Sete teses sobre as ocupações de 2011
PICICA: Quem imaginaria 2011? Nem mãe Dinah, nem Nostradamus. 2011 surpreendeu a todos.
Um ano atrás, quem imaginaria que uma multidão insistente e pacífica, sem quaisquer laços com a Irmandade Muçulmana, retornaria à Praça Tahrir uma e outra vez, durante semanas, até derrubar o ditador egípcio Hosni Mubarak? Quem teria previsto que um movimento de ocupação popular, de contornos antineoliberais e, em alguns momentos, anticapitalistas, varreria os EUA de leste a oeste, deixando estupefatos e sem reação tanto os dois partidos políticos como os comentaristas da mídia corporativa? Quem suporia que a profundidade da crise e a mobilização popular derrubariam Primeiros-Ministros europeus, como na Grécia e na Itália? Quem imaginaria 2011?
1. As ocupações de 2011 enterram mais uma vez as teleologias da História. A última vez que ouvimos falar que a História havia chegado a seu ponto final foi nos anos 90. Francis Fukuyama tomou a queda do muro de Berlim como comprovação de que a teleologia da História—ou seja, a concepção que a entende como dirigindo-se a um fim pré-estabelecido—havia se realizado, com a vitória definitiva do capitalismo liberal, que então só necessitaria ajustes em seu interior, sem qualquer outra ameaça externa. Não foi uma revolução socialista, mas um atentado terrorista em Nova York que se encarregou de pôr a pá de cal nessa celebração otimista. A década que se seguiu ao atentado foi marcada pelo conceito de guerra sem fim: os EUA tentaram rearticular sua hegemonia em declínio através da construção de um inimigo onipresente, virtual e despersonalizado, e nessa toada viveu-se a década 2001-2011. Quando mais parecia que o binômio “imperialismo dos EUA x fundamentalismo islamista” se manteria como a polarização definidora da política mundial, emergem em todo o mundo árabe ocupações populares sem relação com o islamismo e, no Ocidente, sem qualquer relação com o morno antagonismo que opõe liberais ou social-democratas aos conservadores da direita. As ocupações de 2011 reafirmam a condição inacabada da História, sua natureza radicalmente pendente, seu caráter de puro devir.
2. As ocupações 2011 apontam sinais de falência generalizada dos partidos políticos. Talvez não haja fio unificador mais visível em todas as revoltas (Tunísia, Egito, EUA, Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Bahrein, Iêmen, Síria, Argélia etc.) que seu caráter autônomo em relação às coletividades políticas já sancionadas, nos casos europeus e estadunidense, pelas democracias representativas ou, no caso do mundo árabe, pelas autocracias militares ou monárquicas. Aqui, a Espanha é emblemática: sob um governo social-democrata, liderado por José Luis Zapatero, um Primeiro-Ministro de considerável prestígio no exterior, uma multidão de indignados fez ouvir clara e em bom som a mensagem de que nem PP, o Partido Popular, de direita e franquista, nem o PSOE, o Partido Socialista Operário Espanhol, de Zapatero, os representavam. Não se trata só de que estes movimentos são independentes dos partidos. Trata-se de uma ruptura muito mais profunda, através da qual as multidões (des)organizadas denunciam a perda da capacidade destes partidos de representarem os desejos políticos reais que se articulam na pólis. As ocupações não se levantam apenas contra as ditaduras e o autoritarismo, no mundo árabe, e o arrocho salarial e a financeirização da vida, no Ocidente, mas também, em ambos os espaços, contra as estruturas supostamente representativas da política. Neste contexto, não faz sentido responsabilizar os indignados da Espanha pela vitória do PP nas últimas eleições, posto que seria bastante difícil encontrar grande diferença entre a política econômica aplicada por Zapatero e aquela imposta anteriormente por Aznar.
