fevereiro 23, 2008

Eduardo Losicer analisa a 'cruzada anti-reforma'

18 de maio de 2007 - Dia Nacional de Luta Antimanicomial, BH
Caros amigos da Reforma:

Quando recebi o mail que comenta uma certa campanha veiculada pela rede Globo, me decidi finalizar um texto (logo a seguir) de análise que estava escrevendo sobre o tema e enviar-lo para todos aqueles que possam se interessar pelo instigante assunto. Vai também anexado, junto com outro, escrito anteriormente, focado sobre as mesmas questões em pauta.
Abraços,

Eduardo Losicer

Análise sobre a 'cruzada anti-reforma'

Em agosto do ano passado, numa tentativa de analisar violentas declarações publicadas contra a reforma psiquiátrica, escrevi um pequeno texto titulado “O pensamento obscuro” (anexo), que pretendia servir como análise possível das turbulências que se preanunciavam no horizonte do vasto campo da Saúde Mental.

Na época, dirigentes de classe da medicina e da psiquiatria, em pleno uso da sua atribuição de representantes, se manifestavam violentamente contrários a “tudo” (nas suas próprias palavras) que fora realizado pelas políticas públicas para o setor, assim como contrários a “tudo” que possa representar o ideário do Movimento Antimanicomial que as sustenta. Na sua surpreendente ofensiva, os ‘cruzados anti-reforma’ – assim chamados pelo belicismo fundamentalista que apresentavam – acusavam os anti-manicomiais de elogiar (sic) a loucura e ignorar seu sofrimento.

Diante destas manifestações, o meu texto tratava de entender o ‘pensamento’ que estes ataques conjuntos representavam, considerando que não eram, somente, críticas para serem respondidas no debate interno ao campo, mas também entendidos como ofensiva publicamente deflagrada. Não é suficiente entender, como sempre, que se trata de interesses de laboratórios e de clinicas privadas. Tal chamado a combate exige um esforço de reflexão --interna ao movimento social da reforma-- assim como exige também uma ação política que não se limite à pura reação defensiva, como frequentemente acontece. Propus analisar, enfim, que se tratava de uma iniciativa de ‘militarização’ da ideologia anti-reformista, tal como acontece, em determinadas circunstâncias, com todo pensamento totalitário (obscuro por natureza) decidido a despolitizar as idéias e negar toda diferença de pensamento.

Poucos meses depois, no fim do ano, temos nova notícia destes ataques, mais virulentos ainda, desta vez veiculados pela grande mídia. Com o impactante título “Sem hospícios morrem mais doentes mentais”, o jornal O Globo publica extensa matéria de duas páginas, na qual pretende justificar o inacreditável título invocando dados estatísticos claramente manipulados.

Pretendo agora tomar este título como analisador (tudo aquilo que ajuda a analisar) da atual conjuntura, visando dar continuidade, diante da nova emergência, à analise apresentada no texto anterior. Sintetizarei alguns dos pontos, que me parecem mais relevantes para ‘as internas’ do movimento, para ser considerados agora, momento posterior ao das justas e indignadas reações provocadas de imediato (manifestos da Abrasco, Cebes, CRP, e outras várias entidades e redes do movimento).

*) Em primeiro lugar é necessário destacar o poderoso efeito ideológico imediato visado pelo sensacionalismo da manchete. Não trata, simplesmente, de traduzir a grande preocupação de um grupo de psiquiatras subitamente penalizados com supostos doentes mentais desassistidos. A edição da matéria mais parece o resultado de um bem articulado grupo de pressão que soube aproveitar a avidez dos grandes jornais pelo chamado ‘noticiário negativo’: de uma tacada só, a manchete associa abandono, loucura e morte. Podemos imaginar o leitor comum, desavisado dos feitos da reforma psiquiátrica, compelido a ‘diagnosticar’, em sua volta, todos os doentes mentais que deveriam estar internados... para não morrer nas ruas. Por trás de uma aparente denúncia de ‘desassistência’ (mote da anti-reforma), a edição da matéria mais parece destinada a produzir subjetivações que relacionam doença mental com segurança, assim como, desde sempre, o imaginário coletivo relacionou a loucura com a necessidade de isolamento. Para compor o título, a jornalista escolheu a palavra ‘hospício’ – e não hospital – para sugerir a única instância capaz de salvar vidas desprotegidas. Aumenta-se o teor sensacionalista da matéria e, ao mesmo tempo, recoloca-se o hospício como idéia-força de todo um complexo ideológico que predominou durante séculos e que se encontra justamente agora, no mundo inteiro, em plena reforma das instituições por ela produzida.

*) Se na nossa análise enfatizamos o efeito de ‘propaganda ideológica’ que a matéria pode provocar isto não deve ser entendido como mais uma expressão do antigo pensamento crítico setentista, tão próprio das épocas basaglianas. Pelo contrário; consideramos que estamos no início de uma época pós-manicomial, em que não basta exercer a velha crítica ao manicômio para fundar-se como ruptura, mas época que exige produção de novas idéias e novas práticas na formação das novas gerações. No entanto, é necessário entender porque ainda, a perspectiva de psiquiatras e jornalistas sobre saúde pública continua colocando o binômio loucura/ hospício como paradigma de tudo que é ‘transtorno’. Em uma época cheia de novas (e graves) patologias que mal chegam a ser diagnosticadas, sem paradigmas de normalidade para traçar-lhe as fronteiras com a sociedade e a cultura, qual seria o sentido de, esses psiquiatras e jornalistas, agitarem as velhas bandeiras do louco-de-hospicio-desassistido?

