PAROLE, PAROLE
« Parole, parole, parole, parole/ parole encore des paroles/ que tu sèmes au vent. »
Música de Chiosso, Del Re e Ferrio, versão francesa na voz de Dalida e Alain Delon, cujo vídeo pode ser apreciado no YouTube
Ornella Vanoni se apresentava em São Paulo. O público exigia que ela cantasse seu grande sucesso "Parole, parole, parole". E ela nada. Pausa.
"Sou do tempo em que se lia Rui no original", gabava-se o senhor grisalho, à saída do fórum. Falava assim de alguém que os circundantes aparentemente não sabiam bem quem seria. Talvez algum jogador de futebol (Rui, Bauer e Noronha, lembram?). Falava em Rui da mesma forma como alguém perguntava na loja se já havia saído o último disco do Roberto. Coisa de íntimos. "Viu como o Fernando está envelhecido?", comenta-se a boca pequena, como se o ex-Presidente pudesse ouvir o comentário e se aborrecer, vaidoso daquele jeito.
O que o senhor grisalho queria dizer é que os chamados operadores do Direito, pois ele era um jurista, não mais se preocupam com a precisão da linguagem. Usam um adredemente (eu mesmo encontrei isso em várias sentenças e pelo menos em um acórdão, o que soa pior ainda quando a decisão nos é desfavorável) sem o mais mínimo (consulte a gramática se julgar errado o reforço pleonástico, que aprendi com o Geraldo Roberto, dos velhos tempos do Castelões) cuidado, mal sabendo que esse dúplice advérbio (sim, adrede já é um advérbio, minha senhora, o que dispensa o adverbiador sufixo mente) para mostrar cultura. Mal sabem eles que isso foi inventado pelo Dias Gomes, quando criou o seu prefeito Odorico Paraguassu (que nasceu no teatro e foi transferido, muito tempo depois, com pompa e circunstância, para a televisão, imortalizado pelo Paulo Gracindo, que, aliás, fora batizado com um incrível Pelópidas Guimarães Brandão antes de passar a ser Gracindo), autor de tantas outras barbarices como essa, se me permitem o neologismo.
Havendo, aliás, quem diga que nem é coisa do falecido Dias Gomes, que teria aproveitado idéia alheia, no caso o Mário Palmério, salvo erro, o tal do Chapadão do Bugre, o que vivia encastelado em um barco, singrando os rios do Brasil central, como personagem dele mesmo.
Ou um exordial (palavra que dá comichão no mestre Geraldo Arruda, que já baixou, por causa disso, muito lápis vermelho em prova da Escola de Magistratura sim, senhor), no lugar de petição inicial, ou um preopinante (que fazia as delícias do Ercílio, hoje transmudado em plantador de aspargos), no lugar de Procurador de Justiça, que oficia nos recursos, que "opina antes" da decisão do tribunal. Ou um sodalício, ou um curul ou tantas outras expressões bolorentas que tornam nosso português forense, ramo da tal "última flor do Lácio", algo que nem serve para demonstrar a cultura de quem escreve nem nos leva ao encanto trazido por uma frase bem construída, e muito menos transmite ao leitor precisamente a idéia que se pretendera transmitir.
Lembro-me da reação de uma senhora que insistiu em ir assistir à sessão de julgamento do recurso que havia sido interposto a seu favor, nos tempos do Departamento Jurídico do XI de Agosto. Depois daquele falatório todo ela se vira para o advogado e indaga: "A final, doutor, ganhemo o perdemo?"
Registro, em público e raso, a bem da verdade, que isso não é fruto da pós-modernidade. Em meus tempos de solicitador acadêmico (hoje se fala em "estagiário de Direito", se não me engano) divertíamo-nos incluindo, à força de marteladas, nas frases mais corriqueiras, que a hipótese "não espertava disceptações", coisa linda que havíamos lido em votos do Ministro Orozimbo Nonato e que pouquíssimos leitores, nem mesmo sendo juízes, haveriam de entender. Nós muito menos.
Mineiro de Sabará, a biografia dele divulgada pelo Supremo Tribunal Federal nos dá conta de que era conhecedor profundo da língua portuguesa, um "purista". Que quer dizer purista? Quem fala difícil? Quem faz questão de não ser compreendido?
Surpreendi certa vez um juiz, hoje já alguns muitos degraus acima disso, no momento exato em que revisava uma sentença que havia proferido. Descobri que ele escrevia o texto em linguagem de gente e depois, com tempo e paciência inimagináveis, ia substituindo palavras inteligíveis por sinônimos arrevesados, que caçava nos três dicionários abertos sobre sua mesa. Ser purista será isso?
As palavras nascem, vivem, transformam-se e acabam morrendo. Por vezes ressuscitam. Cito, dentre muitas, a palavra galera. Pergunte a cem jovens o que eles entendem por galera. O Aurélio derrama-se em muitas linhas para descrever as embarcações que assim eram denominadas, algumas das quais, como sabemos, tinham gurupés e três mastros de brigue, o que noventa e nove daqueles jovens desconhecem o que seja. Nem eu, aliás, sei o que é brigue. Como é de seu feitio, o tio do Chico não deixa os jovens ao desamparo, registrando que, por força de uma síncope, a mesma palavra passou, no jargão dos brasileiros, a substituir a palavra galeria, que é uma "espécie de tribuna para o público em certos edifícios". O que levou a um novo sentido, por extensão, diz o mesmo dicionarista: "o conjunto de pessoas que se acham na galeria". Ou seja, a turma, diz o mesmo Aurélio. A torcida, dirão eles, referindo-se a um jogo de futebol ou a um show de rock.
E responda francamente: depois do jantar no restaurante você pede um café expresso ou um café espresso? Se pediu o primeiro, o garçom deverá trazê-lo correndo, pois é a essa velocidade que a palavra se refere. Quando você despacha uma carta expressa é isso que você pretende. Já espresso é o café que é obtido espremendo-se um sachezinho numa máquina específica. O verbo imprimir apresenta dois particípios: imprimir e impresso. O verbo espremer também: espremido e espresso. Picadeiro também é cultura.
A propósito disso, leio num desabafo de um leitor desanimado, que se refere aos nossos parlamentares como uma corja de larápios, algo com que certamente muita gente concorda. Para o tal leitor, como para tanta gente neste país, os políticos seriam todos iguais, "seriam uns a cara cuspida e escarrada dos outros".
Paro a leitura e me pergunto: quantos leitores saberão qual a origem dessa feia expressão? "Cuspido e escarrado"! Não haverá coisa mais elegante para usar? Pois o mesmo Geraldo Roberto me ensinou que isso é uma corruptela de "esculpido em (mármore de) Carrara". Da mesma forma como quando chamo uma moça de "sincera" eu estou querendo dizer que ela foi esculpida em mármore puro, sem aqueles buraquinhos que exigem serem tapados com cera (isto é, "sine cera").
E acrescento: aquele larápio que apareceu ali em cima seria a assinatura de um político romano cujo comportamento o faria digno de nosso Congresso Nacional: Lucius Antonius Rufus Appius, que assinaria, como muitos de nós, abreviadamente: L. A. R. Appius.
Si non è vero, è bene trovato, diria minha querida amiga e romancista Ada Grinover, que, por sinal, canta o "Parole, parole, parole" no original, como o fazia sua compatriota Mina, música essa que jamais foi gravada por sua colega Ornella Vanoni, que, naquela sobredita apresentação, saiu do palco pisando duro, ofendidíssima com a confusão feita pelo público.
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* Adauto Suannes é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família.
Fonte: Circus n. 74
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