PICICA: "Preciado se
apresenta como autora de uma política do desejo, e encarna, ela mesma, a
figura de uma ativista política do desejo. Dessa dupla injunção sai um
trabalho cujo princípio é a retirada da natureza como dado ordenador do
pensamento sobre a sexualidade, questão debatida por um conjunto de
pensadores nos quais Preciado se inspira, ao mesmo tempo em que deles se
afasta.
Preciado fez sua graduação em teoria de
arquitetura na Universidade de Princenton e sua pós-graduação em
Filosofia e teoria de gênero na New School for Social Research, em Nova
York. Voltou para a Europa – mais exatamente, para a prestigiada Escola
de Altos Estudos – a convite do filósofo Jacques Derrida, de quem foi
aluna no final dos anos 1990. Hoje leciona na Universidade Paris 8 e
dirige o projeto “Tecnologias de gênero” no Museu de Arte Contemporânea
de Barcelona. Sua inserção universitária é feita a partir do
questionamento dos cânones acadêmicos, assim como seu debate com a
teoria feminista se dá numa perspectiva de crítica. É nesse ponto que
vale a pena situá-la não apenas como uma aluna prodígio de Derrida –
ênfase muito comum nas pequenas biografias que circulam sobre ela – mas
sobretudo como uma herdeira de algumas posições mais radicais do
pensamento pós-estruturalista francês."
A política do desejo
Artigo escrito por Carla Rodrigues, publicado originalmente na revista Cult.
Um pênis de borracha, um vibrador, uma
prótese, um suplemento. Um consolo, como se diz na linguagem popular. É a
partir desse objeto que Beatriz Preciado começa aquilo que se tornou
seu texto mais famoso e mais instigante, o Manifesto contrassexual:
práticas subversivas de identidade sexual, tradução livre para o título
de seu primeiro livro, lançado em 2000 na França, onde ela vive e
trabalha; na Espanha, onde nasceu, em 1970; e nos EUA, onde se formou. O
pênis de borracha é evocado como noção conceitual para cumprir função
análoga à mais-valia no pensamento de Karl Marx. “Tomando partido da
estratégia de Marx, esta pesquisa sobre sexo toma como eixo temático a
análise de algo que pode parecer marginal: um objeto de plástico que
acompanha a vida sexual de certas lésbicas e de certos gays queers, e
que até agora foi considerado como uma ‘simples prótese inventada como
paliativo para a incapacidade sexual das lésbicas’. Estou falando do
dildo”, escreve ela. Dildo é um termo em inglês que poderia ser
traduzido por consolo em português, mas também em espanhol, e a decisão
de Preciado de mantê-lo em inglês vem da sua possibilidade de dupla
significação como designação para pessoa estúpida e desprezível. Repete,
aqui, o gesto de ressignificação de queer – de ofensivo a
transgressivo.
Dali em diante, virá aquilo que chamo de
política do desejo, em dois sentidos possíveis do termo. Preciado se
apresenta como autora de uma política do desejo, e encarna, ela mesma, a
figura de uma ativista política do desejo. Dessa dupla injunção sai um
trabalho cujo princípio é a retirada da natureza como dado ordenador do
pensamento sobre a sexualidade, questão debatida por um conjunto de
pensadores nos quais Preciado se inspira, ao mesmo tempo em que deles se
afasta.
Preciado fez sua graduação em teoria de
arquitetura na Universidade de Princenton e sua pós-graduação em
Filosofia e teoria de gênero na New School for Social Research, em Nova
York. Voltou para a Europa – mais exatamente, para a prestigiada Escola
de Altos Estudos – a convite do filósofo Jacques Derrida, de quem foi
aluna no final dos anos 1990. Hoje leciona na Universidade Paris 8 e
dirige o projeto “Tecnologias de gênero” no Museu de Arte Contemporânea
de Barcelona. Sua inserção universitária é feita a partir do
questionamento dos cânones acadêmicos, assim como seu debate com a
teoria feminista se dá numa perspectiva de crítica. É nesse ponto que
vale a pena situá-la não apenas como uma aluna prodígio de Derrida –
ênfase muito comum nas pequenas biografias que circulam sobre ela – mas
sobretudo como uma herdeira de algumas posições mais radicais do
pensamento pós-estruturalista francês.
Quando se vale de um pênis de borracha
como objeto central de seu discurso contra a naturalização da diferença
sexual, Preciado recorre a dois termos a partir dos quais se pode
aproximá-la de Derrida: suplemento e prótese. É no contexto da
publicação de Gramatologia, em 1967, que o filósofo franco-argelino
funda aquilo que Patrice Magnilier chama de um “verdadeiro momento
filosófico”, ao qual a filosofia do século 20 voltará incessantemente. É
ali que, entre outras questões, Derrida propõe repensar a noção
tradicional de escrita como mero suplemento da fala, esta sim,
imediatamente ligada à verdade, para pensar a ordem do discurso como
suplemento ou prótese. “A contrassexualidade recorre à noção de
suplemento, como foi formulada por Derrida, e identifica o pênis de
borracha como o suplemento que produz aquilo que supostamente deve
completar”, postula Preciado no manifesto.
