O PALADAR DAS PALAVRAS
UM TORNEIO EM TORNO DA GASTRONOMIA AMAZÔNICA
JESUS DE BELÉM VERSUS ANIBAL DE SÃO JOSÉ DA BARRA
Por Aníbal Beça
Fim de semana tranqüilo, curtindo as águas tépidas do ‘Refúgio dos crocodilos’, sempre exercitando o olhar atento para o bosque dos buritis, Talvez, quem sabe, à espera de flagrar alguma imagem inusitada, vezo de fazedor de haicais. Eis que o celular dá sinal novamente, tirando-me da condição do ócio, de molho, absorto. Resolvo atender imaginando tratar-se de algum órfão da Confraria do “Sabaníbal” (Reuniões que eram feitas com artistas todos os sábados em minha casa). Não era.
Alegre, vejo que quem me envia a mensagem é o querido Jota Jota Paes Loureiro de Belém, poeta que freqüenta minha cabeceira, me avisando de sua chegada e que enviou um ‘emílio’ para a minha ‘filomena’.
(É assim que outro poeta, lá de Barreirinha, batizou meu computador. Coisas do de Mello Amadeu.)
Sem sair da piscina, mando buscar o laptop para conferir a mensagem do “Poeta das mangueiras”. Quando abro o Outlook, veja leitor querido, o que apareceu estampado no visor:
LICENÇA POÉTICA
“A bênção, poeta Beça
que amigo à beça tu és.
Leva teu barco sem pressa
na crista dessas marés.
Pois Beça contém um B
e não PR de pressa.
Ouvindo-se o som se vê:
melhor que pressa é ter Beça.
O Thiago já me disse
e o Totonho confirmou:
foi leite de lua cheia
que de poesia te engordou!
Preciso de tua licença
poética pra ficar
muito à beça aqui em Manaus,
com teu visto consular.
Manda-me um verso depressa,
faz uma trova voar
e não me venhas com essa,
que estás de pernas pro ar...
É preciso que eu diga que poeta quando está tomado, cavalgando a musa, não se deve contrariá-lo, sob pena de inflamar a fúria dos Encantados. Sendo eu partícipe desse Conciliábulo, a única coisa a fazer é conclamar à minha para que venha rápido. Pensado e feito:
ENCONTRO DE ÁGUAS
(em resposta às redondilhas do irmão Jota Jota)
Poeta de muitas águas
já respondo bem ligeiro:
na piscina me encontrava
quando te li Paes Loureiro.
Amigo e querido poeta
minha alegria é sem par
licença tu não precisas
nem de visto consular.
Mas já estendo o tapete
tupé trançado de palha
o meu abraço é caboclo
e já estendo a toalha.
Se me leres poderei
convidar-te ao caviar
que aqui é de tambaqui
com pupunha e patauá.
Bem sabes que sou gourmet
atestado por Totonho
e o Thiago suburucu
de paladar tão bisonho.
Pois então por que a espera?
Venha rápido e depressa
tenho muitas figurinhas
para nós rirmos à beça.
Infelizmente, não seria dessa vez, que colocaríamos o assunto em dia, e nem o exercício do maxilar em torno às nossas iguarias. Visto que somos, os dois, bons gourmet. A permanência do querido amigo seria por dois dias somente, todos tomados por compromissos na Academia. Mais precisamente na UEA, Universidade do Estado do Amazonas, acompanhando sua querida Violeta que veio participar de uma banca de doutoramento.
Na falta da presença física, fui buscar na memória, fatos &ditos da caminhada desse poeta-mestre-inventor. Não conheço ninguém mais apaixonado pelas coisas da Amazônia do que João de Jesus Paes Loureiro. Não só tomando-a como tema principal de sua poesia, sem perder o foco da universalidade, mas, sobretudo, debruçando-se sobre o imaginário de sua gente: os causos, as estórias, as lendas, os banhos de cheiro, as benzeduras, beberagens e outras particularidades caboclas.
Tenho quase a certeza de que essa paixão se entranhou ainda na infância e adolescência passadas na pequenina cidade de Abaetetuba no Pará. Os banhos nas águas do rio Maratauíra, as reuniões à noitinha no beiradão do rio Tocantins, sempre com a presença de histórias sobre o boto, yaras, mapinguaris, curupiras e tapirayuaras. Seres do universo do panteão mitológico amazônico, que mais tarde, já em sua vida acadêmica em Belém, viriam a ser objeto de suas pesquisas e de sua tese singular batizada de ‘Encantaria’. Um revirão cascavilhado no imaginário caboclo.
