PICICA: "Nicolau Sevcenko é professor titular do
Departamento de História da Universidade de São Paulo e professor de
História Cultural e Literatura Brasileira na Universidade de Harvard.
Filho de imigrantes russos, o historiador cresceu no bairro operário da
Vila Prudente, de concentração eslava. Nos trajetos urbanos que desde
cedo teve de fazer entre casa, trabalho e estudos, construiu uma relação
visceral e um ponto de vista descentrado sobre a capital paulista, como
nos conta na entrevista. É essa perspectiva, entre outras visadas sobre
a cidade e os processos históricos, que Nicolau Sevcenko exprime em
seus livros, Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983); A revolta da vacina (1983); Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992) e A corrida para o séc. XXI: no loop da montanha-russa (2001).
A entrevista deu continuidade à conferência A Rede e o Labirinto: experiências da imaginação refratária na cultura dos anos 1950 e 1960,
organizada pelo NAU e pelo Departamento de Sociologia em novembro de
2011. A conversa fiou-se por vários temas que a palestra e seus livros
abordam com maestria, como tecnologia, urbanização, cultura e arte
trazendo um diálogo seminal entre as ciências humanas e vários insights
às etnografias que se debruçam sobre a metrópole. Convidamos o leitor a
apreciar esse encontro."
Nicolau Sevcenko, desgarrado e genial
– 15 de agosto de 2014
Em entrevista autobiográfica, historiador falecido quarta-feira relaciona sua obra, dedicada à resistência cultural dos excluídos, a sua origem, periférica e incerta
Por Alvaro Katsuaki Kanasiro e Luis Felipe Kojima Hirano, no PontoUrbe
Nicolau Sevcenko é professor titular do
Departamento de História da Universidade de São Paulo e professor de
História Cultural e Literatura Brasileira na Universidade de Harvard.
Filho de imigrantes russos, o historiador cresceu no bairro operário da
Vila Prudente, de concentração eslava. Nos trajetos urbanos que desde
cedo teve de fazer entre casa, trabalho e estudos, construiu uma relação
visceral e um ponto de vista descentrado sobre a capital paulista, como
nos conta na entrevista. É essa perspectiva, entre outras visadas sobre
a cidade e os processos históricos, que Nicolau Sevcenko exprime em
seus livros, Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983); A revolta da vacina (1983); Orfeu extático na metrópole: São Paulo nos frementes anos 20 (1992) e A corrida para o séc. XXI: no loop da montanha-russa (2001).
A entrevista deu continuidade à conferência A Rede e o Labirinto: experiências da imaginação refratária na cultura dos anos 1950 e 1960,
organizada pelo NAU e pelo Departamento de Sociologia em novembro de
2011. A conversa fiou-se por vários temas que a palestra e seus livros
abordam com maestria, como tecnologia, urbanização, cultura e arte
trazendo um diálogo seminal entre as ciências humanas e vários insights
às etnografias que se debruçam sobre a metrópole. Convidamos o leitor a
apreciar esse encontro.
Você poderia falar um pouco da sua
trajetória de vida a partir dos espaços urbanos em que você viveu e como
isso, de certo modo, está presente na sua formação intelectual?
Nicolau: Eu cresci lá
naquele contexto da zona leste, no bairro da Vila Prudente, num
subdistrito chamado Quinta das Paineiras. O nome é bonito, mas era um
subdistrito industrial. É um enclave que ficava entre a Indústria Ford, a
indústria Vemag e a indústria General Motors. Era uma área de altíssima
industrialização ao longo da várzea do Tamanduateí, porque ele serviu
como esteio da estrada de ferro, a Santos-Jundiaí, portanto conexão
direta com o Porto de Santos. Foi o que fez com que as indústrias
exportadoras se assentassem ao longo da linha do trem, e aí surgiram
bairros operários vinculados à população ligada a essas indústrias. A
minha família transitou amplamente pelo leste industrial, de início
estava na Mooca, daí para a Vila Zelina e depois veio para a Quinta das
Paineiras. A razão da migração foi porque originalmente a população
eslava estava concentrada na região da Mooca. E depois foi
progressivamente se ambientando na área mais alta: a Vila Alpina, Vila
Zelina, Vila Tolstói; que se encheram daquelas igrejas com torres de
estilo oriental, em forma de cabeça de alho. Se você olhasse em para
qualquer colina mais alta, em cima dela haveria uma igreja com aquela
arquitetura típica das igrejas ortodoxas da Europa Oriental; parecia que
você estava num trecho da Europa Oriental. A língua mais comum, embora
houvesse gente vinda de vários países da Europa Oriental, a língua
geral era o russo. Se você não falava russo não conseguia comprar pão
ali, o que me fez crer, por muito tempo, que eu estava na Rússia. Cai na
realidade, quando fui para a escola e voltei correndo pra minha mãe,
chorando e dizendo: “me puseram numa escola de estrangeiros”, e pela
primeira vez ouvi: “não, estrangeiro é você, estrangeiros somos nós”.
