2011 – O ano do fim do fim da história
PICICA: "No texto abaixo abordamos as formas criativas de superação do cenário de crise do capitalismo e das democracias representativas ora instalado: as novas interações entre ocidente e oriente, a experiência alternativa de democracia na Islândia, os avanços de direitos sociais, econômicos e civis no contexto regional latino-americano."
O grupo político Brasil & Desenvolvimento traçou, neste início de 2012, o que considera fundamental para qualquer intervenção crítica na realidade: uma análise de conjuntura.
Trata-se de um exame da realidade imediata, vivenciada em 2011: se essa realidade é construída por fatores históricos, ela não é por eles enclausurada. A realidade clama por intervenções dos agentes do presente.
Se imaginar é revolucionar, não separamos pensamento e ação, crítica e luta. Nossa proposta para 2012 começa com a análise do que representou 2011, o contexto em que nos inserimos, para que, empoderados da crítica, possamos construir mudanças.
Construímos, então, três textos, com a interpretação de planos distintos (e nem por isso desconexos entre si) da realidade:
- conjuntura internacional,
- conjuntura brasileira, e
- conjuntura do Distrito Federal, sede do grupo.
#1 texto da série: Análise de Conjuntura Internacional
No texto abaixo abordamos as formas criativas de superação do cenário de crise do capitalismo e das democracias representativas ora instalado: as novas interações entre ocidente e oriente, a experiência alternativa de democracia na Islândia, os avanços de direitos sociais, econômicos e civis no contexto regional latino-americano.
Criticamos a posição em que vem se colocando o Brasil como porta-voz do mundo em desenvolvimento, que por vezes parece legitimar a lógica diplomática de relações hierarquizadas e coloniais entre as nações.
Refletimos, enfim, sobre a descoberta de que o alardeado fim da história não passa de uma grande bobagem.
2011 – O ano do fim do fim da historia
Análise de conjuntura internacional
Grupo Brasil e Desenvolvimento
Grupo Brasil e Desenvolvimento
2011 começou na praça Tahrir. Em época de islamofobia crescente e “exportação de democracias”, o povo tunísio, seguido pelo povo egípcio, demonstra que os caminhos da política democrática não estão em receitas. Não há “donos da democracia”.Um ano depois, em 25 de janeiro de 2012, milhares de egípcios de diferentes afiliações religiosas voltaram a se juntar na praça Tahrir, para lembrar a queda de Hosni Mubarak e exigir que a junta militar, atualmente no poder, leve as reformas democráticas a cabo.A dita “primavera árabe” testemunha que os caminhos que tomam as lutas democráticas extrapolam os limites previamente estabelecidos para elas.
Por um lado, os esforços pela derrubada de antigos tiranos e pelo estabelecimento de democracia e justiça social deixam claros os limites do comprometimento moral e a instrumentalização de ideologias que se opera na política externa das grandes potências. Enquanto os movimentos populares no Egito poderiam beneficiar-se enormemente do apoio externo, o medo por parte das potências ocidentais de até onde a democracia egípcia pode ir – talvez a um governo da Irmandade Muçulmana – faz parecer que a manutenção indefinida de uma junta militar no poder não seria assim tão terrível para os principais regimes ocidentais, e que a democracia e a justiça social são objetivos nem tão centrais.
Essa afirmação discursiva silencia as demandas por maior democratização dentro do próprio ocidente. A solidariedade intercultural entre indignados serve para lembrar que um projeto de democracia radical no interior dos países requer uma reformulação também radical do outro, em contraposição ao outro antagônico que a política externa sempre colaborou para construir, nos Estados modernos.
Do lado europeu, movimentos de ocupação, acampadas espanholas e revoltas gregas demonstram que as instituições da democracia representativa, amarradas ao sistema financeiro e às grandes corporações, esgotaram sua capacidade de canalizar demandas. No Occupy Wall Street, o enredo é o mesmo.