Não sou egoísta, por isso não vou privar o leitor de algumas pedras-de- toque, meu cânone, retirados dos livros do poeta. No seu primeiro livro Tarefa (1964) podemos sentir o açodamento da pena a serviço da Causa, contra os militares do Golpe. Tempos difíceis, de dizer e denunciar, mas a chama poética presente como no poema dedicado a mestre Vitalino:
“Tu amassavas a dor de nosso povo
No barro cor de aurora do Nordeste.”
Ou no lirismo explícito de Composição número 3:
“Maravilhosas ilhas
Marulhosas quilhas
Cítaras cítaras si
Feitas de mar e ilhas
(...) Marilhas martírios
Calmas filhas
Cal marias do amor
Maravilhas”
+Ou nessa confissão camuflada em anagrama, declarando seu amor à sua musa de antanho, hoje, sua companheira:
“Que violeta amor abriu-se em flor”
A beleza do verso revela a proximidade das idéias difundidas pelo poeta Mario Faustino no JB com a página “Poesia experiência”. Faustino, nascido no Piauí, mas criado em Belém, cortava seu figurino ao talhe poundiano: melopéia, fanopéia e logopéia. Traduzindo: Que o verso contivesse ritmo musical em consonância com idéia e imagem. O que, em quase todo o livro é buscado com maestria.
Fazendo um corte para atender novamente Paes Loureiro, que desta vez, me chama através do Orkut (somos dois ciberpoetas militantes), sempre me espicaçando com suas redondilhas, mas na verdade olha o que ele quer:
RONDÓ BEM TEMPERADO
No final desse novembro
"manausarei" por três dias.
Prepara o teu tambaqui
que vou ficar sem comer
por muitos e muitos dias
e "tambaquirar" pra valer,
pois confio no paladar
do mestre suburucu
Thiago e no do Totonho,
dois comedores notórios
e de paladar bisonho.
E pra tantas iguarias
de lamber beiços à beça,
Anibal será deus Bal
nosso grande AniBal Beça.
Belém 19.10.2007
Como estava on line, na mesma hora enviei a resposta, como nos rengas de haiku japonês:
EM TOM DE COPLAS
A LA MANRIQUE
Jota Jota Paes Loureiro
Já troquei até o nome
Do mês que já se aproxima
De novembro pra amizade
Porque esta não tem solstícios
Somente meridianos
Para que o abraço se molde
Num banzeiro amazônico.
No dabacuri
Colheremos letras
Pra formar palavras
Sem mágoas nem tretas.
Um encontro de águas
Do Guamá com o Negro
Os teus caranguejos
Com os meus jaraquis.
Et comme il fault
Notre tambaqui
Não o mais medonho
- Do Thiago e do Totonho -
Mas o mais frugal
Desde Carvajal.
Pois gourmet bisonho
Em minha vivenda
Peixe? Só do perau
Os cegos das fendas
Como as piraíbas
Pirarara e bodó.
Peixes sem pressa
Primos do Caymmi
E do Aníbal Beça
(Já como Pelé
Criando entidade
Na terceira pessoa)
Pra rima ficar à vontade
E rirmos muito à beça.
Manaus 19.10.2007
Como estava escrito e anunciado, Jesus e Violeta chegaram em novembro. Mas queriam também a presença de poetas e amigos de Manaus e um, em especial: Totonho Auzier. Os poetas fizeram forfait, mas Renan Freitas Pinto, como dizia um colunista social, pontificou com seu talento de bom conversador.
Enquanto o almoço não acontecia a peleja eletrônica continuava:
ANTEPASTO
Meu poeta Aníbal Beça,
Cordon Bleu da poesia,
Racha esta lenha de versos
E assa nossa iguaria.
Costelas de tambaqui
Podes assar no poema.
Mas deixa o tucunaré
Tostar no forno sem pena.
Salpica rimas de sal,
Espreme o limão do verbo,
Tempera com melopéias
Das oliveiras do eterno.