Mas então, essa experiência de nascer e viver
nesse bairro operário é uma experiência de ter essa percepção
excêntrica da cidade de São Paulo. O centro pra mim era uma coisa
distante, era o que hoje chamamos de Centro Velho da cidade de São
Paulo. Era um lugar cheio de atrações. Atrações porque tinha espaços
públicos de qualidade, uma arquitetura monumental, uma concentração de
gente de diferentes classes sociais, diferentes culturas, cinemas,
teatros, uma vida intensa, cheia de comércio, movimento nas ruas…
Adorava quando alguém da família tinha algo pra fazer e me levava junto
pra ir ao centro, ou como se dizia, para ir ao centro de São Paulo.
Mas até muito tarde eu vivi confinado,
praticamente até entrar na Universidade de São Paulo. Eu vivi confinado
naquele contexto imigrante e operário; e pra eu ir daquele bairro
operário pro fim do mundo da Cidade Universitária no bairro do Butantã,
quando não havia uma estrutura de conexão entre essas duas partes da
cidade, era um martírio muito grande. Era uma base de duas horas ou duas
horas e meia pra ir e duas ou duas horas e meia pra voltar. Quatro a
cinco horas por dia dentro do ônibus, e era o tempo que eu usava pra
fazer minhas leituras, pra preparar as aulas, e eu me adaptei a ler no
ônibus, o que é uma ideia péssima, porque a vibração, o movimento
provoca deslocamento de retina. Nem gosto de pensar no dano que eu
causei para as minhas vistas, hoje abaladíssimas, por conta dessa vida
de viver lendo dentro de ônibus. Mas era a única possibilidade de
aproveitar aquele tempo.
De forma que a minha experiência de São Paulo
é essa, de olhar São Paulo a partir de pontos remotos, como um espaço
de qualidade, como um espaço de vida pública, ao mesmo tempo múltipla,
variada, sofisticada, simples, de aspectos de trocas, de consumo, mas
também de aspectos de cultura oral, popular, de rua. Foi nesses termos
que a cidade começou a fazer, pra mim, um certo sentido histórico,
porque de onde eu estava ela assumia um sentido, sobretudo, étnico, e
quando eu me deslocava em São Paulo eu sabia que estava saindo da minha
matriz cultural e indo para um lugar onde eu era um estranho e todo
mundo era estanho pra mim. E aquilo me atraía, obviamente assustado de
algum modo, mas mais atraído do que assustado, de forma que eu sempre
tive essa espécie de atração pelo espaço público, atração pela rua, por
essa rua movimentada, pela rua que tem encontro de gentes de diferentes
fontes, de diferentes substratos sociais, culturais, étnicos,
profissionais.
Meu primeiro emprego na área central da
cidade foi na empresa norte-americana, Anderson Clayton, em plena praça
Ramos de Azevedo, junto ao Viaduto do Chá. Ali da Praça Ramos o prédio
ficava com as janelas voltadas pro Vale do Anhangabaú e para a grande
arquitetura histórica que a referência da cidade: os prédios históricos
do Teatro Municipal, da Light, o prédio que era do Banco do Estado e
hoje é a sede da Prefeitura e que constitui uma construção de um dos
maiores mestres do modernismo italiano, o Piacentini. Um marco
arquitetônico na cidade, voltada pro encontro da Rua São Bento coma Rua
Direita na direção do Largo do São Francisco. Então, minha visão da
cidade era o miolo do miolo, o centro histórico propriamente, e foi ali
que eu criei a minha percepção do conjunto urbano. O meu entendimento, o
meu vínculo com a cidade de São Paulo nasceu a partir do office boy,
tinha que percorrer todas as ruas do centro fazendo entregas, buscando
encomendas. Então eu praticamente palmilhei o centro da cidade em todos
os quadrantes, de norte a sul, de leste a oeste; conheço aquilo como a
palma da minha mão.
Quando ia para a Universidade de São Paulo
também a distância e a dificuldade de transporte era imensa. Às vezes eu
saía tarde do curso noturno e já não havia mais ônibus pra pegar pra ir
pra Vila Prudente, então o jeito era dormir na rua. E quando eu dormia
na rua, porque naquela época era possível isso, não havia nenhuma
ameaça, não havia ainda o risco da criminalidade latente, eu jogava
minha mochila no chão, fazia de travesseiro e dormia na calçada da rua.
Em geral dormia ou no jardim da Biblioteca Municipal Mário de Andrade,
ou então dormia na esquina da Maria Paula com a rua Augusta, onde havia
uma livraria, Mestre Jú, que tinha um toldo que evitava sereno, garoa,
chuva e eu então dormia debaixo daquele toldo. Meu nexo com a cidade era
muito físico, era literalmente minha segunda casa. Um lugar onde não só
circulava com desenvoltura, conhecia intimamente, mas onde
eventualmente eu passava dia e noite.
Quantas conduções você pegava da Vila Prudente para a Cidade Universitária?
Nicolau: Eu tinha que pegar o
circular pra ir até o ponto de ônibus no Butantã, na esquina da Vital
Brasil com o Jóquei Clube e dali eu pegava um ônibus para o centro da
cidade e do centro da cidade pegava um pra Vila Prudente. Então no
conjunto davam três pra ir e três pra voltar.
Houve alguma contribuição da sua ascendência étnica para a sua formação acadêmica?