3. As ocupações 2011 são uma crítica da representação e resgatam uma memória dos oprimidos: a democracia direta. A autonomia popular reunida na Plaza del Sol, em Liberty Plaza e em dezenas de outras praças públicas ao redor do Ocidente denuncia o caráter não-democrático da democracia liberal. A financeirização do mundo também molda os partidos políticos, e nenhum exemplo é mais eloquente que os EUA: 80% dos cidadãos estadunidenses desaprovam o Congresso de seu país, mas não podem renová-lo, porque a legislação eleitoral é construída de tal forma que só os Partidos Democrata e Republicano sobrevivem—ambos, o segundo um pouco mais, cativos dos interesses do grande capital e, muito especialmente, do capital financeiro. As ocupações 2011 mostram que a falência da democracia representativa é filha da financeirização do mundo. A disseminada desilusão com a administração Obama, por exemplo, não deu lugar a um crescimento do Partido Republicano nem à formação de um terceiro partido (há dezenas de “terceiros partidos” nos EUA, desprovidos da possibilidade de participação no processo político real). Essa desilusão deu lugar ao Ocupar Wall Street. A resistência do movimento às regras estabelecidas no jogo eleitoral e a preferência pela construção da democracia direta lembra muito mais a Comuna de Paris ou Maio de 1968 que qualquer outro movimento acoplado à maquinaria de representação política da democracia institucional. Em assembleias, passeatas, nos comoventes microfones humanos do Ocupar Wall Street (saída encontrada para contornar a proibição de microfones nas praças), nas oficinas solidárias oferecidas pelos ocupantes, encontra-se em gestação outro conceito de democracia, cujo atributo principal, sem dúvida, é este: ele se reinventa permanentemente. Ninguém sabe no que vai dar.
4. As ocupações 2011 demonstram que nenhuma luta popular genuína pode se limitar hoje a fronteiras nacionais. A quebra do capitalismo europeu transforma o aparato eleitoral de suas nações em pouco mais que uma escolha do comissário que irá obedecer as ordens do capital financeiro. Num contexto de integração monetária continental e integração comercial global, em que a manipulação de títulos de dívida e o fluxo de capitais são capazes de derrubar uma economia europeia em questão de dias, desapareceu a diferença entre governos conservadores e social-democratas, pois praticamente desapareceu a margem de manobra destes últimos. Os social-democratas e socialistas podem ainda manter uma retórica mais progressista, alguma memória de sua época de representantes da classe trabalhadora e disposição a um “diálogo” (sempre infrutífero) não vistas na direita, mas o resultado final, especialmente na política econômica, é o mesmo. Nas ocupações de 2011, por boas razões, têm sido minoritárias as vozes que acreditam numa rearticulação da potência autônoma da multidão com o aparato político nacional. Talvez desde a I Internacional Comunista ou, no máximo, a onda de revoluções abortadas na Europa durante o período da III Internacional, não se sentia tão nitidamente a necessidade de um processo revolucionário global, que escape do dilema entre ceder às limitações impostas pelo capital ao Estado-Nação e abdicar de tomar o poder para permanecer na pura negação. A saída para esse dilema, como todas as outras questões estratégicas que acossam as ocupações, continua pendente, de resolução não vislumbrada. Mas é nítida a consciência de que qualquer adequação aos limites do Estado-Nação não satisfará a energia transformadora já desatada.
5. As ocupações de 2011 enterram de vez o mito da democracia liberal tolerante com o dissenso. O exemplo definitivo aqui são os EUA, justamente porque o “Ocupar Wall Street”, ao contrário, por exemplo, da revolta de excluídos na Inglaterra, tem sido um movimento pacífico. Mesmo assim, a repressão policial tem se manifestado de forma assombrosa. Em meados de novembro, correu o mundo a imagem de um policial de Davis, na Califórnia, lançando spray de pimenta sobre um grupo de estudantes sentados de braços dados na área central do campus. O policial tinha o semblante de quem dedetiza uma nuvem de insetos. Em Seattle, a jovem Jennifer Fox foi espancada por policiais até sofrer um aborto. Ainda em Seattle, uma senhora de 84 anos, Dorli Rainey, recebeu jatos de spray de pimenta na cara até não conseguir se mover sem ajuda de companheiros de ocupação. Em Nova York, a polícia deliberadamente orientou os manifestantes a se dirigirem à Ponte do Brooklyn para ali prendê-los. O acampamento da Liberty Plaza foi acossado por faróis da polícia durante semanas, piscando ao longo da noite para impedi-los de dormir. Veteranos de guerra foram espancados pela polícia de Boston ao se interporem entre ela e os manifestantes, tentando defendê-los de uma desocupação que violava grosseiramente a primeira emenda da Constituição. São centenas de presos em todo o país, todos eles cidadãos pacíficos que exerciam um direito previsto em lei. Só com grande ingenuidade ou má fé seria possível defender hoje a ideia de que a Primeira Emenda significa algo quando se trata de mobilização popular anticapitalista nos EUA.
