março 05, 2012

12 observações sobre Oswald de Andrade / Manifesto antropofágico


12 observações sobre OA

1. Vivemos no seio de uma cultura messiânica, apesar de Oswald de Andrade ter prognosticado o declínio irrevogável do Messianismo em 1950. E mesmo depois da chamada "onda vermelha" ter se propagado pela América Latina, parecendo transformar antigas estruturas e estabelecer novas relações entre a multidão e o poder, voltamos a perguntar com espanto: "Quem poderia prever, quem ousaria sonhar que o Messianismo em que se bipartiu a religião do Cristo (Reforma e Contra-Reforma) iria medrar no terreno sáfaro das reivindicações materialistas do Marxismo?".

2. Recentemente, em resposta às nossas "reivindicações materialistas", e para o nosso governo, a presidenta Dilma Rousseff definiu "desenvolvimento sustentável" como "crescimento acelerado de nossa economia para poder distribuir riqueza". Certamente, podemos ouvir algum eco marxista na resposta da presidenta: reverberando a ideia hegeliana de história e o conceito darwinista de evolução, o desenvolvimento apareceria para o marxismo como processo dado e intransitivo, que acontecia aos coletivos humanos de maneira irreversível e espontânea. A partir do terceiro quartel do século XX, no entanto, essa ideia sofreu transformações significativas. A história é conhecida: em 1949, em seu primeiro proferimento como presidente dos EUA, Truman lança o chamado Point Four Program, segundo o qual as nações desenvolvidas deveriam se esforçar por "tornar os benefícios de nossos avanços científicos e de nosso progresso industrial disponíveis para a melhoria e o crescimento das áreas subdesenvolvidas". O desenvolvimento consolida assim sua imagem como processo transitivo, atuado pela organização dos homens, e o seu novo par, o negativo dialético "subdesenvolvimento", ocupa doravante o lugar de estado de coisas dado, não atuado, natural. Posteriormente, no famoso relatório "Our Common Future" (1988), a World Commission on Environment and Development, constituída pela Assembléia Geral das Nações Unidas, assentará a ideia segundo a qual "a humanidade tem a capacidade de tornar o desenvolvimento sustentável (...). O conceito de desenvolvimento sustentável realmente implica limites - não limites absolutos, mas limitações impostas pelo presente estado da tecnologia e da organização social sobre os recursos ambientais, e pela habilidade da biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas. Mas a tecnologia e a organização social podem ser manejadas e melhoradas para abrir caminho para uma nova era de crescimento econômico. (...) A pobreza não é apenas um mal em si mesma (...). Um mundo no qual a pobreza é endêmica será sempre suscetível a catástrofes ecológicas e outras".

3. Como uma ideia poderia ter adquirido uma consistência tão duradoura, ao ponto de ter sido posta à prova sucessivas vezes desde o século passado, nunca resultando no que dela se esperava, mas, ainda assim, evocando a esperança de emancipação e salvação, o fim da pobreza? Apenas enquanto parte de um culto religioso, baseado no sequestro daquilo que Oswald de Andrade chamou de "sentimento órfico", pôde a ideia de desenvolvimento ser universalizada de tal forma, se erigindo ao redor do mundo como uma espécie de promessa messiânica. A promessa efetua uma ligação entre o passado e o futuro, e estrutura assim a ansiedade e a expectativa no presente estado de desigualdade e opressão. A promessa é o que enxerta a transcendência futura em um estado atual, determinado como presente a ser superado, marcado pela falta decorrente da expulsão do paraíso - momento chave de nossa antropo(tecno)logia: "esta, na verdade, é a origem de nossa religião do "desenvolvimento"". O Messianismo encontra assim o que talvez seja o seu avatar contemporâneo mais importante, que projeta a ilusão de que a riqueza produzida pela servidão poderá ser partilhada igualmente.

4. Agora dessacralizado, o Messianismo permanece associado à multiplicação do mal no mundo, para, paradoxalmente, alimentar a esperança de purgá-lo. A administração da miséria e da desigualdade empurra os homens para formas de servidão de onde eles podem ouvir as promessas de uma outra vida - pois, "sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo". Essa vida prometida é o que os mantém trabalhando em um mundo onde a lei se institui como coação e o Patriarcado segue tranquilamente produzindo o patrimônio (propriedade e herança).

5. No entanto, enquanto o Patriarcado, alimentado pelas promessas do Messianismo, ameaçava unificar todo os mundos, sob o sol das Américas os fugitivos do deserto monoteísta puderam experimentar os sinais da vida prometida, transvalorados em Utopia. As utopias, "consequência da descoberta do novo mundo e sobretudo da descoberta do novo homem, do homem diferente", são fruto do encontro entre "o errático e o imaginoso, a aventura e a América". Nesse encontro, enquanto aqueles que aqui chegavam vislumbraram a possibilidade de uma outra sociedade (ou, ainda hoje, "a lembrança viva de que é possível viver de uma outra forma", como disse um famosos sertanista ao comentar a resistência peristente de povos em isolamento voluntário na fronteira entre o Brasil e o Peru), aqueles que aqui estavam talvez viram a realidade de uma natureza diferente. De qualquer forma, as utopias, "caravelas ideológicas desse novo achado - o homem como é, simples e natural", são também o meio pelo qual a filosofia se torna política, e assim "leva ao mais alto ponto a crítica de sua época".

