Contra a greve da PM
Fonte: Quadrado dos Loucos
PICICA: "O motim policial na Bahia chegou ao Rio de Janeiro. Agora, o populismo, o corporativismo rasteiro e um esquerdismo burro, — todos sintonizados no misto de sensacionalismo e golpismo da grande imprensa, — começaram a chantagear a metrópole às vésperas do carnaval."
O motim policial na Bahia chegou ao Rio de Janeiro. Agora, o populismo, o corporativismo rasteiro e um esquerdismo burro, — todos sintonizados no misto de sensacionalismo e golpismo da grande imprensa, — começaram a chantagear a metrópole às vésperas do carnaval.
A PM em greve é só mais um motivo pra repensar a situação anacrônica de se contar com uma polícia militarizada, diferente do que acontece noutros países. A militarização que não só tende a confundir polícia com forças armadas, mas, mais grave, forças armadas com polícia, o que é ruim para ambas as instituições e sobretudo para o cidadão.
A lógica militar estrutura práticas e discursos baseados na afirmação incondicional da soberania, no combate total, de vida e morte, contra um inimigo externo. Em suma, prepara-se na paz para atuar numa situação de guerra, isto é, num segundo momento hipotético, que pode ou não se confirmar. Porém, na América Latina, essa lógica costumou permear a organização política interna, não somente para atuar em situações excepcionais, mas no cotidiano, em qualquer lugar, contra qualquer um enquadrado como inimigo público. O segundo momento, hipotético, se dilui como aqui e agora. Com uma polícia assim organizada, a exceção se torna a regra e todos ficam à mercê desse poder incerto e ambíguo, mas que sabe muito bem diferenciar o branco do negro, o rico do pobre.
As forças armadas latino-americanas levaram décadas para deixar de servir diretamente à repressão social e política da própria população (amiúde sob alto comando em Washington), quando descontente ou “subversiva” ou simplesmente pobre, e mesmo esse processo ainda precisa ser concluído (e uma boa Comissão da Verdade faz parte disso). A segurança pública continuar nesse esquema militar de guerra é mais um resíduo desses tempos abertamente ditatoriais. Mesmo porque, no Brasil, parte da ditadura não morreu, nos porões das delegacias, nas prisões e nos corações de alguns da velha geração, que não hesitariam em apoiar um novo regime de censura, arbítrio, perseguição ideológica e tortura, apesar de todas as mudanças de ventos. E apoiariam com entusiasmo!
Não pode haver na polícia pública o conceito de um inimigo absoluto, de afirmação da soberania. Permitir que se maneje política e midiaticamente esse conceito de inimigo, — seja ele o crime organizado, a cracolândia ou a guerra antidrogas, — não faz mais que promover a exceção permanente, onde a polícia se torna um soberano difuso que, muitas vezes, acaba ela mesma organizando a violência e o crime. As milícias cariocas que o digam, nesse indecidível entre o poder do crime e o crime do poder. A polícia não pode agir como operador da soberania contra o inimigo. Ela lida com o cidadão, transita nas ruas e precisa se colocar no mesmo plano, comunitária, aberta, estreitamente fiscalizada por instâncias locais de governança, imprensa e defesa de direitos.
No estado do Rio de Janeiro, isto não significa apenas desmilitarizar a PM, mas recomeçá-la praticamente do zero, retomando o controle sobre as áreas milicianas (por dentro da própria polícia) e reestruturando-a no treinamento e na doutrina. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), por exemplo, poderiam ser inteiramente reconfiguradas como Unidades de Políticas do Comum (UPC), conjugando policiamento comunitário com pontos de mídia livre, cultura, saúde, esporte, educação, centros cidadãos de renda e gestão democrática da comunidade. Tornar mais local e próxima e integrada socialmente a administração do território, onde a segurança é só um elemento entre muitos.
Se a reivindicação em curso tivesse sombra dessa pauta mais social e democrática, em vez de tensionar a cidade corporativamente, instigando manchetes de sensação, ela poderia cumprir um papel importante. O que está acontecendo na Bahia e no Rio de Janeiro está longe disso e não merece aprovação.
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Recomendados:
Polícia Militar, o motim e a Bahia, por Hugo Albuquerque, no Descurvo
Notas sobre uma greve imaginária (na Bahia), por Lucas Jerzy, no Último Baile dos Guermantes
Bahia: trágica comédia de erros, por Chico Bicudo, no seu blogue
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