6. As ocupações de 2011 realçam o papel das novas tecnologias e o caráter insubstituível da rebelião presencial. Já se transformou em senso comum a ideia de que as novas tecnologias digitais e redes como o Facebook e o Twitter cumprem papel central nas novas revoltas. Isso é correto, evidentemente. Na rebelião de consumidores excluídos na Inglaterra, todo o agendamento de levantes se deu pelo comunicador do Blackberry (BBM), enquanto que, nos EUA e no Egito, o Twitter e o Facebook multiplicavam os canais de circulação do protesto. Não se trata simplesmente de que novas tecnologias se transformam em veículos de comunicação comparáveis ao telefone ou ao telégrafo privilegiados em outras eras. Os novos trabalhadores são, eles mesmos, peças de um capitalismo cognitivo, no qual a produção de lucro passa pelo valor imaterial da mercadoria produzida: patentes, propriedade intelectual, dívida sem materialidade sob a forma de puros títulos, teologia do copyright. Eis aí os termos decisivos através dos quais se articula a dominação capitalista hoje. Ou seja, o próprio capitalismo financeiro contra o qual se rebelam as multidões de 2011 tem como atributo a imaterialidade reproduzível das formas de comunicação usadas pelos manifestantes. É exatamente por isso que nada é mais ingênuo que celebrar as novas tecnologias digitais como instrumentos emancipatórios em si. Foi a rebelião presencial que desatou, tanto nos EUA como na Inglaterra e no Egito, a repressão aos fluxos digitais, com cancelamento de contas, bloqueio de circuitos e censura a mensagens subversivas. Justamente porque as ágoras digitais e físicas não estão separadas—ou seja, porque elas compõem a teia do capitalismo cognitivo–, não tem sentido tecer loas ao poder liberador das novas tecnologias sem reconhecer que o inimigo acusou o golpe precisamente porque o povo revoltoso ocupou a praça. Nenhuma ocupação da praça acontecerá sem fluxo de energia revolucionária digital. Nenhum trabalho de rede substituirá a ocupação da praça.
7. As ocupações de 2011 revelam que a luta pelo cancelamento da dívida está para o capitalismo cognitivo assim como a luta pelo salário estava para o capitalismo industrial. Esta tese do autonomista italiano Gigi Roggero vai, me parece, ao centro da questão. Em todas as revoltas do mundo ocidental, tanto nos EUA como na Europa, as multidões rebeladas vão se dando conta de que nenhum aumento salarial ou mesmo garantia de emprego significará muito num contexto em que a manipulação dos títulos da dívida e a especulação com os capitais migrantes têm o poder de colocar toda uma economia nacional de joelhos. Passamos do que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar—aquele momento moderno no qual grandes aparatos (igreja, escola, fábrica, exército, hospital, prisão) constituíam um sujeito sob perene vigilância—àquilo que Gilles Deleuze chamaria de sociedade de controle, na qual a dominação já se dá através de formas móveis, imateriais, virtuais, em constante deslocamento, para as quais o modelo já não é a prisão (embora esta continue a cumprir o seu papel), mas a corporação. O capitalismo da era da sociedade disciplinar se baseou na produção e na propriedade. No capitalismo da sociedade de controle, a produção já foi exportada para alhures (China, Tailândia, Terceiro Mundo), enquanto o capital se dedica a vender serviços e comprar ações. A sociedade disciplinar era o espaço do sujeito vigiado. A sociedade de controle é o espaço do sujeito endividado. A chamada crise das hipotecas nos EUA não foi o resultado de um erro tangencial ou lateral ao sistema. Foi a expressão da lógica mesma, mais profunda, desse sistema, que só pode se reproduzir através da teia da dívida imaterial, impagável. Por isso, as massas autônomas, de Madri a Nova York, do Cairo a Atenas, vão se dando conta, no interior da luta, de que se reafirma um princípio revolucionário por excelência: não se pode mudar nada sem, antes, mudar tudo. Esse axioma marxiano é, hoje, mais verdadeiro que na época de Marx.
* Agradeço a Giuseppe Cocco, Bruno Cava e Alexandre Nodari por referências bibliográficas e interlocução na preparação deste artigo. Ele é parte integrante da edição 105 da Revista Fórum.
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