PICICA: "Ao longo de 25 anos, a saúde pública brasileira foi consolidada sobre um processo fragmentado que hoje é um entrave à ampliação das conquistas e à própria sobrevivência do sistema"
O SUS além dos limites territoriais
Ao longo de 25 anos, a saúde pública brasileira foi consolidada sobre um processo fragmentado que hoje é um entrave à ampliação das conquistas e à própria sobrevivência do sistema
O Sistema Único de Saúde (SUS) não avançará sem uma profunda reforma institucional que sobreponha as questões regionais aos interesses locais, políticos e pessoais. A partir de um olhar ampliado sobre assuntos ligados ao território e aos cidadãos, surgiu a proposta de dividir o País em regiões de saúde.
“É importante considerar as especificidades regionais nas tomadas de decisões, na criação de políticas e na governança das ações do sistema público brasileiro de saúde”, afirma a professora da Universidade de São Paulo e coordenadora da pesquisa Região e Redes Ana Luiza D`Ávila Viana. Mais detalhes sobre a importância da regionalização do SUS na entrevista a seguir.
Regiões e Redes – Quais os sinais de que o SUS necessita de um processo de regionalização para avançar mais?
Ana Luiza Viana – Nos últimos 25 anos dois fenômenos emergiram fortemente na política de saúde, com impactos diferenciados. O primeiro foi a descentralização da formulação, gestão e implementação da política de saúde. O outro, o crescimento do número e tipos de atores envolvidos com a oferta e gestão de serviços. Isso incrementou o papel e a importância de atores não governamentais na implementação de políticas e ações, e também fez surgir diversos tipos de empresariamento da gestão e oferta de serviços.
Ao mesmo tempo, as ideias gerencialistas [com ênfase nas ações de melhor custo-benefício] para a governança operacional do sistema de saúde foram difundidas e passaram a ter centralidade na política.
Esses dois fenômenos foram contemporâneos e estratégicos para a conformação de um sistema nacional de saúde e introduziram ciclos diferenciados ao longo da trajetória de implementação do SUS. O ciclo que cobriu os anos 1990 foi voltado ao incremento da descentralização com foco nos municípios. O dos anos 2000 deu maior ênfase na estratégia de regionalização, a fim de superar os entraves advindos das grandes desigualdades na oferta de serviços, porém com pouco impacto na organização funcional do sistema de saúde.
O resultado final de ambos os ciclos é um processo de fragmentação intenso da capacidade de oferta e de decisão e planejamento das ações e serviços de saúde.
O sistema é fragmentado segundo diferentes lógicas orquestradas em microespaços decisórios permeados por interesses locais, em detrimento de uma ação pautada pelos princípios da universalidade.
RR – Quais são os objetivos centrais da regionalização no âmbito do SUS? O que se pretende?
ALV – A criação de uma capacidade institucional regional na saúde com dupla função. Uma, inicial, voltada ao planejamento regional e à coordenação territorial das ações e serviços a partir da lógica regional, com criação de novos instrumentos de planejamento. Outra, voltada para superação, ou neutralização, de interesses corporativos dos mais diversos na prestação dos serviços de saúde, por meio de uma governança regional baseada em solidariedade, democratização da decisão e cooperação intergovernamental.
RR – Como será construída essa governança?
ALV – Governança não é feita somente de termos, acertos e contratos administrativos. É principalmente um fato da cultura construída socialmente, e, cujo resultado final pode ser, ou não, a constituição da noção de bem coletivo institucional, a ser desfrutado por todos em um espaço territorial.
A criação de uma capacidade institucional regional também pressupõe inovações política e administrativa, tecnológica e cognitiva para o desenvolvimento de uma capacidade de coordenação regional dos recursos disponíveis mais avançada e coerente.
RR – Os sistemas de saúde nacionais que inspiraram a construção do SUS apresentam alto grau de descentralização da gestão, políticas e planejamento em saúde. Mas ao longo dos 25 anos de construção do sistema público de saúde brasileiro por que o Brasil não estabeleceu estratégias de regionalização? É essa uma necessidade do nosso tempo? Uma nova fase do processo de implantação do SUS?
ALV – São inúmeras razões, sendo que uma das mais importantes se relaciona com a perda de dinamismo do Estado, com a falta da perspectiva de desenvolvimento e planejamento regional e de uma combinação virtuosa entre bens sociais de caráter universal e crescimento econômico.
Na ausência desse planejamento e dessa visão do papel estratégico do Estado para a construção de uma cidadania, a política de saúde passou a ser assumida pelos municípios isoladamente, associada com políticas federais focalizadas para níveis de assistência e públicos específicos.
O subfinanciamento da saúde é um fenômeno decorrente desse processo. A pressão e interesses locais podem colocar um gasto em saúde com recursos municipais bem acima da média nacional. Ao mesmo tempo, em outros territórios/municípios o gasto também pode ficar bem abaixo da média nacional. Os dois fenômenos decorrem de um fato comum, a ausência de organização territorial com base em necessidades. Porém, impactam de forma muito diferente os ciclos de vida das duas populações.
RR – A Constituição Federal apresenta a saúde como responsabilidade dos três níveis de governo. O que diferencia a descentralização que temos hoje na gestão e planejamento das propostas recentes defendidas por pesquisadores no tema regionalização?
ALV – A descentralização como foi feita, isto é, sem integração regional e com fraco poder do Estado na oferta de serviços de maior complexidade, além dos vazios assistenciais em grandes áreas do território brasileiro, possibilitou o crescimento da oferta privada. O Estado financiou indiretamente o crescimento da oferta privada por meio de renúncia fiscal, e permitiu que as operadoras repassassem aos consumidores os custos da assistência em planos coletivos.
Outro problema é a fraca regulação do setor privado nos espaços locais onde costuma exercer uma influência muito grande nas decisões políticas. Criam-se espaços informais, muitas vezes agregados e organizados por segmentos corporativos de extenso poder na esfera local.
É justamente essa reorganização institucional que pode capitanear um novo tipo de presença do Estado na área social e de saúde e um novo tipo de regulação.
RR – Quais são as principais questões políticas que limitam os avanços dessa discussão?
ALV – Uma visão estreita do desenvolvimento entendido apenas como acesso a bens via consumo individual ou coletivo. É importante relacionar desenvolvimento com cidadania, participação e democratização da vida política.
O avanço da discussão setorial depende sempre de uma visão mais integrada do País, de concepções estratégicas que abarquem todas as áreas e que relacionem modelos econômicos com propostas sociais.
Nos anos 1980, a construção de uma visão estratégica para saúde possibilitou a criação de uma frente política de grande envergadura, cujo resultado se expressou na Constituição Federal de 1988.
Foram tempos excepcionais que forjaram políticas cruciais. O processo de redemocratização acelerou a formação de visões integradas entre o econômico e o social, visando a construção de uma nova relação Estado, mercado e sociedade.
A política de regionalização da saúde depende hoje de uma visão intersetorial. O início dessa nova concepção emergiu em um período de mudança na institucionalidade da política social, quando se desenhava uma proposta mais abrangente de desenvolvimento voltada à resolução das iniquidades nas cinco macrorregiões brasileiras.
A política de investimento na saúde recente reflete isso. Porém, não veio articulada ao processo de criação de novas instâncias decisórias regionais e tampouco ao incentivo à criação de uma institucionalidade regional capaz de oferecer respostas aos problemas sociais de forma integrada.
Fonte: Região e Redes
Foto: Rocha / Abrasco
Fonte: Cebes
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