18 de maio de 2007 - Dia Nacional de Luta Antimanicomial, BH
Em 2006 publiquei neste blog o texto abaixo de Eduardo Losicer. Vale a pena ler de novo. Aproveito o ensejo para agradecer, de coração, aos companheiros que enviam notícias para este blog, reduzindo o isolamento do estado do Amazonas no cenário da Reforma Psiquiátrica. Mas é especialmente à maioria silenciosa que presto minha homenagem: são vocês que alimentam a paixão por romper o círculo desse tipo de insólita solidariedade. Quanto maior o silêncio maior é a minha compaixão por esse ato de indiferença.
O PENSAMENTO OBSCUROEm 2006 publiquei neste blog o texto abaixo de Eduardo Losicer. Vale a pena ler de novo. Aproveito o ensejo para agradecer, de coração, aos companheiros que enviam notícias para este blog, reduzindo o isolamento do estado do Amazonas no cenário da Reforma Psiquiátrica. Mas é especialmente à maioria silenciosa que presto minha homenagem: são vocês que alimentam a paixão por romper o círculo desse tipo de insólita solidariedade. Quanto maior o silêncio maior é a minha compaixão por esse ato de indiferença.
Eduardo Losicer
Usurpando o título de um texto escrito há quinhentos anos atrás --“Elogio da Loucura”, de Erasmo de Rotterdam--, o presidente de um importante conselho regional de medicina escreve editorial dirigido à classe, em que declara ataque aberto à reforma psiquiátrica que se opera no país, assim como ao movimento social que a sustenta. Este fato, descrito sem citar nomes ou lugares, não passaria de mais uma notícia da reação contrária que os movimentos reformistas sempre provocaram, em todas as épocas, nas corporações afetadas pela reforma. Simples reacionarismo daqueles que, somados aos que já decretaram o fim da história e das revoluções, pretendem também renegar dos movimentos da comunidade que produzem reformas de instituições e de políticas públicas. Acontece que esta declaração, em principio restrita à corporação médica, se multiplica sincronicamente com outras, igualmente violentas, dirigidas agora ao público geral e assinadas por outros dirigentes de classe alinhados com o mesmo objetivo. Se ainda consideramos que estes discursos oficiais, de um lado e de outro, tem o complexo tema da loucura no seu centro, somos forçados a concluir que o tema escapa à exclusiva competência dos especialistas e deixa de ser um simples caso de reação conservadora. Assim sendo, junto de todos aqueles que se identificam com o movimento de sustentação de reforma, devemos ser tão precisos quanto possível na análise das declarações formais tornadas públicas pela mídia, não apenas para defender a reforma, mas para responder à altura do embate publico que ficou formado. Com este intuito, queremos agora formular as interrogações suscitadas de forma imediata e ver até onde podem conduzir-nos.
Se se trata de discursos oficiais que representam, em tese, o pensamento de cada categoria ... por que, então, chamá-los de violentos? Por que chamar estas manifestações de ataque declarado, na linguagem do combate bélico, e não discurso crítico, na linguagem do debate democrático, que simplesmente expõe conflitos de políticas publicas? Por que não considerar que se trata, em última hipótese, do entendimento equivocado de determinadas diretorias que perderam a representatividade de suas entidades e que sua ofensiva anti-reformista acabará junto com o seu mandato? Que pensamento, afinal, estes ataques conjuntos representam?
Não há pensamento nestas declarações, responderíamos nós, a não ser aquele que pode se chamar de “pensamento obscuro”. Infelizmente tão atual em todas as esferas da vida contemporânea, o pensamento obscuro constitui a variante mais deletéria do ‘pensamento único’, na medida em que renega/deleta qualquer pensamento que se pretenda outro.
Com efeito, podemos constatar que a leitura atenta das declarações do conselheiro mor dos médicos, assim como as declarações do presidente dos psiquiatras associados do país ... não revelam o pensamento em que se afirma sua ofensiva!. Depois de lê-los, percebemos que seus interesses –públicos ou privados-- permanecem obscuros e não encontramos proposta a não ser a de “campo arrasado” para a reforma. Sem meias palavras, o citado presidente dos psiquiatras dá a ordem: “...colocar o barco na direção correta e começar do zero”, ou seja, nem mais nem menos que voltar ao status quo anterior à reforma em andamento. Ora, pretender “zerar” uma reforma em pleno curso não significa apenas uma correção de rumos, mas anular tudo que o barco já andou ... sem apresentar provas ou argumentos para justificar sua radicalidade. Assim, além de se ocultar --cumprindo com a sua função de fundamentar (fundamentalismo?) seu exclusivo objetivo de atacar o novo--, o pensamento obscuro nega qualquer valor simbólico-político para o novo.