Enquanto em verso espetadas
Cada costela gemer,
Bebamos vinhos divinos
Que os deuses sabem fazer.
Dentro do forno, quieto,
Sob escamas coloridas,
O nobre tucunaré
Entre batatas cozidas.
Então, meu vasto poeta,
Oh! Beça - poeta à beça -
Apressa essas lentas horas
Que minha fome tem pressa!
Pois bem, numa quarta-feira de novembro, abri a Vivenda do vento para o tão ansiado almoço. O menu, atendendo ao poeta: tambaqui moqueado e de forno, tucunaré recheado com arroz de camarão, pescada escabeche, pirarucu de casaca, e, de entrada: lascas fritas de jaraqui acompanhado de ovas à Aníbal Beça (para contrariar o Bacellar).
De bebida, vinho branco chileno e cerveja austríaca.
Quanto à nossa peleja, Jesus todo sorridente, ancho com o festim, todo pávulo anunciava-se como vencedor. Foi quando a Eugênia, que havia supervisionado o ‘rango dos deuses’ trouxe o laptop já aberto no Outlook e mostrou aos presentes, dando como empatado o torneio, o poema a seguir . Não sem antes de eu me escalar para uma maniçoba de responsa, pato no tucupi, e caranguejo toc-toc. Tudo na minha querida Belém no ‘Solar da ternura’ de Violeta e João de Jesus.
REPASTO
Cordon bleu? Já me adocicas
Meu poeta Paes Loureiro
Assim o almoço caboclo
Vira manjar forasteiro.
Trota-mundos sei que és
Jota Jota Paes Loureiro
Do Japão China e Paris
Bon gourmet bom quituteiro.
E isso não é de agora.
A encantaria amazônica
(Desde a doce Abaetetuba)
Que rege a tua sinfônica.
Uma camerata rica
Feita de verso e ciência
No paladar da floresta
Nas águas da descendência.
Este refúgio modesto
Minha Vivenda do Vento
Se enfeita com pavulagem
Pra receber teus ungüentos:
Vinho das vinhas das várzeas
Remédio aos nossos ouvidos
Que todos nós untaremos
Aos teus versos bem tecidos.
Peço licença ao poeta
Para a musa celebrar
Tua bela Violeta
Flor da selva do cantar.
OFERTÓRIO
Se Drumonnd tem uma pedra
Tu já tens uma pedreira.
Mas a tua é sinfônica
É tuba de ita faceira.
Caymmi canta a lagoa
Abaeté tão escura
Tu tocas Abaetetuba
Com teu Pará na ternura.
Mas tenho que terminar
Louvando nossa cozinha
Sarapatel, sarrabulho
Maniçoba da maninha
Mana Mani mandioca
Com pato no tucupi
Tudo muito apimentado
Com a de Cheiro e a Murupi.
A lenha do fogo é verso
Pros peixes da poesia
Tambaqui, tucunaré
Pirarucu na enfia.
Dados bibliográficos
João de Jesus Paes Loureiro nasceu em Abaetetuba, cidade paraense situada à margem do Rio Tocantins, em 23 de Junho de 1939, onde passou a infância e adolescência e realizou seus primeiros estudos. Em Belém do Pará, cursou a Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras, Artes e Comunicação, na Universidade Federal do Pará. De 1964 até 1976, em decorrência de sua poesia, militância política e idéias democráticas, foi perseguido e várias vezes preso pela ditadura militar, sofrendo torturas, graves perseguições e privações de oportunidades profissionais. No final da década de 70 tornou-se, por concurso público, professor de Educação Artística na Escola Técnica Federal do Pará e de História da Arte, Introdução à Filosofia e, depois, Estética Cultura e Comunicação, na UFPA. Tornou-se Mestre em Teoria Literária e Semiologia, pela PUC de Campinas em 1984 e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, França, em 1990. A partir de 1983 exerceu as funções de Secretário Municipal de Educação e Cultura de Belém, Superintendente (e criador) da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, Secretário de Cultura do Pará, Secretário de Educação do Pará e, criador do Instituto de Artes do Pará, sendo o seu primeiro Presidente.
Obras Literárias:
· Tarefa – Pará: Falângola, 1964.
· Cantigas de amar de amor e de paz – poesia. Belém: Graf. Globo, 1966.