*) Embora a ambigüidade da palavra ideologia tornou-a quase inutilizável (hoje prefere-se usar ‘ produção de subjetivação’, de ‘imaginário’ ou, em termos jornalísticos, ‘formação de opinião’), ela nos serve para enfatizar que os anti-reformistas não estão verdadeiramente interessados em um debate entre diferentes políticas públicas ou entre diferentes modelos de assistência. Desde nossa perspectiva, contrapor mais-leitos x mais-CAPS, na dinâmica das políticas assistenciais é tão reducionista como contrapor oposição x situação na dinâmica do poder central ( que, por sinal, é o poder da reforma). Vale lembrar que a singela manchete para a segunda página da matéria reza “O governo não quer saber de quem ouve vozes”. Entrar no reducionismo hospital x comunidade ou, no extremo, instituição x sujeito, nos levaria a um balanço negativo; recentemente ouvimos uma jocosa e acertada síntese desse balanço: CID 10 x sujeito 0.

*) Discutir modelos? Se necessário, a reforma precisa é inventá-los, para além de sua grande invenção, os CAPS. Assim como em outros campos práticos, também no campo da saúde mental existe uma ‘saturação modelística’. Modelos que se substituem entre si, modelos clínicos e teóricos que se canibalizam ou que se opõem a outros modelos até o extermínio... eis o panorama que se vislumbra. Desde essa perspectiva, seria um erro entender que a ofensiva anti-reformista está propondo um embate público entre modelos. Encarar o confronto com esse entendimento seria como entrar em combate no terreno escolhido pelo inimigo e, o que é pior, condenar-se a permanecer sempre na defensiva. Seria perpetuar a luta na falsa polaridade manicomial/anti-manicomial, sem movimentos de fuga que permitam invenções assistenciais verdadeiramente autóctones e não pré-moldadas. Pensar que a diferença que está em jogo é uma diferença de modelos, enfim, seria ficar preso dentro da nefasta ‘lógica substitutiva’ (mutuamente excludente).

*) Talvez sejam esses fatores que dificultam o avanço da reforma na atenção primária [a propósito: notícia recente indica que, finalmente, os NAFS –que representam a reforma psiquiatrica na bem sucedida Estratégia de Saúde da Família—começam a sair do papel], nos hospitais gerais, nos ambulatórios e nos âmbitos de trabalho – por exemplo – que parecem ser as interfaces de emergência de problemas em saúde mental característicos destes tempos pós-manicomiais. [neste ponto vale lembrar que quando sai da Argentina (há 30 anos!), ainda militando na saúde mental, por obra de uma ‘reforma não declarada’, estavam funcionando serviços de ‘psicopatologia’ completos (internação, ambulatório, hospital de dia, interconsulta e emergência) em vários hospitais gerais de alta complexidade de Buenos Aires. Foram quase extintos pela ditadura, mas hoje voltaram a funcionar –embora em moldes diferentes, são uma prova da possibilidade de a saúde mental penetrar nos ‘inexpugnáveis’ hospitais gerais]

*) Como a reforma poderia formar os profissionais destas frentes para fazer um trabalho em rede nunca antes feito? Como reformar o que nunca foi formado? Quais são, afinal, as disciplinas (multi...inter...trans...) e teorias (do social...do psíquico...) que seriam tomadas como referência nessa formação de ponta? Teorias do sujeito ou teorias dos transtornos? Teorias biológico-naturalistas (neurociências) ou teorias psico-sociais (sociedade sem manicômios)? É claro que não se trata de escolhas excludentes, mas é necessário admitir que estamos em um momento político em que é a escolha que acaba por decidir os destinos do combate.

*) Os fundamentalistas anti-reforma parecem saber da necessidade de uma estratégia para esta conjuntura deflagrando uma verdadeira campanha de desinformação da reforma --obscurecendo-a-- e apelando ao ataque institucional e midiático. Essa campanha, corporativa e pública a um só tempo, aproveita o momento em que o chamado imaginário coletivo ainda não está informado da reforma e, paralelamente, se destina a captar ideologicamente (se é que o termo ainda vale) as novas gerações de psiquiatras que iniciam seu complexo e heterogêneo período de formação. É verdade que os CAPS vieram para ficar, mas também é verdade que os psiquiatras, inclusive os chamados ‘biológicos’ também vieram para ficar. A questão é: onde? Será que a reforma está interessada em um encastelamento dos psiquiatras no hospital, assim como eles mesmos parecem preferir? (além, claro, da sua prática privada). Ficando, nesta medonha partilha com a internação e com o consultório particular, estaria a psiquiatria biológica ‘abandonando’ o ‘ resto’ da saúde mental para a psiquiatria social e comunitária, multiprofissional e interdisciplinar? Psiquiatria administrativa – de psicofármacos e leitos – de um lado e saúde mental do outro? A quem interessam essas polarizações? A natural tensão entre a política e a clínica chega assim a seu ponto máximo e estamos em um momento em que não resta margem para meios termos.

