fevereiro 27, 2012

"Intelectuais orgânicos?", por Manolo & João Bernardo

Intelectuais orgânicos?


PICICA: "No final de 1984 um de nós veio pela primeira vez ao Brasil dar aulas e fazer palestras. O PT tinha nascido há poucos anos, a CUT tinha sido fundada no ano anterior, o regime militar estava na agonia, ninguém duvidava de que haveria proximamente grandes mudanças, mas quais? E era inevitável que nas palestras, por vezes nas aulas também, me perguntassem o que tinha a dizer acerca dos intelectuais orgânicos. A minha resposta era invariavelmente a mesma, e deixava todos insatisfeitos, se não incomodados. “Intelectuais orgânicos? No Brasil há um intelectual orgânico, um único, Adoniran Barbosa”. Mas fui de um extremismo excessivo. Se fosse hoje, agregaria nomes como Zé Keti, Bezerra da Silva e outros que tais.

O que os universitários de esquerda hoje fazem é a desapropriação dos intelectuais orgânicos populares
Por Manolo & João Bernardo
Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada

Adoniran Barbosa,
Torresmo à Milanesa.
Passa Palavra publicou uma vez uma fotografia, tirada por uma colaboradora do colectivo, excelente fotografia, como algumas outras que publicámos. Quatro pessoas numa ocupação em São Paulo. Olhem bem.
fotografia
A organização da imagem parece uma réplica das fotografias burguesas e pequeno-burguesas do século XIX. As figuras principais ao meio, sentadas, ladeadas por figuras acessórias, de pé. Por detrás, no lugar onde nas antigas fotografias havia uma cortina que marcava o espaço do retrato, como um palco num teatro com o seu pano de fundo, existe nesta fotografia a lona preta da barraca. Mas aqui ela marca dois espaços. Para a frente, o espaço da ocupação, onde estão os quatro personagens e que os define e lhes dá significado e valor. Para trás, o espaço urbanizado da classe dominante, as torres de bons apartamentos com vista panorâmica. Quem lá mora pode olhar para tudo em conjunto e para nada em particular. Mas do lado de cá da lona preta podemos observar a particularidade das coisas.
O sofá é velho, ninguém vai levar um sofá novo para uma ocupação. Mas foi escolhido com cuidado, cores sóbrias, padrão moderno. E sentados no sofá estão uma mulher e um homem; um casal, porque os corpos se encostam. Na verdade é o homem que se encosta à mulher, à vontade, ocupando espaço, a perna projectada para o lado, o rei do terreiro, seguro de si, corpo seco, musculatura firme, cabeleira rebelde e olhos de quem já viu muita coisa. E ela, cruzando as pernas quando ele as tem abertas, nesse contraste define o seu carácter, reservada, sem espalhafato, um sorriso tenso, um pouco de circunstância — o homem tem-no natural e de todos os dias — menos à vontade, mais inquieta, e decerto com razão, porque talvez saiba melhor do que ele o custo das coisas.
De um e outro lado as figuras de pé não ignoram que, para aquele retrato, são secundárias e assim se comportam. Atenuando a expressão do rosto, o homem da esquerda vale esteticamente pela grande mancha branca da blusa, que se destaca da lona preta e que, continuada na blusa da mulher e na cadeira e no balde, estabelece desde o canto superior esquerdo até ao canto inferior direito uma diagonal que, em contraste com as restantes horizontais, estrutura a imagem e lhe dá o dinamismo. Este homem da esquerda tem na cabeça um boné com o logotipo de uma rede de lojas de produtos baratos, que decerto não conta como clientes os habitantes das torres ao fundo, e numa mão segura instrumentos de trabalho, um martelo e uma pequena prancha, ilustrando de cima a baixo o consumo e a produção. O homem da direita mostra, sobre o peito nu, um crucifixo de madeira. Um figura a prática, o outro, a ideologia. E na margem da fotografia, mal tapada por um contraplacado, uma gaiola de pássaro, porque uma ocupação, se é para valer, é um lar ambulante, e se o casal tem um pássaro, sem ele não é uma família.