Nicolau: Acho que da mesma
forma, o fato também de eu ser um russo ortodoxo me punha numa posição
excêntrica numa sociedade que era, àquela altura, basicamente católica.
Como se sabe, com o Golpe Militar houve uma espécie de
“recatolicização”, uma reação do movimento conservador católico que
ampliou muito a força da Igreja, sobretudo na escola pública, já que eu
sempre estudei em escola pública. Então a escola tinha uma carga de
educação religiosa, com aulas de religião, comemoração de todos os
feriados religiosos, todas as cerimônias importantes, os ritos de
passagem, formatura, tudo envolvia a igreja. As turmas eram encaminhadas
em massa pra fazer Primeira Comunhão, pra fazer Crisma, então era
demais a pressão pra conformar as pessoas dentro do catolicismo, e eu,
sendo ortodoxo, era visto pelo meio católico como uma enorme relutância;
não sabiam exatamente o que era aquilo, apenas sabiam que não era
católico e que não gostavam, e que o natural seria que eu me
convertesse. Foi uma pressão muito forte pra que eu, meu irmão, meus
primos nos convertêssemos – a parte que falava português na família, a
outra parte nem sequer se comunicava.
Meu irmão cedeu um pouco mais, não chegou a
se converter, mas hoje em dia até pratica, é um católico praticante,
enfim, opção dele. Mas eu, num primeiro momento, me sentia isolado e
muito hostilizado porque fazia perguntas na aula de religião e as
respostas eram sempre do tipo: “Você está fazendo essa pergunta porquê
você não é católico”, acentuando a ideia de exclusão. Eventualmente me
mandaram pra aulas com pastores protestantes. Havia várias turmas que
faziam aulas de religião católica com padres e freiras e outra turma,
muito menor, que fazia com pastores protestantes de diferentes
denominações, mas as denominações tradicionais, luteranos e calvinistas,
não pentecostais. E me mandaram para lá, junto a outros alunos que
tinham ascendência eslava, grega, síria, armênia. Nós tínhamos o grupo
ortodoxo e a gente era mandado para as aulas dos pastores protestantes,
que eram infinitamente mais tolerantes, infinitamente mais agradáveis,
afáveis, nos aceitavam, não forçavam situações de conversão, não nos
faziam sentir estranhos. Foi uma convivência pela primeira vez amistosa
do ponto de vista cultural no meio protestante, embora não tivéssemos
afinidade com a cultura protestante, mas respirava-se nela de uma
maneira como não era possível respirar no meio que era dominado pela
influência católica.
Então, isso me fez me sentir esquisito, afora
a fisionomia exótica no conjunto da sociedade brasileira me deu essa
sensação de isolamento e me submeteu a todo tipo de apelido, estigma e
ser tratado acintosamente como alguém que não é do grupo. E aí as
associações com o alemão nazista, com o russo comunista, uma coisa
sempre muito hostil. O que me fazia sentir ainda mais convergência pra
dentro da minha comunidade, dentro da minha identidade eslava e aceitar a
ideia de que éramos uma minoria e que, enfim, tínhamos nossa cultura e
nos sentíamos bem nela e não íamos abrir mão dela por mais que o meio ao
redor fosse hostil. Eu acho que isso me ajudou muito a ter
desprendimento para valores culturais, tanto quanto para valores morais,
acho que me deu muito mais flexibilidade mental.
O fato de sempre me sentir fora de centro e
em minoria, ver o mundo de baixo pra cima em várias etapas, de
diferentes perspectivas. Me deixou uma pessoa muito mais aberta, muito
mais tolerante, muito mais versátil, muito mais adaptativa, e que não
tinha propensão a aceitar o centro como centro, nem aceitar o eixo como
eixo, eu estava mais inclinado para entender que o mundo tem diferentes
centros e diferentes modalidades de definição cultural. Nesse sentido
acho que sim, minha história de vida acabou criando uma pessoa que, na
trajetória acadêmica trouxe uma bagagem que acabou me tornando mais
aberto pra correntes de pensamento que propiciassem esse espaço de
abertura, de diálogo, de percepção alteridades com respeito e a
determinação de não se submeter jamais a situações de redução a
denominadores comuns ou a definições unívocas. Eu acho que sim, quando
eu era criança me sentia muito mal por estar tão deslocado, mas vendo
agora em perspectiva, fez muito bem pra minha cabeça, muito bem pra
minha imaginação e muito bem pra minha trajetória intelectual.
Em Literatura como Missão você
encontra nos escritos de Lima Barreto e Euclides da Cunha uma espécie
de síntese das alternativas históricas possíveis, ou ainda, vozes
dissonantes nos processos de modernização e transformação urbana que
marcaram a cidade do Rio de Janeiro no período da belle époque.
No mesmo período que você publicou esse livro a questão da cidade ganha
espaço nas discussões antropológicas. É possível fazer uma aproximação
entre sua perspectiva e a antropologia da época e a atenção que as
ciências humanas começam a dar para a cidade e as manifestações urbanas
para além do viés de classe nos anos 1980?