6. Para levar ao mais alto ponto a crítica de nossa época, Oswald contrapôs a realidade utópica do Matriarcado à expansão temporal do Patriarcado. "Aquele é o regime do Direito Materno e este, o do Direito Paterno. Aquele tem presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos, dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios". A Utopia oswaldiana parte da urgência de uma retomada das "virtudes do Matriarcado, principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as suas formas mais obscuras e lavadas até a glória de Wall Street". Segundo Oswald, para reintegrar a posse de nosso destino, "será preciso criar uma Errática, uma ciência do vestígio errático, para se reconstruir essa vaga Idade de Ouro, onde fulge o tema central do Matriarcado".

7. "Reconstruir essa vaga Idade de Ouro".  A Errática, enquanto ciência e experiência, supõe o tempo intensivo dos povos "a-históricos". O Matriarcado nunca deixou de se contra-efetuar como possibilidade utópica, da mesma forma como as economias da dádiva permanecem articulando os espíritos das coisas trocadas, mesmo no interior de nossas "economias em desenvolvimento". O Matriarcado é resíduo imanente de um tempo no qual já tínhamos tudo aquilo que perdemos. "Tínhamos a justiça codificação da vingança". "Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro". A antropofagia sempre esteve implicada na fabricação do tempo, desde sua inspiração nos grupos tupi, dentre os quais a vingança antropofágica produzia uma memória voltada para o futuro - "nos tupi, a memória estará a serviço de um destino e não de uma origem, de um futuro e não de um passado". A temporalidade de um "mundo não datado", que "desestabiliza la misma distribuición temporal (nuevo/viejo)", apresenta-nos como possibilidade o Matriarcado de uma "vaga Idade de Ouro", contra-efetuada pela Errática. Enquanto a "cultura messiânica" se realiza nas antropotecnologias produtoras de um tempo sujeitado - no qual "o relógio mecânico inaugura a civilização da máquina, que é a do trabalho e do tempo contado" - a Errática possibilitaria a reintegração da posse do tempo, o arrebatamento do mundo das mãos da civilização do relógio: "o mundo não datado. Não rubricado".

8. "O que fazer?", pergunta o comunista. A experiência e o tempo, tergiversa o antropófago. Pois de pouco adiantaria opor à filosofia messiânica ideias distintas, outro sistema político, outro messianismo, outra religião (sublimações antagônicas). A retomada do mundo se faria por um procedimento - "roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros". Opor ideia a ideia, forma a forma, é ação coletivizante, é buscar novas formas de agrupamento, novas maneiras de coletivizar a alternativa. A sedição antropofágica não supõe uma nova forma de viver, porque em certo sentido, a forma de vida é o dado, nunca é proposta ou arquitetada. O antropófago não propõe uma nova solução para a nossa equação, e sim um novo começar para um velho axioma, dado no tempo intensivo do mito. "Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia". Tentar opor ao sistema hegemônico outro conjunto de ideias, outra promessa, é reiterar o Messianismo. Pode ter sido essa a razão do malfadado destino de certas comunidades alternativas: elas desconstruiam um poder para construir outro em seu lugar, por vezes mais opressor, mais perverso - baixa antropofagia. Elas deixavam intocada a forma de produção da sociedade subjacente - i.e., o princípio segundo o qual todos deveriam trabalhar para pensar da mesma forma, partilhar o mesmo ideal, dividir o mesmo objeto, se juntar ao redor das mesmas coisas. É o profundo antropocentrismo messiânico: pensar que a ordem é conferida pelo homem ao mundo, e que o que nos faz viver junto depende de nossa ação e de nossa vontade, de nosso controle. O elogio da práxis e a teologia do trabalho. Trata-se do mesmo antropocentrismo que fundamenta o pensamento crítico, herdeiro do kantismo, que insiste em trocar todo "é assim" (axioma) por "nós pensamos/representamos assim" (equação). À ideologia coletivizante somente se pode opor uma experiência diferenciante. A "transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável".