Quatro pessoas, tão diferentes, juntas. A partir desta fotografia um ficcionista poderia traçar a vida de cada uma, descobrir-lhes um passado, inventar-lhes um futuro, mostrar como os seus caminhos se cruzaram e como nasceu daí a ocupação. Esta fotografia hipnotiza porque vê-se nela aquilo que dá a força aos movimentos, a variedade de pessoas, cada qual com a sua trajectória, as suas certezas e as suas fragilidades, os saberes e as ignorâncias, e tudo isto se conjugando e potencializando numa teia de relações sociais em que de repente se descobre que agora uma pessoa vale muito mais do que sempre pensou que valia.
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Mas esta fotografia hipnotiza por outro motivo também, pelo que ela não mostra. A fotografia não mostra os dirigentes nem as conversações com os vereadores nem as reuniões de direcção nem os acordos nem o germinar de dissidências. Sem isto não se tece a rede de relações que permite constituir um movimento, mas sem isto não se opera também aquela subtil transferência de lugares, dos sofás rotos para as cadeiras de sedes e daí para as poltronas de prefeituras, sem a qual é impossível as lutas serem assimiladas, recuperadas e contidas pela ordem dominante. A dialéctica entre a formação de militantes e a constituição de novas elites é o que se vê e não se vê nesta fotografia.
Àquela transferência de lugares e a esta dialéctica os chefes políticos e os professores universitários chamam: formação de intelectuais orgânicos.
No final de 1984 um de nós veio pela primeira vez ao Brasil dar aulas e fazer palestras. O PT tinha nascido há poucos anos, a CUT tinha sido fundada no ano anterior, o regime militar estava na agonia, ninguém duvidava de que haveria proximamente grandes mudanças, mas quais? E era inevitável que nas palestras, por vezes nas aulas também, me perguntassem o que tinha a dizer acerca dos intelectuais orgânicos. A minha resposta era invariavelmente a mesma, e deixava todos insatisfeitos, se não incomodados. “Intelectuais orgânicos? No Brasil há um intelectual orgânico, um único, Adoniran Barbosa”. Mas fui de um extremismo excessivo. Se fosse hoje, agregaria nomes como Zé Keti, Bezerra da Silva e outros que tais.
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intelectuais-5Mas, afinal, que vem a ser um intelectual orgânico além de uma expressão infelizmente equívoca?
Escrevendo na dura rotina da prisão, sob severas limitações da censura, Antonio Gramsci inovou no marxismo ao voltar-se para a assim chamada “superestrutura”. Não se tratou de diletantismo acadêmico, mas de uma necessidade prática: compreender a formação das vanguardas dentro da luta anticapitalista e sua relação com uma base social que, a partir da experiência dobienio rosso de 1919-1920, havia demonstrado sua capacidade de organizar autonomamente tanto sua luta quanto a própria produção econômica, mas que posteriormente servira de base ao fascismo.
Gramsci talvez tenha sido um dos primeiros no campo socialista a conceber os “intelectuais” como uma camada de indivíduos que dá homogeneidade e consciência de sua própria função a grupos sociais nascidos de uma função essencial no mundo da produção econômica. Assim, para Gramsci, o empresário capitalista teria criado consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, um novo direito etc. etc., e as tarefas desempenhadas por esta camada seriam, no mais das vezes, “especializações” de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz. A base do novo tipo de intelectual estaria, ainda segundo Gramsci, na educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, e seu modo de ser consistiria num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”; da “técnica-trabalho”, eleva-se à “técnica-ciência” e à “concepção humanista histórica”, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” (as expressões aspeadas são do próprio Gramsci).
Malgrado seu enorme esforço de síntese, Gramsci errou o alvo.
Em primeiro lugar, porque “camadas” de indivíduos dentro de uma classe são tão condicionadas pelas circunstâncias de tempo e lugar quanto as próprias classes onde se situam tais indivíduos; ao tentar encontrar características comuns entre intelectuais de épocas tão distintas quanto, digamos, o Império Romano e a Revolução Industrial, Gramsci inseriu um elemento trans-histórico na estratificação social de cada época e embaralhou, por tabela, classes sociais existentes em modos de produção fundamentalmente diferentes. Em segundo lugar, porque, como consequência deste anacronismo, ao eliminar tais especificidades históricas Gramsci tornou-se incapaz de conceber, mesmo como hipótese, ondequando e como estariam dadas, e quais seriam, as condições para que os intelectuais deixassem de ser uma simples “camada” de indivíduos dentro de uma classe e se tornassem uma classe social de pleno direito. Em terceiro lugar, porque Gramsci, infelizmente, não se estendeu muito a respeito de quão próximos poderiam estar intelectuais oriundos de classes diferentes — reflexão que bem poderia ter como ponto de partida sua própria tentativa de aliança com o líder proto-fascista Gabriele D’Annunzio.