Nicolau: Excelente pergunta,
excelente. Ela já traz embutida toda uma interpretação do período com a
qual eu concordo plenamente. A questão da cidade como a fonte de uma
problematização reflexiva destoa do que era uma prática que confinava o
pensamento a uma questão que era estritamente da luta de classes. A
questão da cidade não desvia da luta de classes, a cidade é o espaço da
luta de classes, mas a maneira como ela ocorre na cidade implica que
você tenha uma percepção muito mais refinada do que seja o confronto
entre as posições diferentes dos diversos grupos no interior do espaço
urbano, porque você tem um espaço que comporta diferentes temporalidades
e diferentes espacialidades, o que significa você ser operário num
bairro tradicional é uma coisa, num bairro de migrantes é outra e numa
favela é outra completamente diferente ainda.
Então é fundamental que o cientista social
refine o seu aparelho teórico e seu aparato teórico-metodológico pra ser
capaz de captar esses diferenciais e entender o modo pelo qual ele se
manifesta, sobretudo no plano da cultura, no plano da construção dos
valores ou das identidades e, portanto, como essa construção de valores e
identidades vai operar de uma maneira própria, específica no jogo das
posições políticas, o que sai da ideia de um alinhamento exclusivo numa
única luta política numa única direção histórica. São várias lutas entre
vários agentes entre diferentes situações ainda que possam estar
identificados num mesmo plano socioeconômico, por conta da sua diferente
forma de alocação, por conta das suas diferentes formas de ajustamentos
ou resistências em contextos urbanos específicos.
Eu acho que isso foi um extraordinário salto
qualitativo no debate das ciências sociais precisamente nesse período
que publiquei, nos anos 80 e nos anos 90, foi um arejamento, uma
renovação no debate acadêmico que pôs em cheque muito do discurso que
tinha um caráter reduzido e simplificador da questão social,
estritamente vista em termos de alinhamentos de classe, sem considerar
essa complexidade espacial, cultural, construída pela percepção
contextual da sociedade a partir do espaço urbano. Isso provocou uma
forte convergência entre História e Antropologia em particular. Os
historiadores àquela altura já estavam suficientemente municiados de
instrumentação sociológica, mas careciam muito dos métodos de
investigação antropológica. Do ponto de vista dos historiadores, por
quem eu posso falar, essa foi a grande abertura que o tema da metrópole
trouxe para o debate acadêmico. Acho que o encontro das duas
perspectivas projetou para o primeiro plano o âmbito cultural em
detrimento das análises que tinham uma orientação estritamente
socioeconômica antes disso. Acho que essa inovação veio para ficar e
hoje em dia é o modo como se articula o debate no campo da História
Social, com uma História Social enraizada no contexto urbano.
Na década de 1980, logo em seguida você publica Revolta da Vacina e
no posfácio há uma explicação do contexto que lhe fez escrever o livro
em tom indignado, dedicando o livro aos mártires involuntários da favela
de Vila Socó. Na antropologia a gente discute muito essa ideia de como a
experiência vivida tem que transparecer no texto, e como a forma
textual é fundamental pra escrever sobre outras culturas, assim como
para a História. A historiografia se volta para questões de como
escrever movimentos sociais e eventos sociais. Gostaríamos que você
falasse um pouco sobre a experiência nesse contexto que você vivenciou e
como isso se reflete na sua escrita.
Nicolau: Quando fiz o livro
foi uma gestação difícil porque não tinha interlocução no ambiente
acadêmico. Eu estava justamente tentando elaborar essa interface entre
história urbana e história da cultura num momento em que no âmbito da
nossa universidade não se faziam esses procedimentos interdisciplinares e
de metodologia híbrida, por razões que são até fáceis de compreender
naquele contexto de ditadura. Prevaleciam as três linhas dominantes da
pesquisa que eram a história econômica, a história social e a história
política. Isso ocorria porque uma das questões cruciais que se discutia
era o modelo econômico naquele contexto da ditadura brasileira e daí
pensar num modelo de transição para uma sociedade democrática, para a
abertura democrática. É óbvio que o tema da economia, de se tentar
entender o modelo brasileiro não só aquele dos anos da ditadura, mas na
sua perspectiva histórica, desde a colonização, era uma questão
crucial. Tanto que se havia uma prioridade do debate em história, a
tendência era privilegiar as discussões em história econômica.
Por outro lado havia a questão da história
social, que era a da construção de uma sociedade moderna, no sentido de
uma sociedade burguesa moderna, a questão da revolução burguesa no
Brasil: houve? não houve? vai haver? está havendo? Construiu-se uma
mentalidade capitalista enraizada nos valores da cultura social
dominante, o que também naquele momento de ditadura era crucial, porque
se pensava na sociedade que a ditadura queria modelar, baseada num
padrão americano, e o diferencial histórico-cultural da sociedade
brasileira coexistindo e resistindo a esse esforço de modelação de cima
para baixo. Não há dúvida, a questão social era um tema da maior
relevância naquele momento. E obviamente, prevalecia também a história
política, já que estávamos saindo da ditadura e ambicionávamos
construir um país que enraizasse instituições democráticas e se
articulasse institucionalmente com uma democracia efetiva e
distributiva.