9. "Do valor oposto ao valor favorável". Para sair do presente estado de negatividade em que nos encontramos, fértil em promessas messiânicas, mundo do homem civilizado, ou subdesenvolvido, "é preciso ouvir o homem nu", ou o "homem natural tecnizado". "O que me interessa é só a retirada dessa civilização ocidental, na direção moral e mental do nosso índio". Esse procedimento, aparentemente negativo, é transvalorado em positividade utópica: "a transfiguração do tabu em totem. Antropofagia". A proibição não se transforma em lei, mas em exogamia. A ausência de roupas não é então expressão da falta, é possibilidade, uma vez que a roupa é o que se interpõe entre o homem e a verdade: "o que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido". O homem nu é o cogito antropofágico, a multiplicidade formadora de uma ciência do vestígio errático, radicalmente antikantiana. Pois mesmo depois que os descobrimentos se fizeram acompanhar pelas ciências de um universo infinito e pelas utopias, que "desviaram a Europa do seu egocentrismo ptolomaico", Kant soube criar a ilusão de que fazer as coisas orbitarem ao redor das nossas formas da intuição seria fazer em metafísica o que Copérnico fizera em astronomia. A "natureza da faculdade de intuição" se interpõe definitivamente entre o homem e a verdade. A origem de todo relativismo, de todo multiculturalismo: a moral do homem vestido. Baixa antropofagia. Uma verdadeira revolução copernicana interromperia o movimento centrípeto provocado pelo centro de gravidade do Patriarcado: como afirmou Clastres, "é tempo de buscarmos outro sol e de nos pormos em movimento". É preciso recuperar a experiência. "Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada".

10. A memória (fonte do costume) e a metafísica da seleção dos pretendentes são procedimentos da antropotecnia messiânica. O que distingue o homem dos demais animais? O que distingue uma vida que vale ser vivida, de uma vida vegetativa? O que distingue um homem bom de um homem mau? Trata-se, desde de Platão, de uma seleção das linhagens. A antropofagia, diferentemente, constrói as gentes de verdade através da "encorporação", ou de um "viver nos outros".

11. Afirmar a experiência, a "existência palpável da vida", ou suprimir "as ideias e outras paralisias", significa perturbar a hierarquia postulada entre as ideias e a vida, entre a cabeça e o resto do corpo: "rítmica de comunión sin cabeza, sin complejos, sin rostro", "uma concepção matriarcal do mundo sem Deus". Ou, como escreveu Nietzsche, "não estar à espera de longínquas, desconhecidas beatitudes, bençãos e graças, mas viver de tal sorte que queiramos viver ainda uma vez e queiramos viver assim para a eternidade". "A terrena felicidade", contra o sequestro do sentimento órfico na formação da cultura brasileira.

12. "Somos a utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do norte. Somos a caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a bandeira estacada na fazenda". O encontro transformado em utopia estabelece uma aparente oposição entre a utopia messiânica (eugênica) e a utopia realizada (imanência da devoração). Ou, por outra, a oposição entre o monoteísmo do deserto, calcado na teologia da necessidade, e o politeísmo plástico dos trópicos, onde os deuses fabricam e são fabricados. O ateísmo com deus, que segundo Oswald de Andrade seria aceito no então nascente século XX, é um retorno ao politeísmo plástico. Mas é também o que possibilita o sequestro do sentimento órfico, que se transfere hoje para a religiosidade política (o messianismo desenvolvimentista ou o santuarismo político) ou para a espetacularização dos esportes e do entretenimento. Temos que resgatar o sentimento órfico, reconduzi-lo ao cotidiano, roubar a tecnologia das mãos do espetáculo. Não para produzir mais uma utopia prometida, selecionista e eugênica, mas para resistir, "desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo".


(Para essa bricolagem foram devorados os seguintes textos:

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1995.

ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Organização e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura. São Paulo: Globo; Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Os dentes do Dragão. (entrevistas). 2. ed. Pesquisa,
organização, introdução e notas de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

AGUIAR, Gonzalo. Por una ciencia del vestigio errático. Buenos Aires: Editora Grumo, 2010.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela, VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Vingança e temporalidade: os Tupinambá. in: Cultura com aspas. São Paulo: Cosac y Naify, 2009.

CHAMIE, Mário. Caminhos da carta: uma leitura antropofágica da carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Funpec Editora, 2002.

CLASTRES, Pierre. Copérnico e os selvagens. in: A sociedade contra o estado. Tradução Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. in: Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva, 2000.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso. São Paulo: ed. 34, 1997.

LUDUEÑA, Fabián. La comunidad de los espectros. Buenos Aires: Miño Dávila, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos de 1881. in: Nietzsche, Coleção Os Pensadores. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

NODARI, Alexandre. La única ley del mundo. in: AGUIAR, Gonzalo. Por una ciencia del vestigio errático. Buenos Aires: Editora Grumo, 2010.

RIST, Gilbert. The history of development. Tradução Patrick Camillier. New York: Zed Books, 2008.

SAHLINS, Marshall. The sadness of sweetness, in: Current Anthropology, vol.37, n.3, junho/1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva, in: O Sopro 51, maio/2011. 

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.)

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