Diante de tais problemas, a distinção entre “intelectuais tradicionais” e “intelectuais orgânicos”, outro elemento desta teoria, perde o sentido, pois é a própria definição de “intelectual”, aqui, a perder fundamento. A teoria dos intelectuais formulada por Gramsci, tão arguto em outros assuntos, não é outra coisa além da tentativa honesta, porém inconclusa e talvez por isto equívoca, de uma reflexão sobre aformação das vanguardas de uma classe em processos de luta, e de sua posterior transformação numa elite.
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Fica a pergunta: será que Gramsci conheceria, pelo menos de ouvido, as teses de Jan Waclaw Makhaiski sobre a intelligentsia enquanto classe capitalista e o marxismo enquanto doutrina específica desta intelligentsia capitalista? Em que medida teria Gramsci tentado responder a Makhaiski? Mesmo que não conhecesse aquelas teses, podemos talvez considerar as teses de Gramsci sobre os intelectuais orgânicos como uma resposta às teses de Makhaiski sobre a intelligentsia.
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intelectuais-3Ora, a referência a uma classe social só adquire sentido através da referência a uma ou mais classes opostas. A dialética da exploração e da opressão liga intimamente as características e a estrutura interna das várias classes, e sob este ponto de vista a luta entre as classes consiste na transformação contraditória e conjunta de todas elas. Mas o mesmo não se passa com a noção de elite, que pode ser definida de maneira independente, enquanto estrato privilegiado. A estrutura interna de uma elite nem se relaciona com a de suas tradicionais opositoras, as massas, pois os teóricos das elites definem a massa precisamente pela sua incapacidade de organização própria; nem está em relação necessária com a estrutura interna de qualquer outra elite, porque a elite governa sozinha, e se aparece uma nova é apenas para liquidá-la e substituí-la.
Esta distinção entre os conceitos de elite e de classe social não se limita a ter repercussões ideológicas e reflete diretamente problemas práticos. Na sua ação anticapitalista os trabalhadores jamais deixaram de enfrentar dois tipos de inimigos, um que se apresenta a partir do exterior e o outro que é gerado no próprio seio da classe trabalhadora. Todos os fracassos do socialismo, sem qualquer exceção, têm resultado da sua incapacidade de agir conjuntamente em ambas as frentes de luta. E assim, ao mesmo tempo que os trabalhadores fazem recuar, dispersam ou aniquilam os capitalistas já existentes, eles têm repetidamente permitido que as burocracias geradas no movimento operário alimentem a classe dos gestores e inspirem novo fôlego ao capitalismo.
Nesta dialética, as elites do socialismo, em vez de darem corpo a um novo conceito sociológico independente do conceito de classe, constituem um dos elementos geradores de uma classe, a classe capitalista dos gestores. Mas a teoria das elites é incapaz de explicar, ou sequer de conceber, esta transformação dos membros de uma elite em membros de uma classe. Os autores que pretendem que o fenômeno da mobilidade social invalida, ou pelo menos compromete, a teoria das classes e justifica a aplicação de uma perspectiva de elites confundem classe com casta. É precisamente a mobilidade social que permite inserir o fenômeno das elites no quadro geral das classes, pois a formação de uma elite no interior de uma classe inferior corresponde à projeção desta elite para a classe superior. A classe superior é alimentada periodicamente por essas novas elites, como aliás Marx indicou numa passagem muito conhecida de O Capital. As elites só têm sentido porque são elites de uma classe, ou elites de uma classe transformando-se em componentes de outra classe. O conceito de elite padece, portanto, de uma assimetria profunda, porque as elites capitalistas continuam a ser capitalistas, enquanto as elites proletárias abandonam a sua classe de origem.