O tipo de questão que eu estava colocando era
muito diferente, passava por outras considerações. Minha preocupação
era, sobretudo, tentar entender como se manifestava a imaginação de
grupos excluídos, como a condição de estar numa posição excêntrica e na
posição de excluído acentuava a dimensão critica da imaginação e,
portanto, trazia um elemento de contribuição, de colaboração para uma
reconfiguração muito mais radical da sociedade. Mas por conta dessa
estratégia, eu tinha que sair dos temas dominantes e sair das
referências dominantes para autores, grupos e experiências que eram
vistas então como sendo de menor significado ou de menor sentido
histórico.
O período que eu estudava estava bastante
marginalizado pelas correntes dominantes das pesquisas sobre a
sociedade brasileira, situação que prevalece até hoje, no que se refere
à conjuntura de passagem do final do século XIX para o começo do século
XX. Esse momento é definido em geral como o período do pré-modernismo,
o que é um conceito completamente inaceitável, porque você está
definindo um período pelo que ele não é; você está definindo um período
pelo que vai acontecer num momento ulterior sobre o qual ninguém ainda
poderia saber de nada. Ao invés de uma categoria cognitiva, o que você
tem é um preconceito em que se supervaloriza o momento modernista,
desvalorizando em paralelo o momento de transição que foi um momento
crucial, um momento em que a sociedade brasileira passou de uma
sociedade rural para uma sociedade urbana, de uma sociedade agrícola
para uma sociedade industrial, de uma sociedade escravista para uma
sociedade de trabalho livre, de uma sociedade monárquica para uma
sociedade republicana.
Aquele período, ademais, era tido como um
período irrelevante do ponto de vista cultural, um mero lapso entre dois
grandes momentos importantes, o romantismo e o modernismo. Então, pra
mim, era muito difícil conseguir interlocutores, prevalecia a visão de
que essa linha de problemas não apenas desviava dos temas dominantes,
mas solapava os temas dominantes, e que, portanto, era uma espécie de
prática diversionista, uma prática alienante, uma prática
despolitizadora. O que eu estava fazendo, portanto, era um trabalho
politicamente condenável. Muita gente simplesmente virava a cara, não
conversava comigo. Me senti imensamente isolado. Graças a Deus mantive
aqueles poucos amigos com quem pude encontrar entendimento e respeito,
mas numa posição de minoria que tinha que sair do contexto para poder
conversar. Muito desagradável.
Portanto, minha auto estima estava demolida, e
a minha expectativa de que o trabalho pudesse ter qualquer recepção que
compreendesse as intenções dele era praticamente zero. E aí tive essa
experiência extraordinária (graças à minha orientadora, que sempre me
deu a máxima credibilidade, o máximo apoio, sem ela, absolutamente não
teria concluído a pós-graduação, a professora Maria Odila Leite da Silva
Dias) quando ela montou o que seria a minha banca de doutorado, os
professores mais respeitados aqui da nossa comunidade acadêmica[1],
esses professores me deram pela primeira vez não apenas uma
interlocução inteligente, uma interlocução consequente, eles avalizaram e
deram grande credibilidade para o trabalho, reconheceram o mérito e o
senso de propriedade. Pela primeira vez, para minha grande surpresa e
grande alegria. E depois disso o livro publicado pela Editora
Brasilliense[2] obteve
uma grande repercussão, ganhei vários prêmios, enfim, fui entrevistado
em vários órgãos da imprensa, o que me levou a ser convidado participar
de debates em várias universidades, em vários estados e cidades do país;
me tornei, de repente, o dia pra noite, uma voz no debate público
brasileiro, o que me fez perceber que toda valorização do meu trabalho
veio de fora pra dentro.
Foram aqueles professores aposentados, os
professores exilados que se manifestaram favoravelmente em primeiro
lugar e depois a crítica externa e aí então a universidade me recebeu
por conta dessa repercussão e não nos termos em que eu era enquadrado
antes. Esse trabalho acabou me colocando na posição de eu mesmo cogitar
por que me coloquei essas questões, de onde saíram essas interrogações,
já que essas não eram as que predominavam no debate público do momento. E
aí, na direção dessa pergunta, de fato me faz pensar sobre as condições
da minha própria história de vida, da minha posição naquele bairro de
periferia, vendo tudo o que está acontecendo de longe, por baixo, de uma
perspectiva minoritária e achando, no entanto, que nem por eu estar
numa posição tão exótica e tão incerta eu e a imensa comunidade daqueles
em posições semelhantes à minha, não teriam uma posição válida no
conjunto.
Então, na verdade, minha identificação com os
personagens históricos culturais, intelectuais que estavam em posição
semelhante vinha por uma afinidade histórico existencial, e acho que
isso é uma característica que se manifesta no meu trabalho. Em geral me
volto para temas que me tocam intimamente e àqueles em condições
equiparáveis à minha, que tenham a ver com um modo bastante peculiar de
inserção na sociedade brasileira, de migrantes ou imigrantes, de classe
subalterna, de periferias remotas, de cultura exóticas, sobretudo com
um forte substrato de oralidade .
Em Orfeu Extático na Metrópole, na História da Vida Privada do Brasil vol. III, e em A Corrida para o Século XXI,
percebemos uma correlação entre a revolução técnico-científica, a
produção do espaço urbano e a transformação de corpos e mentes. Como
você chegou a essa articulação?