Em todos os lugares onde se reúnem indignados, há o questionamento sobre como construir novas alternativas políticas. Se estão falidas, as instâncias representativas e as instituições postas, por outro lado, não estão esvaziadas. Há ainda grandes interesses lutando pela conservação das instituições econômicas e políticas hegemônicas. Desses interesses compartilha o seio da União Europeia. Antes vista por alguns como alternativa potencial ao modelo vigente de Estado, centralizada na Alemanha, o bloco europeu torna-se um meio de reforçá-lo. Isso não quer dizer que o caminho da supra-nacionalidade e da integração não possam ser pensados como vias alternativas pela esquerda, mas que a integração capitaneada pela economia, sobretudo pelo receituário econômico neoliberal, gera menos resultados positivos do que aqueles que o discurso dominante propagandeava.
A Islândia aponta a saída à crise “econômica”: a invenção democrática.
Apesar do grande poder catalítico da internet e das redes sociais para a organização dos movimentos, o que Egito, Tunísia, Chile, Ocupas e Acampadas demonstram é que a ação do povo na rua, ainda no século XXI, continua sendo um fator decisivo para desencadear mudanças. É na conjunção de redes, praças e ruas que têm se expressado e se articulado os clamores e impulsos para a imaginação e criação de novas alternativas econômicas e políticas. Nesse sentido, é exemplar o caso da Islândia: desde 2008, quando o país foi profundamente afetado pelo colapso financeiro global, a população tem se mobilizado amplamente para rejeitar as “soluções” de praxe – isto é, manter intocado o sistema financeiro, precarizar direitos trabalhistas e reduzir gastos sociais do Estado. Por meio de intensa mobilização, o povo islandês tem conquistado uma série de vitórias: derrubou a coalizão liberal-conservadora que governava o país; recusou-se, em dois referendos, a pagar as dívidas internacionais causadas pelos bancos; tem conseguido compelir o Estado a levar adiante a investigação dos crimes financeiros para punir os seus responsáveis e reformar o sistema; e, finalmente, forçou a convocação de um processo constituinte marcado, em 2011, por inovações notáveis, como a ampla participação popular por meio da internet.
Merece destaque ainda, na Islândia, o projeto Initiative Media, aprovado pelo parlamento islandês em 2010 e cuja execução segue avançando. O projeto visa a tornar o país um porto seguro para o jornalismo investigativo mundial. Aliás, o silêncio generalizado por parte da maioria da imprensa sobre a alternativa democrática que o povo islandês vem construindo à crise lembra-nos mais uma vez a quais interesses econômicos e políticos serve a mídia hegemônica. Tal silêncio também nos faz lembrar da importância de se garantir e proteger o desenvolvimento de novas mídias. É preciso considerar, a propósito, a contribuição da Wikileaks para a primavera árabe e outras revoltas e manifestações populares em 2011.
As movimentações políticas na Europa e em Wall Street, de resistência à utilização da crise econômica como pretexto para retirada de direitos sociais, lembram-nos de que a crise econômica que se arrasta e se aprofunda desde 2007 é sobretudo uma crise política, sobre os fins políticos da produção econômica, sobre a política de apropriação de riquezas. Nesse contexto, a Islândia tem mostrado que existe uma alternativa democrática, inclusiva e transformadora ao receituário de precarização que costuma se apresentar como o único caminho; essa alternativa passa pela afirmação da soberania popular sobre a economia, com a apropriação comum das riquezas produzidas em comum pelo povo.
América Latina: avanços nas lutas contra o neoliberalismo, o racismo e o sexismo
É nesse contexto em que se situam, também, as grandes mobilizações do movimento estudantil chileno em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, em contraposição à educação concebida e vendida como mercadoria, exclusiva para alguns poucos. O movimento tem se destacado não apenas por realizar marchas com dezenas de milhares de pessoas, mas pela capacidade de apresentar alternativas e de se articular com outros movimentos sociais: a partir da consciência de que a privatização e mercantilização de direitos submetem-se à lógica do lucro, e por isso mesmo são negados à grande maioria da população, os estudantes têm demandado, notadamente, uma reforma tributária que aumente a cobrança de impostos sobre os mais ricos, para financiar a garantia de direitos sociais universais.