No nosso caso em questão, pretende obscurecer, de um golpe, tudo que foi dito e feito pela reforma psiquiátrica, com o único fim de restaurar a situação anterior, isto é, o tratamento médico de internação e interdição do louco.
No “Elogio da Loucura” original, Erasmo faz a Loucura –tornada por ele personagem central—zombar satiricamente dos sábios e poderosos. Inclusive daqueles que serão seus futuros especialistas --diríamos nós cinco séculos depois--, que afirmam tudo saber sobre ela. “A loucura é a maior das tragédias de que um ser humano pode ser vítima”, adverte o presidente do conselho de médicos, ensinando que “o delírio é um sofrimento permanente”. Para transmitir-nos suas convicções sobre temas tão controversos, o conselheiro compara: “Alguém persegue o psicótico e ele não sabe quem é nem o motivo, e muito menos porque ele é alvo da perseguição”. Mesmo descontando a despropositada grandiloqüência utilizada, observamos que esta é a mais estranha de suas assertivas: parece confundir o louco com um personagem kafkiano. Nos perguntamos: como é possível que alguém que diz saber qual é a maior tragédia humana e que diz conhecer a experiência de sofrimento do delirante, ignore que o delirante sofre pelas suas certezas e não porque não sabe quem ou porque é perseguido?. Quem já ouviu com atenção os delirantes (antes de interditá-los, é claro) a que o douto especialista se refere, isto é, os doentes, entende perfeitamente aquilo que a psiquiatria clássica chama de “convicção delirante”. Esta autoconvicção se refere a um saber sustentado (declaradamente ou não) pelo perseguido, tão absoluto que resulta intransmissível ... para os que realmente nada sabem. Assim, dentro ou fora da patologia, constatamos que a certeza é prerrogativa dos delirantes e, ao mesmo tempo, seu maior sofrimento. Doente ou não, o perseguido sabe muito bem quem são os perseguidores, sejam eles os extraterrestres, o vizinho do lado, ou ... os “antimanicomiais” da reforma psiquiátrica ... que teimam em não interná-lo!
O pensamento de Erasmo de Rotterdam, que fala por boca da Loucura, é lúcido. O pensamento do conselheiro é obscuro. Quer nos impingir suas convicções sobre a loucura para fundamentar um violento ataque ao que ele chama de “mentira antimanicomial”. Desqualifica todos os saberes sobre a loucura e nega a historia de um movimento que durante décadas sustenta a critica às ideologias e práticas que vêem na internação o único tratamento possível da psicose. Municiado com as suas certezas, dispara contra os que “engrandecem” a loucura. “Estúpidos” aos que trata como seus imaginários perseguidores --não os nomeia embora tenha certeza de quem são-- que atrapalham sua santa missão de internar os loucos. No ápice de sua exaltação, cheia de certezas quase-místicas (pensamento obscuro dos iluminados, diríamos nós), escreve sem nenhum pudor: “... se a Arte dependesse da Loucura para existir (como imaginariamente querem seus perseguidores), Morte a Arte” (sic).
Não é suficiente entender --como quer seu colega de cruzada, representante dos psiquiatras—que se trata simplesmente de denunciar um “equívoco” nos programas governamentais e nas políticas públicas para a saúde mental. Não nos basta pensar que toda esta grande discussão não passa de um confronto de “modelos” ou de critérios de “gestão”. Não é possível acreditar –como querem os cruzados—que tudo se soluciona com altas doses de “capacitação” ou sucessivas injeções de “qualidade” (depois de “zerar” tudo que existe, é claro). Talvez antigamente, nos contentaríamos em entender as belicosas declarações contra a reforma, por mais truculentas que sejam, como mais um embate entre “ideologias” ... mas hoje, época da biopolitica, isto não é suficiente.
