Oleo do Diabo
Carta Aberta ao Prefeito do Rio de Janeiro
Posted: 22 May 2009 07:58 AM PDT
Estou dando um apoio à Associação dos Trabalhadores Informais dos Arcos da Lapa, a Atial, e escrevi uma carta ao prefeito, pedindo um tratamento mais humano aos ambulantes. Eu tenho um carinho muito grande pelos ambulantes do bairro, porque moro aqui há dez anos e acompanhei a trajetória desses trabalhadores, que têm sido os principais responsáveis pela vitalização da Lapa e, contraditoriamente, as suas maiores vítimas.
Há pouco tempo, escrevi já dois artigos sobre a Lapa, sempre tentando defender o ambulante da brutalidade das autoridades municipais. Confiram aqui e aqui. Parece até piada, mas isso também é culpa do Globo, que mantém uma campanha histórica contra os camelôs, e os prefeitos, quando querem cair nas graças da medusa platinada, mandam seus guardinhas sentarem o cacete nos trabalhadores informais.
Abaixo a carta ao prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB).
Minha Saudosa Maloca ou A importância dos ambulantes da Lapa
Por Miguel do Rosário
Os vendedores ambulantes da Lapa constituem a essência espiritual e o coração da nova Lapa e pagará muito caro o governante que não enxergar isso. Há poucos anos, a Lapa era mais um bairro decadente e esvaziado do centro antigo da cidade. Vítima histórica de políticas extremamente agressivas de remoção de casas, a Lapa era conhecida pela jovem boemia carioca apenas por abrigar o Circo Voador, ponto de encontro dos amantes do rock and roll.
Tudo começou na rua Joaquim Silva, local que, desde que começou a ser ocupado por ambulantes organizados sob a Associação dos Trabalhadores Informais dos Arcos da Lapa, a ATIAL, tornou-se seguro e animado. É importante que o prefeito do Rio de Janeiro entenda que a Lapa não é um bairro boêmio como outro qualquer. A Lapa é um consenso ideológico, onde as diferentes classes sociais e as diferentes zonas da cidade esquecem as suas diferenças e comungam em união. A Lapa é um momento de igualdade e democracia. Proibir os ambulantes será um intolerável ato de violência, entendido como tentativa das classes abastadas e das zonas ricas em discriminar as suas primas menos privilegiadas, e será, certamente, o início do fim da Lapa, a semente de violência e conflito social que, felizmente, ainda inexiste no bairro.
A presença dos ambulantes na Lapa remonta há séculos. Há pouco tempo, o colunista do Globo, Ancelmo Góes, reproduziu foto de cem anos atrás, onde se vê a presença maciça de barraquinhas.
A função social dos ambulantes é outro ponto que não pode ser esquecido pelo prefeito. Ser ambulante na Lapa não é o sonho dourado de ninguém, mas é a esperança de todos, porque todos vêem o trabalho de ambulante como último recurso para a sobrevivência e autonomia financeira. Tirar essa esperança representará um golpe no espírito do carioca, do morador da Lapa e adjacências, significando um grave retrocesso, além de uma medida contraproducente em termos de combate à segurança pública.
É preciso entender que entre os limites éticos que separam os indivíduos em precária situação financeira (e estes, infelizmente, sempre existirão, já que este é o preço da liberdade cobrado pelo capitalismo) do mundo do crime é a esperança de sempre poder ganhar algum dinheiro no setor informal.
Entretanto, se o prefeito não concordar com estes preceitos sócio-econômicos, deverá atentar então para outro fator, já abordado no início do texto, que se refere à função cultural do ambulante da Lapa. Como na emocionante canção de Adoniran Barbosa, os ambulantes construíram na Lapa a sua maloca, "a mais linda que eu já vi". Nesta maloca formou-se o espírito da nova Lapa, essa alegria de rua, inocente, profana e democrática, que atrai gente do mundo inteiro. Houve épocas, entre 1999 e 2003, mais ou menos, antes das autoridades iniciarem verdadeiras operações de sabotagem econômica na Joaquim Silva, que a rua atraía mais de cinco mil pessoas e reunia dezenas de pontos espontâneos de cultural. Não eram pontos patrocinados por órgãos governamentais e por isso mesmo eram muito mais autênticos e vibrantes. Foram brutalizados pelo poder público.
Mas a Joaquim Silva e adjacências, como sempre, renasceu, e hoje novamente reúne milhares de pessoas de todos os pontos da cidade. A grande maioria que não tem poder aquisitivo para frequentar os bares moderninhos recém-inaugurados na Mem de Sá, mas que formam o conjunto humano que eletriza a Lapa quase todas as noites. A riqueza da Lapa reside nas pessoas, nos jovens e velhos de todas as cores e faixas de renda que perambulam pelas ruazinhas históricas do bairro. Aliás, o conceito de perambular é outra marca fundamental da Lapa. As pessoas gostam de se deslocar de uma área à outra, e por isso os ambulantes são tão importantes, porque eles provêm os trajetos, os espaços vazios, com seus serviços e produtos: charutos, cervejas, vinho, refrigerantes, alimentos, cachorros-quente, pizzas, doces. Os turistas, particularmente, se apaixonam por essa miríade de ambulantes, onde eles podem consumir sem se prender à um lugar, podendo continuar a passear e a contemplar a paisagem humana do bairro.
Essas são apenas algumas das razões pelas quais acreditamos que os ambulantes são parte integrante do bairro da Lapa, e que retirá-los constituiria uma violência que só beneficiaria os delinquentes e os violentos. As famílias pacíficas que trabalham no comércio ambulante da Lapa, em caso de proibição, seriam substituídas por indivíduos mais violentos e transgressores, que venderiam seus produtos da mesma forma, entrando em conflito com as autoridades e desvirginando a atmosfera de paz social que hoje vigora na Lapa.
Contamos com a compreensão do prefeito para manter as coisas como estão, e não contribuir para que o bairro se degrade novamente, ou que deixe de ser um lugar especial, trazendo prejuízo aos centenas de donos de bar que lá investiram todas as suas economias.
Lembrando novamente a música de Adoniran, os ambulantes esperam ver sua "maloca legalizada, que ninguém pode demolir", um ponto de esperança, união, democracia social e paz no já tão sofrido e esquartejado município do Rio de Janeiro.
Cordialmente,
Miguel do Rosário
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