A luta para frear ou reverter a mercantilização neoliberal de direitos e a busca por inovações sociais e institucionais capazes de superar os limites da democracia representativa têm sido marcantes na América Latina na última década. Antecipam-se à eclosão da atual crise do capitalismo global e às recentes ocupas e primaveras. O processo de mudança social em curso na Bolívia, um dos países mais pobres da América do Sul, é provavelmente o mais significativo e simbólico nesse sentido. Além do enorme sucesso do país na redução da pobreza e das desigualdades, merecem destaque três outros fatores. Primeiro, as inovações institucionais promovidas na estrutura política do Estado, de que foi exemplo, em 2011, a realização de eleições diretas para a escolha dos juízes dos tribunais superiores, inclusive da Corte Constitucional, um procedimento inédito no mundo, que merece ser analisado e pensado a fundo, pelo potencial de democratização da justiça que carrega. Segundo, o combate ao racismo estrutural da sociedade boliviana, dirigido em especial contra a maioria indígena da população, é uma prioridade do “governo indígena” de Evo Morales, muito mais do que dos demais governos da América Latina, que não dão o valor devido a esse tema – apesar de o racismo ser uma marca decisiva da estrutura social de todos os países do continente.
Finalmente, como condicionante de todos os aspectos anteriores, destaca-se o fato de que o processo de mudança, na Bolívia, é impulsionado e em importante medida controlado “desde baixo”, pela força da organização popular, de modo que a alta mobilização social existente no país mostra-se capaz de impor suas pautas ao governo. Em 2011, isso ficou evidente em dois momentos. No início do ano, Evo Morales anunciou a decisão de cortar os subsídios dos combustíveis, o que equipararia o seu preço ao mercado internacional, elevando-o em até 73% para os consumidores; cinco dias depois, voltou atrás, após ter enfrentado fortíssima resistência nas ruas, organizada em especial por movimentos de trabalhadores do campo, importante base política do Presidente. Ao fim do ano, o governo novamente cedeu às ruas em outra questão de alta importância, a construção da rodovia TIPNIS, que passaria por meio de terras indígenas, ameaçando o seu modo de vida tradicional – algo incoerente com o “Estado plurinacional” proclamado na Constituição boliviana de 2009 – e provocando danos ao ecossistema da Amazônia. O movimento indígena, outra base política fundamental de Evo, realizou grande marcha de dois meses e obteve a mudança da posição do governo, que no início tinha chegado inclusive a reprimir as manifestações, com uso de força policial (o que levou à renúncia da Ministra da Defesa, por discordar de tal procedimento). Fundamental observar que a vitória não foi apenas dos índios, mas de amplos setores da sociedade boliviana que se articularam para apoiar sua pauta, merecendo destaque a greve geral realizada pelo principal sindicato operário da Bolívia, a COB, em repúdio à violência policial contra os manifestantes.
Não é novidade que, num processo de mudança social, existam fortes e múltiplas contradições entre diversos setores da sociedade, o que se reflete também no Estado, em especial num contexto democrático. Não há nada novo, tampouco, no fato de o governo ter cedido a pressões de grupos empresariais para tomar medidas impopulares em nome de um “projeto de desenvolvimento” (para quem?) ou do “equilíbrio econômico”. O elemento inédito, ou pelo menos nada usual, desses dois casos foi o fato de as mobilizações sociais terem vencido essas pressões e impedido os recuos políticos do governo. Parece seguir firme, portanto, por força da mobilização social, o processo de construção e fortalecimento de uma democracia de alta intensidade na Bolívia, marcada por vigorosa participação popular. Para as forças progressistas da sociedade brasileira, fica a lição de que, quando se tem um governo que se pretende de esquerda, a luta social não se faz menos necessária e oportuna; o caminho para promover mudanças não é blindar o governo, mas enfrentá-lo a cada vez que ele sucumba a interesses contrários à democracia e à justiça social.