Porém, se ampliamos o foco da análise para além da questão hospitalização / deshospitalização, é possível encontrar a mesma sombra do pensamento obscuro dando base a ações de igual inspiração totalitária. O chamado “ato médico”, por exemplo, que pretende subordinar as práticas psicoterapeuticas à autoridade do médico, assim como pretende submeter todos os saberes sobre a subjetividade ao seu próprio saber. Ou então a sombria tendência a “naturalizar” tudo que diz respeito à experiência do sujeito humano, se apoiando nas modernas neurociências e legitimando o uso indiscriminado de drogas psico-ativas. Ou ainda a manipulação pericial dos pressupostos conhecimentos do psicólogo, psiquiatra ou psicanalista para interditar, incapacitar, desclassificar e punir –intervenção na criminologia, no judiciário e no sistema penitenciário. Pensamento obscuro que chega ao extremo de autorizar a participação destes especialistas em interrogatórios coercitivos --doutrina do “mal menor”, que legitima o uso de certas formas de tortura psicológica em nome da segurança antiterror. Sombra que se filtra nas listas negras que se confeccionam por detrás da regulamentação da prática destes profissionais, em nome do Estado em inédita parceria público-privado, etc, etc.
O pensamento obscuro que rege a cruzada anti-reforma psiquiátrica recentemente deflagrada, muito além --ou aquém-- de representar uma crítica ou chamado a debate das políticas públicas para a saúde mental, está destinado a provocar um poderoso efeito despolitizante do seu próprio campo. É por isso que deve ser considerado retrógrado e obscurantista, e não apenas porque quer voltar ao estado anterior. Ataca o cérebro do movimento e quer corta-lhe as pernas, comportando-se como aquele que pretende matar a criatura em quanto é pequena. Pequena sim, porque é necessário ter sempre presente que, desde a perspectiva dos cinco séculos que nos separam de Erasmo, as poucas décadas de ação do movimento antimanicomial atual representam, na verdade, poucos minutos de vida. Concluir que só se beneficiam circunstanciais poderes econômicos –laboratórios e hospitais privados, por exemplo—é insuficiente. Seriam apenas circunstâncias atuais de uma velha, muito velha questão que gira em torno da loucura, questão que chega aos dias de hoje sob o nome de “subjetividade”.
Não podemos falar de um “novo” pensamento obscuro (neo-obscurantismo?) porque ele é, literalmente, sempre o mesmo: pensamento para impedir a ação. Ele é, como sempre foi, um pensamento triste, que, assim como a chamada paixão triste, se alastra inibindo a ação eficiente, isto é, a ação política que cria o novo. É a treva que castra a ação.
Sobre isto vale a pena lembrar um contundente episódio do qual fomos testemunhas. Há trinta anos atrás, numa época em que a utopia antipsiquiátrica e antimanicomial se mostrava possível na Itália, Franco Basaglia nos visitou no Brasil, convidado para participar de um simpósio internacional. Na sua passagem pelo Rio de Janeiro, aceitou também participar de um debate em instituição pública, no caso, um hospital universitário. Lá ele poderia, pensamos, expor livremente o radicalismo de suas idéias e poderia mostrar, em pessoa, o otimismo de sua prática. Assim o fêz, relatando com contagiante entusiasmo os avanços de sua luta contra todas as instituições asilares da loucura, em prol de uma psiquiatria democrática. Finalizada sua vibrante intervenção, toma a palavra o diretor do hospital que o acompanhava na mesa, abrindo a sua fala com uma surprendente ironia. Diz que as propostas de Basaglia contra os manicômios lhe lembra aquela anedota do marido traído, que a única coisa que faz depois de surpreender a sua mulher com outro no sofá da sua casa ... é vender o sofá!. Basaglia não o deixa continuar. Se levanta da cadeira de um impulso e apontando o dedo em riste na direção do diretor diz em alta voz: “...estes são os que, diante da traição, cortam fora o próprio pau!...”. Ao ver os aplausos que irromperam da platéia depois de alguns segundos de silêncio provocados pelo impacto da frase, o diretor se retira apressadamente do auditório.
Cai o pano... passam as décadas... e as ressonâncias da sentença de Basaglia não cessam de ecoar. Foi a melhor interpretação –na verdadeira acepção da palavra-- que já escutei de viva voz. Creio que a potência da intervenção de Basaglia despertou algumas vocações anti-manicomiais entre os presentes naquela memorável reunião. Ainda nos serve hoje, em tempos pós-manicomiais, não só para o embate que nos espera contra “os traídos da vez” (cruzados anti-reforma) mas também para o bom combate contra todas as formas de totalitarismo obscurantista com que hoje nos deparamos em todo lugar.
Eduardo Losicer
Agosto de 2006
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