PICICA: "É que os índios que hoje freqüentam as universidades levam com eles para dentro da instituição um conjunto de conhecimentos. Foi assim com os Ticuna, Kokama, Kambeba e Kaixana da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) que se formaram no final do ano passado no Alto Solimões e que não foram obrigados, como o pajé Lourenço, a apagar de sua memória o que sabiam."
UM CERTO PAJÉ LOURENÇO
José Ribamar Bessa Freire
26/02/2012 - Diário do Amazonas
Na
cerimônia de formatura nesta quinta-feira, 23 de fevereiro, de alunos
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), havia seis
índios, cuja permanência no ensino superior foi apoiada pelo projeto
Rede de Saberes, o que me fez lembrar um certo pajé indígena que viveu
na Amazônia no século XVIII. Fiquei pensando no destino diferente desses
jovens índios e do pajé Lourenço, cuja história merece ser lembrada.
Era assim que se chamava: Lourenço, um sábio, que na sua comunidade de origem "acumulava funções de caráter religioso e médico".
Ele conhecia as plantas e ervas medicinais da Amazônia, cada uma por
seu nome, sabia para que serviam, e usava esse saber para, com ervas e
rezas, curar os enfermos. Por isso, foi preso como “feiticeiro”,
em 1737, não se sabe onde, provavelmente no rio Japurá – acredita-se –
já que ele chegou a Belém do Pará escoltado por uma tropa de resgate,
que naquele ano havia subido aquele rio recrutando índios para o
trabalho compulsório.
Quem
nos fala do pajé é o historiador e padre português Serafim Leite
(1890-1969) na sua monumental Historia da Companhia de Jesus no Brasil,
de dez tomos e mais de cinco mil páginas. Ele fuçou os arquivos europeus
durante algumas décadas, os de Portugal, da Itália e da Espanha, entre
outros.
Apoiado em fragmentos de documentos, Serafim Leite reconstitui a vida de "um tal Lourenço", o pajé, que viveu 21 anos sempre como serviçal no Colégio de Santo Alexandre, em Belém, “com muito bom procedimento". O padre Lucas Xavier, em seu Diário de 1756-1760 citado por Serafim Leite, dá um atestado de boa conduta ao pajé: "Não era homem de mulheres nem de aguardente: só uma vez o vi um tanto alegre, que é muito para índios”.
Durante
mais de duas décadas, Lourenço ficou proibido de exercer a pajelança.
Escondeu o seu saber. No lugar de curar e de rezar, foi carregar água
para o lavatório dos padres – “raras vezes faltava nele”. A outra obrigação era “cuidar do horto do Colégio, plantando legumes, cheiros e flores”. Lourenço morreu no dia 27 de setembro de 1758 e foi enterrado na própria igreja do Colégio de São Alexandre, “debaixo do estrado da banda de São Miguel”, sepultando com ele os saberes que foi proibido de exercitar.
Serafim
Leite diz que registrou o caso do pajé Lourenço para ilustrar um ponto
que ele acha importante de esclarecer, relacionado a dois tópicos
geradores de tensão: de um lado, os conflitos entre as religiões
indígenas versus o catolicismo apostólico e romano e, de outro, as
contradições entre o uso da língua portuguesa e das línguas indígenas, o
pajé era proibido de falar a sua língua materna.
O
jesuíta português, que em sua adolescência viveu no Rio Negro, onde
trabalhou como seringueiro e conviveu com os índios, tenta justificar o
fato de aquele homem, que era um sábio indígena – “dotado de boas qualidades”
– acabasse se transformando em um obscuro auxiliar doméstico. Não
consegue esconder seu incômodo de historiador do século XX com o destino
daquele pajé do século XVIII, que foi obrigado a abdicar de seus
saberes e de sua língua para limpar penico dos missionários.
Por
isso, Serafim Leite tenta justificar a ação missionária, argumentando
que essa foi a alternativa mais correta para o Brasil moderno,
alternativa que para ele excluía as demais:
-
“O que seria melhor para o Brasil, continuar o pajé a ser o primeiro ou
o segundo de sua Aldeia, mas pagão, ou o homem útil, trabalhador,
morigerado, cristão em que se trocou? Se a primeira alternativa fosse a
mais útil para a civilização brasileira, a conclusão seria que se deviam
arrasar os arranha-céus do Rio de Janeiro e as fábricas de São Paulo e
as Universidades do Brasil, para voltarmos todos à choupana da selva, a
pescar à flecha e a contar pela lua...”
Ou
seja, já que não se pode explodir os edifícios e fábricas, que se toque
fogo, então, nas malocas. Da mesma forma que os colonizadores de ontem e
de hoje, o padre e historiador não admite a possibilidade de, no
Brasil, conviverem a aldeia e a cidade, a maloca e o arranha-céu, o
conhecimento tradicional do pajé e o conhecimento acadêmico da
Universidade, a língua portuguesa e as línguas nativas, a medicina
indígena e a medicina ocidental. Não via que uma necessariamente não
exclui a outra. Ignorava a diversidade, a convivência dos diferentes.
Por
causa dessa intolerância, o pajé Lourenço teve de abdicar de sua
própria religião e de sua língua. Sua história está cheia de lacunas:
não se tem informações sobre sua identidade, etnia, língua materna,
lugar preciso de origem, nem detalhes sobre sua relação com os padres da
Companhia. Sabe-se, no entanto, que foi condenado como feiticeiro e que
seu saber não foi reconhecido como legítimo.
As
universidades brasileiras, ao longo da sua curta existência, trataram
os índios como o Colégio Santo Alexandre, no Pará, tratou o pajé
Lourenço: excluindo-os, a eles, suas línguas e seus saberes. Agora, a
presença dos índios está beneficiando as instituições de ensino
superior, que ganham muito com a presença deles em seus corredores,
salas de aula, bibliotecas e laboratórios.
Essa
abertura tem trazido, em alguns casos, mudanças significativas na grade
curricular, com introdução de novas disciplinas e a criação de novos
cursos como de agroecologia, línguas indígenas, educação ambiental e
outros. Na Universidade Federal de Minas Gerais, o Curso de Formação
Intercultural de Professores abrigou mais de cem índios, que foram
submetidos a um vestibular, onde seus conhecimentos tradicionais tinham
algum peso.
É
que os índios que hoje freqüentam as universidades levam com eles para
dentro da instituição um conjunto de conhecimentos. Foi assim com os
Ticuna, Kokama, Kambeba e Kaixana da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA) que se formaram no final do ano passado no Alto Solimões e que não
foram obrigados, como o pajé Lourenço, a apagar de sua memória o que
sabiam.
Foi
assim também com os seis índios formados pela UEMS há três dias:
Indianara Machado (Enfermagem), Leosmar Antonio e Mary Jane Souza
(Ciências Biológicas), Jailson Joaquim (Física), Noemi Francisco
(Letras-Inglês) e Genivaldo Vieira (Direito).
Esse
dado historicamente novo representa uma tentativa de convivência de
culturas, línguas e saberes tão diferentes, mas todos eles legítimos.
Tudo isso baseado num princípio claro e cristalino que Marcos Terena
gosta de enunciar: "Posso ser o que você é, sem deixar de ser quem sou".
Fonte: TAQUIPRATI
Um comentário:
Bravoooo!
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