fevereiro 24, 2012

"O Artista, de Michel Hazanavicius", por Ana Al Izdihar

O Artista, de Michel Hazanavicius
O filme é um delicioso desfile de referências ao cinema, do uso de grandes focos aos rostos marcantes dos atores e seus diversos talentos
por Ana Al Izdihar (23/02/2012)
em Cinema

Enviado por  em 08/02/2012
Hollywood, 1927. George Valentin, um astro de filmes mudos, teme que a chegada do cinema falado faça com que ele seja esquecido.
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PICICA: "Você pode até se perguntar por que um filme mudo nos dias de hoje, e eu respondo: por que não? No que toca à narrativa, é somente um recurso diferente para contá-la, e, ainda que antigo, acaba se tornando moderno. E, para o espectador, é um excelente exercício para testar o quanto estamos mal acostumados, com tudo mastigado no cinema. Ao (re)ver que as legendas não expressam tudo o que os atores estariam dizendo e fazendo, você pode se dar o prazer em construir a narrativa junto com os personagens."


Tudo o que eu tentasse dizer aqui sobre esta fantástica aventura de Michel Hazanavicius poderia se transformar em spoiler, pois seus inúmeros detalhes são o próprio filme. Então, preferi deixar o prazer de descobrir todos estes pormenores aos cinéfilos e abordar outra linha de análise do filme.
Este é um filme mudo que fala sobre o cinema mudo na década de 1920. Conta a história de George Valentin, um ator fictício, um astro da época que vê a chegada do filme falado passar como um trator sobre ele e suas convicções. Em meio a sua recusa em se adaptar aos novos tempos, conhece a eminente atriz Peppy Miller, que faz a transição do cinema mudo ao falado de maneira fácil e ascende rapidamente.
O Artista é um interminável e delicioso desfile de referências ao cinema, desde o uso de grandes focos (e sem zooms) de Griffith, das alternâncias da visão do cineasta, do artista e dos espectadores, aos rostos marcantes dos atores e seus diversos talentos – como dançar, além de atuar. E é clara a homenagem a Rodolfo ValentinoErrol Flynn e outros na pele do personagem George Valentin, interpretado por Jean Dujardin, que tem tudo para ser o próximo ator sexy symbol da atualidade.
Você pode até se perguntar por que um filme mudo nos dias de hoje, e eu respondo: por que não? No que toca à narrativa, é somente um recurso diferente para contá-la, e, ainda que antigo, acaba se tornando moderno. E, para o espectador, é um excelente exercício para testar o quanto estamos mal acostumados, com tudo mastigado no cinema. Ao (re)ver que as legendas não expressam tudo o que os atores estariam dizendo e fazendo, você pode se dar o prazer em construir a narrativa junto com os personagens.
A jornada de George Valentin é a fascinante representação de todo herói que passa por um momento de prova, porém com o brilho e glamour do mundo do cinema. A persona de George – aquilo que Carl Jung define como a máscara que vestimos para nos adaptar ao meio social –, totalmente forjada no ego do artista, servia bem ao seu ambiente, enquanto lhe mantinha no altar seguro do sucesso, da fama e da bajulação que envolve um grande astro.
É interessante pensar nas palavras que se usa para designar um ator/atriz famoso, a saber, em português duas versões para “star” em inglês: astro ou estrela. Sabemos já a partir de nossa cultura formada de espectador que nem sempre um grande astro ou uma grande estrela é exatamente sinônimo de grande artista. Podemos atrelar o termo ao cotidiano de um astro/estrela mais do que ao seu talento propriamente, tal como: ser rico, ter tudo o que deseja, ter fãs que o rasgam nas ruas, ter muitos assessores, obter privilégios, ganhar prêmios, servir de modelo de moda, comportamento e beleza estética. A paparicação em torno de um astro e uma estrela parece fazer parte de todo o pacote com a etiqueta de “sou um artista”.
George estava confortável na sua posição de astro reconhecido e aclamado, totalmente identificado com a persona que havia criado, acreditando piamente que ele era o criador e a criatura de si mesmo. Em seu mundo mudo, ele era o rei. Mas a vida é dinâmica e fala. E a mudança no meio ambiente começa a fazer o reino de George ruir, empurrando-o de volta à sua evolução, estacionada no altar que havia erguido para si mesmo. Quando a roda da fortuna recomeça a girar, George sai de seu confortável topo em direção à lama de sua existência, passando por todos os estágios da descida, revendo todos os aspectos de sua vida que haviam sido negligenciados por causa de seu ego inflamado.
Ao longo do seu processo de individuação – de acordo Jung, o processo de desenvolvimento que nos leva a amadurecer, integrar e se distinguir na coletividade, mas não de modo isolado –, George Valentin é instigado por vários “avisos” da vida a fim de que tome consciência do seu ser real. A começar por uma atração por outra moça, que só o faz perceber que seu casamento já não era mais satisfatório. Passando por um sonho extremamente significativo em que percebe que o mundo tem som e que o futuro do cinema não poderia ser outro a não ser o de começar a falar. Até chegar ao ponto em ver que sua própria sombra o abandona. Sombra na psicologia analítica se refere ao centro do inconsciente pessoal, que representa, além de nossas forças instintivas, também aquilo que reprimimos em nome da persona que impomos ao mundo.
George se afunda na depressão, por seu mundo não mais servi-lo como estava acostumado, e segue teimando contra as mudanças que a vida lhe cobra. Por isso sua sombra foge, pois ele nem mesmo consegue enfrentar, e talvez se lembrar, aquilo que enterrou dentro de si. Precisaria ir ainda mais fundo passando pelo fogo, a destruição do orgulho (ego) indo ao limite da vida para finalmente se reerguer em outro momento, como outra pessoa, ou seja, resgatar o seu serartista, porém com diferente roupagem.
Obviamente, se seguirmos a alquimia do indivíduo a sacudida por qual passa George é catalisada por seu anjo da guarda, Peppy Miller – sua anima, o nosso lado feminino –, que ao mesmo tempo representa o novo que ele rejeita e sua salvação. É a pessoa que o vê como o grande artista que é e não desiste dele, mesmo quando ele próprio não acredita mais em si.
E o “mundo” começa a falar para e com George assim que ele se rende e abraça o novo. Ele mesmo já tem a capacidade de acrescentar seu talento renovado e a vida não somente fala com ele, mas sim canta para que ele dance e viva o que realmente é: não um artista, mas O Artista.



Ana Al Izdihar

Mestra em Letras pela UFSC, na área de crítica literária e cinema.
Fonte: Amálgama

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