PICICA: "Ser contemporâneo é conseguir ver a sua própria época. O
filósofo italiano Giorgio Agamben problematiza três pontos que vejo
como capital para caracterizarmos um local privilegiado do qual possamos
ver o contemporâneo. O primeiro ponto está relacionado com o
anacronismo, o segundo ponto trata de um jogo de luz e sombra e o
terceiro é uma relação com o arcaico. Todos estes três pontos vão
distinguir o que é estar na atualidade, caracterizando-a de uma forma
transhistórica, da qual teríamos então condições de fazer perguntas
como: Quem são os contemporâneos em qualquer momento histórico? Quem são os contemporâneos da pós-modernidade?"
Sobre o Contemporâneo: Devemos cortar a língua dos mortos ou deixá-los falar ?
Ser contemporâneo é conseguir ver a sua própria época. O
filósofo italiano Giorgio Agamben problematiza três pontos que vejo
como capital para caracterizarmos um local privilegiado do qual possamos
ver o contemporâneo. O primeiro ponto está relacionado com o
anacronismo, o segundo ponto trata de um jogo de luz e sombra e o
terceiro é uma relação com o arcaico. Todos estes três pontos vão
distinguir o que é estar na atualidade, caracterizando-a de uma forma
transhistórica, da qual teríamos então condições de fazer perguntas
como: Quem são os contemporâneos em qualquer momento histórico? Quem são os contemporâneos da pós-modernidade?
Para ser
contemporâneo Agamben marca um movimento, é necessário ter uma posição
com relação ao presente, um anacronismo, estar um pouco fora de foco. De
acordo com Agamben: “é verdadeiramente contemporâneo aquele que não
coincide perfeitamente com aquele, nem se adeque a suas pretensões e é,
portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir
desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de
perceber e de apreender o seu tempo”. Trata-se de uma posição singular
em que se está no tempo, o aceita, mas também se afasta dele, exatamente
para obter um olhar mais privilegiado. Nesta primeira definição
positiva, também achamos o seu negativo, ou seja, sabemos o que não é
contemporâneo – não o é aquele que está totalmente imerso em seu tempo,
pois não tem a possibilidade de ver as luzes e as sombras de uma época,
de compará-las com outras.
O segundo ponto que Agamben coloca é uma reflexão sobre o que ele chama de relação de luz e sombra, luz e obscuridade.
Se, em primeiro lugar, ser contemporâneo era apenas não estar
totalmente sincronizado com o presente, para então termos um olhar
privilegiado do mesmo, agora podemos ver algumas luzes e sombras. É este
o motivo do anacronismo, poder sair de um ponto somente de sombra ou de
luz. Contudo, Agamben faz uma leitura do contemporâneo respondendo
indiretamente a pergunta: Quem são os contemporâneos da pós-modernidade? Pois
as Luzes para Agamben se tratam também do projeto do iluminismo, a
força da razão na sua tentativa de esclarecer tudo. Mas sabemos que o
projeto iluminista fracassou em grande parte, a razão mostrou o seu lado
frio. A tarefa do pós-moderno para Agamben seria ainda ver os danos que
esta luz causou, e para isso teríamos que ver o cinza, o obscuro
mostrado nos campos de concentração, o obscuro das minorias. Entretanto,
se nos perguntarmos Quem eram os contemporâneos do Iluminismo? O
jogo de luz e sombra, o jogo de poder agora é outro. A luz opressora
neste momento é eclesiástica e não iluminista. Luzes e sombras são
metáforas, vê-las é enxergar relações de poder, e por isso se torna
necessário não deixá-las somente para uma análise do pós-moderno. E
talvez seja por isso que Agamben não cita explicitamente o iluminismo,
ele simplesmente nos induz a pensá-lo. A dualidade da luz e da
obscuridade permanece então transhistórica e como possibilidade de
compreensão do que é ser contemporâneo em diversas épocas.
A última relação que saliento sobre
Agamben é a respeito do arcaico, do início, da origem. Pois é desta
relação com o arcaico que me surge a pergunta: Devemos cortar a língua dos mortos ou deixá-los falar? A
resposta de Agamben para esta pergunta seria um sim bem sonoro,
deixe-os falar, pois o conhecimento do presente para ele se dá via
arqueologia. É necessário deixar a língua do cadáver intacta, para que
escutemos a sua voz. É necessário ver o passado, ou melhor, é necessário
sentir o passado, que na verdade não passou, ele está em nós como uma
criança ainda permanece na vida psíquica do adulto. A arqueologia de
Agamben diz respeito à seleção de brinquedos, de cenas de uma infância,
de ferramentas, que o adulto deve recordar para entender o seu presente.
O filósofo Michel Foucault brincava com a história, ao escrever livros
como “O Nascimento da Clínica”, “História da Loucura” e “Vigiar e
Punir”. Tratava-se de rever o passado de forma seletiva, buscar
obscuridades e então ter um conhecimento que operasse no presente
(história presentista). Contudo, outra atitude possível é a de cortarmos
a língua dos nossos mortos – enterrá-los de forma a não mais ouvir um
eco. E talvez esta atitude hoje em dia seja a mais comum, o vencedor na
história mutila o vencido. E diante da história dos vencedores temos
outras histórias menores, outras formas possíveis que estão caladas,
outras perspectivas de realidade sepultadas. Torna-se imprescindível
redimir os mortos, para a nossa própria redenção.
Dizíamos que ser contemporâneo é ver a
sua própria época, mas neste momento nos achamos em um modo bem peculiar
de estar com relação ao contemporâneo. Pois, este afastamento que nos
permite ver o obscuro, as sombras, assim trazendo e produzindo uma
memória, também cinde o tempo em momentos, o nosso afastamento e o nosso
presente. E voltamos a este presente, mas não voltamos sozinhos e sim
com algumas vozes em off. Com este anacronismo talvez não seja
mais possível deixar de dar atenção para aquelas vozes, para algumas
falas. Neste momento, o ser contemporâneo ganha um caráter político, ao
filiar-se a determinadas vozes, a determinados mortos, pois uns estão em
covas rasas e outros cadáveres quase eternizados no mel.
Fonte: Razão Inadequada
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