Nicolau: Até há pouco tempo o
tema da tecnologia não era bem visto, até hoje parece haver nas
ciências sociais uma tendência a achar que tecnologia é um tema que
devia estar confinado nas áreas das ciências aplicadas ou na das
ciências matemáticas. No entanto, o próprio Marx, já no século XIX, em
afinidade com o impacto das revoluções da era industrial, percebia
claramente como havia uma intensificação, uma aceleração dos processos
tecnológicos e como eles interagiam de forma a reconfigurar as
sociedades submetidas ao processo de industrialização. Estudando o
Brasil nesse momento de metamorfose em que ele passa de Monarquia para
República, de sociedade rural para urbana e industrial e do trabalho
escravo para o trabalho livre, o impacto da tecnologia salta aos olhos.
Mas apesar dele, no caso do Brasil, vir de fora para dentro, a tendência
dos historiadores entretanto vai no sentido oposto, a de tender ver a
história do Brasil por meio de uma dinâmica interna. Na verdade nós
historiadores somos formados ou, no melhor dos casos, éramos formados
até o ponto em que eu era estudante, muito para pensar nesse sentido em
que há uma dinâmica da sociedade, da economia brasileira, que produz as
suas próprias mudanças. Enquanto que os impactos que vêm do exterior
parecem como que interferências artificiais, que em diferentes
oportunidades são assimiladas mais ou menos, mas acabam absorvidas
dentro dessa dinâmica interna.
O que eu podia ver, no entanto, era o
contrário, que a dinâmica externa se sobrepunha à dinâmica interna de
uma maneira muito intensa, muito agressiva, muito rápida e a dinâmica
externa acabava impondo o ritmo da transformação no país a partir do
século XIX muito mais do que uma possível dinâmica interna. Isso em
grande parte é o estilo de reflexão inspirado no trabalho do professor
Hobsbawm[3],
na maneira como ele percebe o capitalismo crescendo como um conjunto
sem pensar em termos de fronteiras ou limitações territoriais, o
capitalismo cresce como um conjunto que tem propensão intercontinental.
Então a história do mundo contemporâneo não é a história da Somália, a
história da Argentina, a história da China, é a história do capitalismo.
Nesse sentido, o Brasil tinha que ser visto não como a história do
Brasil, mas como uma história do capitalismo ocorrendo no Brasil e então
o processo tecnológico, pra mim, saltou aos olhos como sendo o elemento
definidor dessa dinâmica de transformação.
Isso já está assinalado no primeiro capítulo de Literatura como Missão,
mas como esse processo é acentuado, sobretudo pelo período da guerra,
pois guerra é o momento de aceleração das mudanças tecnológicas, ele
aparece com muito mais evidência, ele é o esteio mesmo do Orfeu Extático na Metrópole,
porque o salto tecnológico do pós-guerra reconfigura a sociedade e a
cultura brasileira, que é o que no fundo explica a assimilação do
modernismo, porque ele vem coligado a esse conjunto de transformações
tecnológicas que toma a sociedade de assalto.
E aí, rituais tão populares – populares no
sentido de sua ampla difusão social, de ter encontrado grande aceitação
pela população da cidade, sobretudo pela população operária, como o
futebol, a música rítmica e as danças sincopadas que parecem apenas
formas de entretenimento, têm contudo uma conexão íntima com esse
processo de mudança tecnológica. E aí, se você vê a história do futebol
como a história dessa reformulação do quadro de valores pela cultura
capitalista é outra coisa completamente, e a popularidade do futebol
entre os operários fica mais transparente nesse sentido, porque não é
uma popularidade que acontece em São Paulo, ou no Rio ou em Buenos
Aires, ela acontece em todo o mundo ocidental sendo tomado por uma onda
avassaladora de transformação capitalista. Então, em diferentes índices
do cotidiano, a introdução do cinema, em particular o cinema falado, a
introdução dos esportes dos ritmos frenéticos, você vê a sociedade
transformando os valores e adquirindo outra forma de conexão, de coesão
que não é mais uma coesão por determinantes de classe, ou por
determinantes de uma cultura herdada, mas por determinantes dados por
essa nova dinâmica tecnológica, desse processo de aceleração.
Basicamente é essa história que eu conto no Orfeu Extático na Metrópole,
parece ser uma história do modernismo brasileiro, mas na verdade é uma
história do capitalismo entrando e se enraizando com força na sociedade
brasileira e reconfigurando completamente os valores sócio-culturais. O
livro termina numa espécie de clímax, que é o período pré-Segunda-guerra
com a ascensão do nazismo em 1932. Eu, deliberadamente, quis terminar
com esse suspense porque, como em música, o suspense permite que você
produza desdobramentos, você cria uma expectativa de desdobramento, e
esse desdobramento veio, de algum modo, com A Corrida para o Século XXI e o Loop da Montanha Russa, em que eu me concentrei especificamente no tema tecnológico desde a virada do século até o momento contemporâneo.