Se dissemos anteriormente que a reflexão de Gramsci sobre os intelectuais é inconclusa, foi não apenas por reconhecermos que seu desenvolvimento foi travado pela prisão e pela morte, mas porque reflete um momento em que a tensão permanente entre a construção de relações sociais novas pelos movimentos em luta e a recuperação destas novas relações sociais, sob formas deturpadas, por burgueses e gestores para a manutenção e desenvolvimento do capitalismo — ou seja, a ambiguidade estruturante do movimento operário — entrava em nova fase. Fundiam-se progressivamente, de um lado, um corpo de gestores oriundo do Estado e dos grandes trustes, e de outro um corpo de militantes acostumados a compartilhar com estes gestores o poder político nos parlamentos e o poder econômico nos sindicatos então já incorporados à institucionalidade capitalista. Estes gestores ainda não dispunham de força suficiente para enfrentar os proprietários dos meios de produção — burgueses, acionistas etc. — mas podiam influenciar os rumos do movimento operário, que já fazia tal enfrentamento.
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O problema da relação entre vanguardas e elites na luta de classes não é meramente teórico, mas uma questão prática de extrema importância para todos quantos procuram organizar-se para lutar contra o capitalismo, em qualquer de seus aspectos.
intelectuais-6É difícil duvidar de que existam vanguardas, qualquer que seja o nome que se lhe dê (“minoria ativa”, por exemplo). Em qualquer luta há os que são mais ativos, mais articulados, mais faladores, os mais bem relacionados, os que assumem mais tarefas, os que dispõem de mais tempo e recursos, os que conhecem na prática certas técnicas de mobilização. Esta é uma evidência, basta olhar. Um fato político de tamanha relevância para as lutas anticapitalistas só pode ser negado por quem quer que já se haja estabelecido enquanto vanguarda, mas prefira disfarçá-lo para tentar garantir privilégios; ou por quem pretenda, com razão, submeter aqueles primeiros a um rigoroso e necessário controle, negando sua existência na teoria na vã tentativa de fazê-los desaparecer na prática com suas palavras mágicas.
É difícil também duvidar de que os dois problemas principais que as técnicas da organização política revolucionária se destinam a resolver são o estabelecimento de uma coesão no seio da vanguarda e a formação de canais de relacionamento entre a vanguarda e as massas. Assim, enquanto os leninistas concentram a atenção no aperfeiçoamento dos canais que permitem veicular as ordens das vanguardas, ou seja, no aperfeiçoamento das formas de enquadramento das massas sob a autoridade das vanguardas, é preciso preocupar-se acima de tudo com o reforço da capacidade de ação das massas, que lhes permita exercer o máximo de controle sobre as vanguardas e, tanto quanto possível, suplantá-las ao exercer diretamente o máximo de atividade. Daí a necessidade de reduzir progressivamente a distinção entre vanguarda e massas, através de sua indicação direta pela base; de sua substituição a qualquer momento em que as próprias “bases” o desejem; de impedir a cristalização de determinados indivíduos como “lideranças naturais”, através da rotação frequente de funções; da gestão cada vez mais direta dos processos de luta pelo corpo social dos trabalhadores.
Mas é igualmente difícil crer que o fato de certas pessoas constituírem a vanguarda de uma dada luta ocorrida em dado lugar em dado momento deva servir de pretexto para as converter em vanguarda de todas as lutas em todas as circunstâncias. Esta eternização das vanguardas é um dos mecanismos fundamentais da sua conversão em elites e, portanto, da sua passagem para a classe dos gestores.
Nos processos revolucionários o autoritarismo e o centralismo são sempre um sintoma de recuo, não deavanço, e resultam do fato de a base ter por um motivo ou outro se tornado incapaz de conduzir autonomamente as lutas. A burocratização começa sempre pela base de um movimento, nunca pelo seu topo. Por mais que os dirigentes queiram às vezes assumir uma postura independente das bases, consagrar os seus privilégios momentâneos como um direito próprio e instituir um tipo de ditadura sobre as bases que os legitimam, jamais o poderão fazer se a luta mantiver um dinamismo coletivo e os trabalhadores comuns se conservarem ativos e vigilantes. Mas se os obstáculos que forem surgindo, o desânimo e as desilusões contribuírem para dissolver os elos coletivos e para transformar a atividade em passividade, então manifesta-se e desenvolve-se a burocratização, que constitui sempre uma forma de isolamento dos dirigentes.
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Tudo isto é posto de lado na formação de intelectuais orgânicos. Se a própria definição de intelectual em Gramsci é equívoca, porque anacrônica e por demais abstrata, não custa recordar que sua obra chegou ao Brasil não através do exemplo de sua prática — como foram, em épocas diferentes, Errico Malatesta e Che Guevara — mas por sua obra escrita, trazida pelos exilados que retornavam.
