Nota do blog: Com a morte recente de um jovem de 20 anos, internado na Clínica das Amendoeiras (Rio de Janeiro), vale a pena ler a Carta Aberta abaixo publicada (2008) e compará-la com o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados por ocasião da Caravana Nacional de Direitos Humanos em 2000. São dois cenários diferentes. "O tempo não para, não espera pela velocidade das ações desinstitucionalizantes das políticas públicas, a vida é breve", afirmam as autoras da carta. E concluem: "A espera pela desconstrução dos manicômios causa grande sofrimento aos pacientes internados em situação de abandono familiar, que, dela dependem, para saírem do confinamento por que passam". Ao jovem Anderson não lhe foi concedido a oportunidade de ser tratado em liberdade.
Carta Aberta sobre nosso desligamento da Clínica das Amendoeiras
Há cerca de cinco anos, quando entramos na Clínica das Amendoeiras lá estavam internados 239 pacientes psiquiátricos e neurológicos. A circulação dos pacientes pela clínica era restrita aos lugares de tratamento, o tratamento psíquico era todo efetuado internamente e por uma equipe com orientação disciplinar psicopedagógica organicista; viviam super medicados; com contenções freqüentes e, muitas vezes, desassistidas.
A Clínica já se encontrava em situação precária, mas ainda não impeditivas para se manter funcionando. Apresentava um quadro de funcionários em quantidade condizente com a legislação vigente, havia roupas, comidas, medicamentos suficientes para prover os pacientes e alguns passeios e atividades.
Para imprimir uma nova direção clínica em comunhão com a reforma psiquiátrica e quebrar com a lógica manicomial, foram contratados psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, fonoaudiólogos, recém-saídos das residências de Saúde Mental, trabalhadores da rede pública e alguns de CAPS. Essa equipe foi construindo uma direção clínica preocupada em situar o paciente como sujeito cidadão de direitos e deveres, como também sujeito do inconsciente através da escuta de seu desejo, posição afinada com a clínica ampliada praticada na reforma psiquiátrica.
Desta forma alcançamos algumas metas às quais nos havíamos proposto.
— Supervisão clínica-instituciona l com discussão de caso para a construção do projeto terapêutico e condução do caso;
— Seminários internos para avaliação e propostas clínicas institucionais.
— 30 altas sendo que a maioria para retorno à família;
— Pesquisa e localização de familiares e trabalho terapêutico junto a eles.
—Discussão de caso com a equipe do serviço substitutivo de referência para o encaminhamento até a total absorção dos pacientes e familiares pelo serviço.
— Adoção de medicamentos de nova geração com menos efeitos colaterais;
— Diminuição do uso de neurolépticos e conseqüente diminuição de crises epilépticas com acidentes graves e mortes por TCE;
— Maior circulação dos pacientes pela clínica;
— Suspensão completa da contenção disciplinar e não assistida;
— Controle dos casos de tuberculose pulmonar e escabiose;
— Participação da equipe nos fóruns da área;
— Atendimentos de pacientes da clínica em CAPS e oficinas terapêuticas e profissionalizantes da área;
— Criação de oficina de geração de renda na própria clínica;
—Regularização da documentação dos pacientes; obtenção do LOAS e agilização do pedido da bolsa desospitalização para os pacientes que obtiveram alta; obtenção do Rio-Card.
— Pedido de redução de um módulo de leitos em Abril de 2007 com diminuição para 120 pacientes. Diminuição concedida, mas o aumento da diária ainda não foi repassado;
—Pedido de redução de outro módulo em 2008 com redução para 80 leitos psiquiátricos (ainda em tramitação), com fechamento total de 80 leitos;
Com o passar do tempo a situação foi se agravando progressivamente. As dificuldades se refletiam diretamente sobre a qualidade da assistência e das condições de vida dos pacientes. Há cerca de cinco meses chegou a um nível insuportável. Começou a não ser mais possível a reposição de utensílios da clínica e objetos de utilização dos pacientes dentro do necessário (roupas, lençóis, colchões, material terapêutico, de limpeza e higiene). A miserialização da clínica atingiu os pacientes de uma forma que nos vimos obrigados a lançar mão dos benefícios dos pacientes para que lhes fossem garantidos a higiene, o cuidado pessoal, as atividades extra-muros e um pouco de conforto. Mesmo assim a situação foi piorando, a alimentação foi se tornando insuficiente para as necessidades nutr icionais diárias e a limpeza da clínica é precária. Não foi mais oferecido telefone para utilização da equipe, os contatos com familiares e serviços passaram a ser feitos as expensas dos próprios técnicos e ficamos sem carro para a locomoção dos pacientes. Para a diminuição de gasto a folha funcional foi reduzida com a demissão, em um primeiro momento de um dentista, a maioria dos cuidadores e técnicos de recreação e educação física e, nos últimos meses, com a saída de nove técnicos de nível superior da equipe técnica e cinco profissionais da enfermagem da clínica.
Fomos impedidos de continuar nosso trabalho e, mesmo tendo que sair da clínica, nos sentimos responsáveis pelos clientes que lá ficaram. Continuamos a não acreditar na internação ad aeternum e sim como um possível recurso terapêutico quando clinicamente determinada. Precisamos garantir que a desconstrução do aparato manicomial, transformando os manicômios em mau negócio, não rentável, com a baixa remuneração para as internações psiquiátricas seja acompanhada da construção e ampliação da rede alternativa e substitutiva ao manicômio. A miserialização do hospital psiquiátrico está penalizando os pacientes mais do que os próprios donos.
Ainda restam muitos pacientes internados que merecem atenção e cuidado. Pacientes com sintomatologia grave, neuróticos graves, pacientes que foram acometidos pela psicose quando eram crianças (psicose infantil), autistas, psicóticos, retardo mental, neuropatas; como também outros que se encontram em possibilidade para alocação em RTs de média complexidade imediatamente e quatro que estão prontos para morar em residências terapêuticas de baixa complexidade. Quase todos em situação de abandono ou com famílias psíquica ou socialmente muito comprometidas.
Informamos que ficaram internados na clínica um número elevado de pacientes com benefício do LOAS, que nós mesmos ajudamos a providenciar para que eles tivessem algum conforto. Alguns estão tutelados por profissional da clínica, outros por tutora judicial e outros não são curatelados.
As altas e as melhoras clínicas dos pacientes nos fazem acreditar que valeu a pena nossa permanência na Clínica durante esses quase cinco anos.
Entretanto, os loucos literalmente varridos para os manicômios merecem tratamento. O tempo não para, não espera pela velocidade das ações desinstitucionalizantes das políticas públicas, a vida é breve. A espera pela desconstrução dos manicômios causa grande sofrimento aos pacientes internados em situação de abandono familiar, que, dela dependem, para saírem do confinamento por que passam.
Há muito ainda a ser feito no processo de desinstitucionalização da Clínica das Amendoeiras e, por essa razão, solicitamos que os pacientes que lá ficaram sejam atendidos em suas necessidades pelo SUS através das secretarias de saúde com projetos específicos em serviços substitutivos e ou alternativos para eles.
Eunice Valadares e Sandra Autuori
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