No Orfeu Extático e no Literatura como missão as
décadas de 1910 e 1920, como você diz, a grande metrópole une uma
origem avassaladora, mas também uma matriz de uma nova vitalidade
emancipadora. Como você mostra a partir dos escritos de Lima Barreto, do
Euclides da Cunha, do Blaise Cendrars. Entretanto, ao que parece, na
década de 30, no mundo inteiro houve uma volta conservadora, e que essas
manifestações foram solapadas ou foram deixadas de lado. Você acha que a
ascensão do nazi-fascismo, na década de 1930, no entre guerras e a
Segunda Guerra Mundial, toda essa matriz criativa que existia na década
de 1920, mesmo os movimentos do anarco-sindicalismo, etc., elas foram
solapadas e que uma nova ordem surgiu?
Nicolau: Você está pondo em
xeque a década de 30 como se fosse um movimento de reação, de recuo no
processo de exploração das possibilidades de uma cultura democrática,
aberta. Eu concordo com você quanto aos anos 30, mas eu puxaria para os
anos 20, porque se nos anos 30 fica mais do que patente pela
cristalização do nazi-fascismo, é preciso lembrar que a gestação do
nazi-fascismo é dos anos 20. Então, o que acontece não é algo limitado
aos anos 20, 30, eu diria que é um fenômeno dos pós-guerra. E se a gente
considerar que o pós-guerra não é apenas o pós-guerra, mas é também o
pós-revolução russa, veremos que a revolução russa é parte da grande
crise da primeira guerra. Se você coloca tudo isso junto, o que você tem
nos pós-guerra já é a polarização de um mundo que põe em confronto
forças totalitárias pró-soviéticas e nazi-fascistas, e isso provoca um
processo de militarização e de intolerância que se difunde em escala
mundial. A consequência geral é a difusão de um pensamento conservador
nacionalista, a militarização das sociedades, a intolerância e a
exclusão em massa de grupos, culturas e valores estigmatizados.
É esse o elemento novo na cena brasileira.
Todos nós fomos educados para achar que elemento novo na sociedade
brasileira fosse o modernismo, não, esse é que é o elemento novo na
sociedade brasileira, e é com esse elemento novo que o modernismo está
em sintonia e esse elemento que vai se cristalizar com o Varguismo e a
tendência autoritária no Brasil, ao alinhamento do Brasil com esses
modelos autoritários de nível internacional. Portanto, é um fenômeno
transnacional cada vez mais, é um fenômeno do capitalismo do pós-guerra e
embora tenha havido uma efervescência de movimentos culturais que
vinham do pré-guerra, particularmente as culturas derivadas do
anarquismo, como o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, a essa altura já
eram minoritárias a partir da cultura dominante do orfismo, do
construtivismo e da arte politicamente alinhada.
Nesse sentido, a cultura dominante no fim do
pós-guerra até a Segunda Guerra Mundial é uma cultura fortemente
conservadora, reacionária, opressiva, intolerante, excludente e
articulada numa linguagem racista. Em qualquer parte do mundo que você
for, incluindo os Estados Unidos. Então, embora eu tenha concentrado
meus estudos nos anos 20, queria projetar essa percepção de que se
trata de todo um momento histórico de longa duração, que inclusive
ultrapassa a situação de guerra. É só pensar no pós-segunda guerra e no
macarthismo e na Guerra Fria e você vê essa estrutura sobrevivendo com
diferentes feições, com diferentes linguagens, com diferentes imagens e
representações, mas basicamente esse mesmo quadro de valores polarizados
e de intolerância por toda parte.
No fundo é a sociedade em que eu me
reconheço, eu nasci no meio disso, para meu desgosto. E eu sendo parte
de uma minoria, por si só alguém que já estava numa posição frágil,
vulnerável. Enquadrado nesse conjunto me senti particularmente
massacrado. Eu fiz a escola sobre a ditadura militar, a escola era uma
espécie de instituição correcional que impunha valores comportamentais,
patrióticos e uma disposição a introjetar uma voz de comando militar, a
ser passivo, a aceitar ordens. Nesse sentido não tive uma educação, eu
tive uma anti-educação. Meu processo de educação foi uma luta para me
deseducar daquilo que me foi introjetado desde a infância. Acho que,
infelizmente, já estamos avançados no século XXI e de alguma forma,
ainda, queda de muro ou não queda de muro, a gente ainda vive um clima
que é um desdobramento dessa fonte profundamente nociva, anti-humanista,
anti-social, anti-democrática do primeiro pós-guerra que foi sendo
reiterado por sucessivas crises e tendo seus momentos de maior e menor
compressão, mas basicamente essa é a atmosfera em que o mundo submergiu
por conta da polarização ideológica.
Retomando um pouco o que você acabou de dizer, a publicação da Corrida para o Século XXI foi
em 2001. Passados 10 anos, como você enxerga essas transformações que
ocorreram? Logo em 2001 tivemos com os ataques às Torres Gêmeas e no ano
passado o Osama Bin Laden foi executado pelos Estados Unidos, entre
inúmeras outras coisas que aconteceram nessa década. Como você analisa
esse período de 10 anos?
Nicolau: O foco do
livro, claro, era o momento em que eu me encontrava quando escrevi o
texto, que era a construção do que a gente hoje pode chamar de momento
turbo-capitalista, aquele capitalismo sem fronteiras, sem restrições,
sem limites, sem qualquer espécie de controle ou moderação que, desde o
período Thatcher e Reagan, com as reformas que eles fizeram,
desregulamentando o sistema monetário internacional, acabaram produzindo
as condições favoráveis à emergência dessa espécie de capitalismo sem
raiz, sem fronteira, sem regras e sem limites.