No Brasil, infelizmente e como sempre, a novidade veio de Paris. Na primeira metade da década de 1970 a ala renovadora, moderada e conciliatória do Partido Comunista Francês ressuscitou os escritos de Gramsci, considerando-o um precursor de Togliatti e do eurocomunismo. Na outra extremidade deste Partido Louis Althusser, enquanto se preparava mentalmente para vir a ser um filósofo pirómano e uxoricida, dirigia a artilharia da Escola Normal Superior contra o humanismo atribuído a Gramsci e contra a teoria da praxis, o que na realidade significava uma reacção do comunismo granítico contra um comunismo disposto a adoptar a democracia parlamentar. A polémica era esta e os seus dois termos pareciam ser os únicos existentes.
O complexo Gramsci que existiu de fato foi transformado pelos emigrados brasileiros de torna-viagem num Gramsci unívoco, monolítico, empregue como “autoridade teórica” tanto nos debates internos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na virada da década de 1970 para a de 1980 quanto como legitimador de certas práticas do autonomismo que no Brasil então nascia. Em suma, o Gramsci militante e suas contradições deram lugar ao Gramsci dos intelectuais, em particular dos acadêmicos de esquerda.
Zé Keti num graffiti
Zé Keti num graffiti
Também no exílio parisiense, um de nós sentia-se entalado entre os dois pólos daquela polémica, porque por um lado era estruturalista e anti-humanista, por outro lado defensor de uma teoria da praxis, e como sair do dilema sem bater muitas vezes com a cabeça em muitas paredes? Curiosamente, foi naqueles mesmos anos que apareceu lá em casa um disco com Vinícius, Maria Betânia e não me lembro quem mais. Betânia cantava Carcará e alguém cantava a Nêga Dina. Fiquei fascinado por esta música, desde então a conheço de cor, embora só muito mais tarde, há poucos anos, viesse a saber que ela era de Zé Keti e quem era Zé Keti. Mas, de tudo, o que mais me impressiona nesta canção é o verso final, «sou um marginal brasileiro», com a última palavra cantada pausadamente, «bra-si-leiro». É claro que «brasileiro» não está ali só para rimar com «paradeiro», mas para converter um caso individual numa situação geral. O marginal não era só ele, era toda uma categoria social de um país, e é isto que torna o músico Zé Keti um intelectual orgânico. A mesma passagem do individual ao colectivo que existe no teatro grego, onde as tragédias pessoais se explicam pelo destino marcado nas relações sociais, existe na Nêga Dina e no seu «marginal brasileiro».
O que os universitários de esquerda hoje fazem, com os cursos para o MST e outros movimentos, é a desapropriação dos intelectuais orgânicos populares. Vão dizer aos explorados que — ora, bolas! — eles são explorados; às mulheres e aos negros — que novidade! — que são cotidianamente oprimidos; e por aí vai. Pouco importa a esses universitários a forma como as pessoas comuns compreendem a exploração e a opressão a que são sujeitados e como as articulam com problemas gerais. Vale mais subjugar este conhecimento prático a esquemas acadêmicos pré-moldados do que fazer dele a base para a luta. Trata-se, a nível ideológico, do processo de assimilação e recuperação de militantes de uma classe para outra.
adoniran-3
Adoniran Barbosa num graffiti
Aplicando aqui os modelos de análise estruturalista de que um de nós tanto gosta, a função do intelectual académico não é só elaborar teorias. É, no mesmo gesto, esconder que existem teorias elaboradas por intelectuais não académicos. A função explícita do discurso académico é uma, que bem conhecemos; mas a sua função implícita é ocultar que existem outros discursos, elaborados noutros níveis e com outras regras. Os estruturalistas diriam, e eu também, que esta segunda função é mais decisiva do que a primeira.
A isto resiste o intelectual orgânico Adoniran Barbosa no Torresmo à Milanesa, quando se retrata, a ele e a uns colegas, «sentados na calçada» e, mudando subitamente a perspectiva para a arrogância das elites, Adoniran acrescenta ironicamente que estão a conversar sobre «coisas que nós não entende nada».
Foi estes intelectuais orgânicos populares que nos fez lembrar aquela fotografia, os que sabem falar com discernimento sobre «coisas que nós não entende nada».

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