Quando uso a expressão “ordem do
discurso” estou buscando uma aproximação com outro filósofo marcante na
trajetória do pensamento de Preciado, Michel Foucault. Deste francês ela
se vale para pensar uma definição biopolítica dos corpos e a produção
do gênero, do sexo e da sexualidade como técnicas de domínio criadas na
modernidade, com as quais Preciado quer romper. Faz disso uma estratégia
intelectual, sem dúvida, mas também uma forma de pensamento encarnado,
expresso no “próprio” corpo, aspas aqui para indicar a impossibilidade
dessa “propriedade” tão tida como natural.
Estamos de volta ao pênis de borracha e
sua simbolização de suplemento, daquilo que interroga a propriedade do
masculino como lugar de posse e propriedade, e automaticamente, nas
formas opositivas, lançaria o feminino como lugar de ausência e
impropriedade. Se, como bem observa Marie-Hélène Bourcier no prefácio do
manifesto, é a partir de deslocamentos que o pensamento de Preciado se
escreve, esses pares cuja integridade parecia se manter ainda intacta
são o alvo de seus deslocamentos. Geográficos, linguísticos, temáticos.
Seja como ativista, seja como artista, seja como acadêmica, interessa a
Preciado interrogar a produção de identidades sexuais e a normalização
da heterossexualidade, projeto que a Teoria queer na qual ela se inclui
pretende confrontar.
Voltamos ao pênis de borracha, agora na
aproximação da noção de mais-valia no pensamento marxista. Que não se
enganem os críticos de Preciado ou da Teoria queer – e são muitos –,
porque não há ingenuidade nessa analogia. Ao contrário, de fato a
crítica ao capitalismo e a sua força normalizadora de corpos,
comportamentos e discursos será o motor do pensamento da autora.
Capitalismo aqui entendido como estrutura de subordinação a um projeto
heterossexual, normativo, de corpos a serviço da produção e da
reprodução, projeto fundamentado em um ideal de natureza questionado
pelo pênis de borracha como noção política mobilizadora.
Contrassexualidade passa a ser, assim, uma forma de repensar a
naturalidade dos corpos, e por isso apresentada em forma de um manifesto
– a exemplo dos manifestos das vanguardas artísticas do início do
século 20 –, que postula a inautenticidade da origem, a impropriedade do
próprio.
Chega aqui o momento de indicar uma das
singularidades da obra de Preciado. Irreverente e transgressora, ela
encarnou o questionamento sobre identidade de gênero numa experiência em
que se fez cobaia. Durante duzentos e trinta e seis dias, se
auto-aplicou testosterona, o hormônio produzido pelos testículos, sem
seguir nenhum tipo de protocolo médico prévio. “Com esta intoxicação
voluntária, quis mostrar que meu gênero não pertence nem à minha
família, nem ao estado, nem à indústria farmacêutica. É uma experiência
política”, escreve ela no livro em que narra o que chamou de droga
sexual. Os efeitos também foram políticos. Com a testosterona, sentiu-se
mais lúcida, enérgica, desperta, e passou a se perguntar por que esses
efeitos devem ser considerados “masculinos”.
“Tomei a testosterona não para me tornar
homem, mas para acrescentar uma prótese molecular à minha identidade
transgênero”, relata em Viciada em testosterona: sexo, droga e
biopolítica na era da farmacopornografia, tradução livre para Testo
Junkie: Sex, Drugs and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era,
publicado em 2008 na França e ampliado na edição americana, em que
Preciado desenvolve a noção de farmacopornografia. Trata-se de um
mecanismo ampliado dos dispositivos disciplinares identificados por
Foucault. Para vigiar o corpo, observa ela, já não há mais necessidade
de hospital, quartel ou prisão, porque, com os hormônios sintéticos, as
técnicas de controle se instalam no corpo, ferramenta definitiva da
vigilância.
“O corpo tem um espaço de extrema
densidade política, é o universal no particular. Trata-se de resistir à
normalização da masculinidade e da feminilidade em nossos corpos, e de
inventar outras formas de prazer e de convivência”, argumenta Preciado,
cujas imagens do rosto com certo ar andrógino, marcado por um fino
bigode, confirmam a ideia de uma política encorpada.
Herdeira muito próxima da filósofa Judith
Butler – apenas quatorze anos mais velha que Preciado –, um ponto as
separa. Preciado bebe numa fonte anarquista espanhola que molda de
maneira diferente sua entrada no debate sobre gênero. Nesse ponto, se
pode voltar pela última vez ao pênis de borracha, o dildo inspirador do
Manifesto contrassexual. Quando Preciado nasceu, em 1970, o debate da
segunda onda feminista já ia avançando em torno da necessidade de
distinção entre sexo/gênero, instrumento teórico estratégico para
apontar a fabricação de uma diferença sexual que fundamentava o
ontológico no biológico. Nos anos 1990, quando Preciado ainda está
começando seus estudos em torno da questão, Butler publica o seu hoje
consagrado Problemas de gênero, marco da necessidade de questionamento
da distinção sexo/gênero como ainda ligada ao modelo heteronormativo.
Neste contexto, Preciado chega para propor uma contrassexualidade que
afirma o desejo não mais limitado ao prazer sexual proporcionado aos
órgãos reprodutores – que fundamentariam a diferença sexual –, mas uma
política do desejo capaz de sexualizar todo o corpo, lugar de
resistência a toda normatividade.
Fonte: Colunas Tortas
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