*) Falsas ou verdadeiras, tais oposições eficientemente massificadas pela propaganda contêm ainda esse perigo maior: semear ambigüidades. Se um dos lados em luta consegue ilusoriamente deslocar o ponto de confronto (entre modelos – como em nosso caso) consegue também criar ambigüidades no outro lado, criando um falso debate sobre meias verdades (sobre necessidade de internação, psicofármacos ou eletrochoque, por exemplo) acusando os reformadores de totalitários que negam ‘todos’ os casos de hospitalização, medicação ou eletrochoque. A reforma pode assim, por oposição, ser empurrada na ilusão totalitária contrária: pretender uma ‘assistência mental total’ para uma saúde mental absoluta para todos. Assim, sempre haverá entre suas fileiras aqueles que preferem relativizar a razão dizendo: “em parte eles têm razão com a velocidade da desospitalização e com a insuficiência dos CAPS”, por exemplo, provocando falsas contradições entre si e se extraviando das contradições principais com seus oponentes. A relativização da razão costuma ser própria do debate; relativizar no meio de um combate costuma ser fatal. Assim nascem ‘rachas’ e fragmentações que podem chegar a deter completamente o avanço da reforma.

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Temos notícia recente da campanha “Eu tenho”, patrocinada pela mesma corporação de psiquiatras que assumem o discurso antireforma, veiculada pelo mesmo sistema Globo – desta vez em rede nacional de televisão. Em quinze inserções diárias de 30 segundos o vídeo pretende o “combate ao estigma em saúde mental” mostrando pessoas que simplesmente dizem “eu tenho”, enquanto o locutor explica a “alta freqüência de transtornos mentais e a importância de procurar atendimento” para terminar com o apelo “não tenha receio de procurar ajuda. Você tem direito de ser feliz” (haja engodo!!!). Será que no mesmo campo da saúde mental temos um lado que luta pelos direitos humanos e outro lado que luta pelo direito de ser feliz?

Trata-se de outro poderoso analisador da mesma questão em pauta, que nos permite propor a seguir certas conclusões e nos precipita na intenção de encaminhar logo este escrito.

- Desta vez a corporação assume com todas as letras e com o maior alcance possível que se trata de uma campanha de iniciativa unilateral: quando diz que “...Começa a existir uma percepção sobre a importância da saúde mental no Brasil”, ignora que esta percepção possa dever-se à reforma psiquiátrica em curso há décadas.

- Diferentemente das peças propagandísticas (“Elogio da Loucura” e “Sem hospícios morrem mais...”) tomadas antes como analisadores esta agora pretende não apenas denunciar, mas atrair para si a enorme demanda dos “desassistidos”, ofertando – privadamente, é claro – sua sempre crescente lista de psicofármacos. Parece até que está dizendo “Todos têm direito à pílula da felicidade”. A platitude dessa afirmação, ignorante de tudo que seja um direito publicamente exigível (tal como se espera, a Rede Globo condiciona a ocupação dessa sua peculiar programação com temas que sejam do exclusivo interesse público) revela, o que em termos administrativos seria um grande plano de privatização da demanda reprimida; já que a internação não é mais administrável, administrem-se os psicofármacos...antes que essa administração seja totalmente capturada pelos médicos não psiquiatras.

- Combater o estigma em saúde mental? Nas épocas manicomiais o estigma era a loucura-de-hospício (em outros termos, a esquizofrenia crônica). Nestas épocas pos-manicomiais o estigmatizado não é mais o louco-de-internar mas o “transtornado? Aonde deveriam recorrer? Aos ambulatórios do SUS? Quais são os novos estigmatizados? Os deprimidos? Os compulsivos? Os fronteiriços? Os estressados de todo gênero?

- A campanha corporativa abre vertiginosamente o foco do seu público alvo: algumas centenas quando dirigido a seu público-interno; centenas de milhares quando veiculado pela grande mídia impressa do Rio; dezenas de milhões quando veiculado pela mídia televisiva nacional.

Tudo indica que a Reforma Psiquiátrica tem muitas tarefas urgentes pela frente sem ter que parar para discutir modelos sustitutivos nem estatísticas de resultados. Não convém discutir com blindados avançando nem entrar em concurso com eles. No Brasil, a reforma opera em circunstâncias excepcionalmente favoráveis – ou até mesmo únicas – por contar com a base de amplos movimentos sociais de apoio e direção política do governo central. Para avançar em sua complexa tarefa instituinte sem se deter pelos ataques que sofre, talvez seja necessário a reforma se esclarecer sobre o pensamento que a fundamenta na atualidade e assim saber transmiti-lo para as futuras gerações... antes que obscureça de vez.

Eduardo Losicer
Psicanalista e Analista Institucional, argentino-brasileiro
Rio de Janeiro
Fevereiro 2008

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