· Epístolas e Baladas – poesia. Belém: Grafisa, 1968.
· Remo Mágico – poesia. Belém: Graf. Sagrada Família, 1975.
· Enchente amazônica – poesia. Separata publicada pelo Conselho de Cultura do Pará, 1976. · Porantin: poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
· Deslendário: poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
· Pentacantos: poesias. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984
· Cantares Amazônicos: poesia. São Paulo: Roswitha Kempf, 1985.
· “O Ser Aberto”. Belém: Cejup, 1987.
· Romance das três flautas ou de como as mulheres perderam o domínio sobre os homens: poesia. Tradução para o alemão de Hildegard Fauser-Werle. Ed. Bilíngüe. São Paulo: Roswitha Kempf, 1987.
· O Poeta Wang Wei ( 699 – 759 AD ) Na visão de Sun Chin e João de Jesus Paes Loureiro: poesia. Ed.Bilíngüe. São Paulo: Roswitha Kempf, 1988.
· “Artesão das Águas”. Belém: Cejup/Universidade Federal do Pará, 1989.
· Iluminações/Iluminuras: poesia. Tradução para o japonês Kikuo Furuno. Ed.Bilíngüe Roswitha Kempf, 1988.
· Altar em chamas e outros poemas. São Paulo: Cejup Cultural, 1989.
· “Elementos de Estética”. Belém: Cejup, 1989.
· Cinco palavras amorosas à Virgem de Nazaré: poesia. Belém: Cejup Cultural, Belém-PA, 1989.
· Tarefa: poesia. feed. Fac-similar. Pará: Falângola, 1989.
· Erleuchtungen/Malereien (Iluminações/Iluminuras). Tradução para o alemão Michael V. Killischh. Munique: Horn, 1990.
· Cantares Amazônicos: coletânea de poemas. Ed.Bilíngüe. Português e Italiano, lançado em L’Aquila, Itália. Pará: Falângola, 1990.
· Cantares Amazônicos. Berlin, Alemanha (em português e alemão), 1991.
· “Cultura Amazônica – uma poética do imaginário”. Belém: Cejup, 1991.
· Un Complainte pour Chico Mendes. Tradução Lyne Strouc. Foire International Terres de L’Avenier-CCFD. Paris, França, 1992.
· “A poesia como encantaria da linguagem – Hino Dionisíaco ao Boto”. Belém: Cejup, 1992.
· Altar em Chamas: poesia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
· “Belém. O Azul e o Raro”. Belém: Edição de Violões da Amazônia, 1998.
· “Pássaro da Terra”: teatro. São Paulo: Escrituras, 1999.
Poemas inclusos nas seguintes antologias:
Literatura Brasileira em Curso. Seleção de Riedel, Dirce: Bloch Editores, 1968.
II Brasile Atraverso La Poesia: Seleção de Savino, Mombelli. Milão, Itália: AVE, 1969.
Antologia da Cultura Amazônica. Amazônia Edições Culturais Ltda, Vol. 2, páginas 333/335.
Poemas publicados na revista Gaceta do Instituto Colombiano de Cultura, 1982.
Poemas publicados na revista Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, Brasil, 1983.
Gesange des Amazonas: Poemas/Gedichto. Berlim DIÁ, 1991.
Discos:
Disco com músicas de sua autoria – Escorpião/Rosembi, 1974.
Até a Amazônia – músicas com Quinteto Violado. Rio de Janeiro, Phonogran, 1975.
Rostos da Amazônia – poesia, com Sebastião Tapajós ao violão. Rio de Janeiro, Phonogran, 1985.
O Rei e o Jardineiro – com Quinteto Violado. Produção independente, 1995. Belém.
O Azul e o Raro – (para ler como quem anda nas ruas) Poesia e Música com Salomão Habib, 1998.
Obras Premiadas:
· Ilha da Ira. Primeiro Prêmio do Serviço Nacional de Teatro, Ministério da Educação, Rio de Janeiro, 1976.
· A Procissão do Sayrê. Inacen/MEC – Rio de Janeiro, 1977.
· Altar em Chamas. Prêmio de Poesia, pela Associação Paulista de Críticos de Artes – APCA. São Paulo, 1994.
· Romance das três flautas. Prêmio Jabuti. São Paulo, 1998.
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