Finalmente, ainda no âmbito do nosso continente, merece ser celebrado um fato ocorrido nos últimos dias do ano: a aprovação, pelo Senado do Uruguai, da legalização do aborto nas primeiras doze semanas de gestação e de um imposto para combater a concentração de terras. Ambas ainda pendem de aprovação na Câmara, mas é alentador observar, desde o cenário de poucos avanços no Brasil nessas duas temáticas fundamentais – direitos sexuais e reprodutivos e reforma agrária, respectivamente –, que os nossos vizinhos seguem caminhos diferentes. Cabe a nós aprender com suas lutas vitoriosas por um modelo alternativo de desenvolvimento, pautado pelos direitos humanos e pelo protagonismo social do inesgotável processo de aprofundamento do processo democrático.
Brasil: potência solidária ou subimperialista?
Os dois casos citados de antagonismo entre governo e movimentos sociais na Bolívia permitem-nos observar também o papel – subimperialista? – que o Brasil tem desempenhado naquele país. A Petrobrás era uma das maiores interessadas no aumento dos preços dos combustíveis na Bolívia, e o BNDES seria responsável por 80% do financiamento da rodovia do TIPNIS, a qual seria construída por uma empreiteira brasileira, a OAS.
Para pensar o lugar do Brasil nesse contexto, é preciso lembrar a ambivalência do sistema internacional contemporâneo. As instituições se multiplicam com o discurso de que buscam atender a demandas morais, à necessidade de expandir os direitos humanos para a maior parte da humanidade. No entanto, essas dinâmicas ocorrem em um contexto ainda dominado por hierarquias entre países, marcado pela política de poder, por relações coloniais.
A diplomacia brasileira, historicamente, sempre alegou ter como um dos seus pontos fortes a capacidade de identificar essa ambivalência e se posicionar em prol do aprofundamento das primeiras dinâmicas, denunciando as últimas.
O Brasil marcou-se, historicamente, pelo objetivo declarado de se estabelecer como uma influência do sistema no nível moral. Diferentemente dos EUA, a mola mestra do nosso discurso tradicional não é a democracia, mas o desenvolvimento, que se fazia acompanhar, durante a maior parte de nossa atuação, de um discurso anti-hegemônico, anti-político de poder, em prol das instituições de direito internacional, da cooperação internacional e da construção de um sistema internacional mais justo.
Chegou o momento no qual o desejo de ser ouvido pela força de nossas ideias foi alcançado, pela importância crescente que a emergência da economia traz para o país. Os anúncios do “Brasil Potência”, contudo, deixam bem claros os limites que sempre existiram no discurso e na prática da política externa brasileira em relação ao quanto o país está disposto a renunciar ou subverter a lógica dos grandes do sistema.
O posicionamento brasileiro em relação ao G-20 ou a demanda pelo assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas são bastante esclarecedores em relação a esses limites. Ambas as instâncias internacionais são clubes fechados e fazem as vezes no nível internacional, da lógica institucional representativa ultrapassada que os movimentos de indignados criticam no nível nacional. É certo que as demandas por participação nesses clubes restritos é acompanhada de uma retórica da necessidade de maior democracia, maior foco no desenvolvimento e reforço do direito internacional. No entanto, todos os participantes desses clubes defendem agendas igualmente admiráveis.
É preciso nos perguntarmos se, participando desses espaços, os reformaremos, ou se os reformados seremos nós. Defendemos merecer um assento no Conselho de Segurança ou no G-20 porque estamos credenciados para “representar o mundo em desenvolvimento”.No entanto, algumas pistas surgem sobre a nossa real vontade de mudança e o quanto, de fato, o problema brasileiro não é com a política de poder, mas a política de poder da qual não participamos. E essas pistas têm nome: Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti, Usina Hidrelétrica de Belo Monte…
Fonte: Brasil e Desenvolvimento
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