhecendo, por ingenuidade ou maledicência, as características do nosso sistema político, que exigem a composição de uma coalizão partidária que assegure a governabilidade. No nosso entender, as negociações do governo com os partidos políticos são, ao contrário, parte intrínseca do amadurecimento da nossa jovem democracia.
No entanto, a presença marcante da discussão sobre o próximo titular da pasta da saúde encontra-se limitada pela ausência de um debate mais profundo sobre a política de saúde que deverá ser implementada no segundo governo Lula. Desde a campanha presidencial, a saúde foi tratada de forma marginal, beirando a ausência, nos programas dos candidatos. Esta omissão é inteiramente incompatível com a importância dada pela população à questão da saúde, como mostram todas as pesquisas e os dramas cotidianos que assistimos. Com isto, perdeu-se uma excelente oportunidade de gerar um debate nacional e formar um consenso suprapartidário sobre as linhas mestras da condução da política de saúde. A fatura está sendo paga agora, quando o governo se vê constrangido a negociar em torno de nomes e não de idéias, a partir de uma falsa oposição entre perfis técnicos e políticos.
É hora de mudar este jogo e recolocar no debate a verdadeira questão: qual é a política de saúde do governo, que este ministro deverá implementar?O Sistema Único de Saúde é uma das grandes conquistas da sociedade brasileira, permitindo o acesso universal a uma atenção integral de saúde. Não nasceu no seio da burocracia e nem foi formulado pelas agências internacionais: foi fruto de muitas lutas da sociedade civil organizada, tendo forte enraizamento na cultura e política nacionais. Permitiu a construção de um modelo de federalismo negociado e pactuado e uma forma de gestão pública com descentralização do poder para os níveis subnacionais além de gerar novos formatos de participação social. Ambos representam formas institucionais inovadoras, que revitalizaram a democracia brasileira, tendo gerado um modelo não liberal de reforma do Estado.
Mas, o SUS é um projeto em construção, e, em cada fase, novos problemas se colocam para o financiamento, acesso, regulação, melhoria da qualidade, humanização do atendimento, valorização dos profissionais, produção de insumos e incorporação de tecnologias, melhoria da gestão dos serviços, aumento das práticas preventivas, eliminação das discriminações, etc. São problemas complexos, em uma das áreas que apresenta alguns dos maiores desafios para a gestão em todo o mundo contemporâneo, dado a complexidade dos fatores envolvidos.
No entanto, o processo gerado pelo SUS, de uma permanente construção conjunta de diretrizes e consensos políticos, fundados no mais rigoroso conhecimento técnico, permitiram gerar as linhas gerais que, como representantes das entidades comprometidas com o avanço da Reforma Sanitária, postulamos para a política de saúde e propomos para o debate:
- a reorientação do predomínio modelo de atenção desde práticas curativas para a atenção preventiva;
- o aumento do gasto público em saúde - extremamente reduzido, como demonstram as comparações internacionais e mesmo entre os países da América Latina. Para tanto seria necessário o empenho governamental e da sua base de apoio no Congresso para a regulamentação da EC 29, que garantiria uma base e definição adequadas dos recursos para a saúde. Também é imprescindível que se defina uma estratégia de redução programada, até a sua extinção, da DRU, medida que permite a desvinculação dos recursos que a constituição destinou para a saúde para outros fins;
- o combate à corrupção, o aumento da transparência nas contas públicas,e a melhoria do gasto em saúde, com mudanças no modelo de gestão que permitam aperfeiçoar a organização dos serviços, a qualidade do atendimento, a eficiência e a efetividade dos tratamentos;
- uma política de investimentos em recursos humanos e melhoria da rede de serviços, além do investimento estratégico na produção de insumos e medicamentos;
- a verdadeira universalização do acesso a um serviço de qualidade e com atendimento humanizado.
Enfim, está na hora de termos um SUS prá valer. Estes são os termos do acordo que urge ser negociado. São compromissos que definem o perfil do Ministro da Saúde.
Sonia Fleury - Presidente do CEBES - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Sonia Fleury, 56, doutora em Ciência Política, professora titular da FGV, autora de Democracia, Descentralização e Desenvolvimento: Brasil & Espanha, Editora FGV, 2006 - ENSP - Fiocruz
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