Você morou na Inglaterra no período Thatcher, em 86, certo?
Nicolau: Sim, de 1986 a
2004. Acompanhei esse processo de uma posição bem central, mas como
morava e trabalhava ao mesmo tempo no Brasil e lá, podia ver dos dois
lados. O resultado disso foi a construção dessa mirabolante arquitetura
financeira pela qual as corporações e os grandes centros financeiros
acabaram dominando completamente o processo de tomada de decisões, se
sobrepondo aos Estados nacionais, aos parlamentos e às vontades
populares. Criando uma lógica, que era uma lógica estritamente do
chamado mercado internacional como devendo prevalecer sobre vontades e
toda e qualquer autonomia das sociedades ou de seus sistemas políticos.
Nessas condições, o que prevalecia como a tendência dominante era a
ideia perversa de corroer as bases da chamada sociedade do bem-estar
social, que foram montadas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, porque
elas continham o elemento redistributivista, que se contrapunha à atual
tendência dominante da alta concentração do capital.
O modelo da sociedade do bem-estar social tem
uma formatação piramidal, que supõe que a cada geração, das partes mais
vulneráveis da população, graças, sobretudo à educação pública e aos
apoios dos sistemas públicos, grupos inteiros possam ascender a
patamares cada vez mais elevados de oportunidades e de recursos
financeiros, econômicos, educacionais, culturais e de qualidade de
vida. A tendência do turbo-capitalismo, ao contrário, é a máxima
concentração de renda no menor número de pessoas. E aí, ocorre um
achatamento da sociedade, que perde aquela estrutura piramidal e vira
algo mais parecido com um ovo estalado na frigideira: você tem uma gema
dourada no meio e quanto mais você chacoalha a frigideira, mais se
espalha aquela enorme mancha igualitária indistinta, esgarçada,
rarefeita e queimada nas beiras, que jamais se confundirá com a gema ou a
gema com aquela parte indistinta. Então, você tem uma sociedade que vai
tendendo a esse achatamento, na medida em que concentra de um lado e
que depaupera o outro.
O livro contém essa crítica, porque era nessa
direção que íamos no momento em que o Brasil estava saindo da
experiência ditatorial e entrando no esforço de construção de um país
democrático. Quem lutou contra a ditadura esperava que fosse então
instaurada uma sociedade de natureza distributivista e igualitária. E o
que eu sentia era uma contradição, porque os principais agentes
políticos e os partidos políticos dominantes tendiam a assimilar os
elementos do neoliberalismo, que é a linguagem ideológica do
turbo-capitalismo e configurar o Brasil por esse padrão internacional do
que era àquela altura entendido como a modernidade. Então, eu sentia
que havia nessa posição dominante dos partidos hegemônicos do Brasil
pós-ditadura, uma espécie de rejeição ou abandono do que foi a história
da luta contra o regime militar e os compromissos das gerações que se
formaram no confronto contra a opressão e a exploração predatória dos
recursos humanos e naturais, que seriam os de construir uma sociedade
democrática, igualitária e distributivista. Se se fosse tomar algum
modelo, que fosse o da sociedade de bem-estar social com uma perspectiva
de promoção social aberta a todas as classes graças a maciços
investimentos em educação, saúde, moradia, infraestrutura de qualidade
para toda a população. E infelizmente, o que eu sentia, e esse é o teor
do livro, é que o Brasil ia na direção em que o conjunto do planeta ia, e
tendendo também a interpretar como modernidade o que era o conjunto de
valores do turbo-capitalismo e com isso abortando a luta política pela
construção de um país democrático.
A crise política da derrubada das torres é
algo que tem mais uma conexão com o militarismo americano e a maneira
como o turbo-capitalismo pretendia com esse militarismo remodelar por
toda parte do mundo sociedades recalcitrantes, trocando lideranças,
sistemas políticos e criando sucedâneos de um modelo que é o adequado
para essa forma de gerenciamento em linha com o turbo-capitalismo. Mas
foi a crise de 2008, em particular, que abalou o conjunto do sistema,
pela primeira vez pôs em cheque o caráter autodestrutivo do
turbo-capitalismo e a necessidade de uma remodelação do sistema
internacional.
E aí sim, ensejando um novo protagonismo dos
Estados e das sociedades, refazendo as democracias que foram corroídas,
as instituições que foram enfraquecidas, os vínculos sociais que foram
rompidos. Eu acho que essa é a nossa luta atual, se vamos fazer isso ou
não as duas tendências estão no ar, mas agora elas são visíveis. Na
época da hegemonia do neocapitalismo a questão não se colocava, por isso
prevaleceu o conceito de “pensamento único” ou a ideia do “fim da
história”. É agora que a gente vê com mais clareza, quando a coisa
chegou no limite: ou restauramos essas democracias, restauramos a
autonomia, a capacidade de decisão das populações e refazemos o processo
de democratização e de redistribuição do tipo do pós-guerra, no momento
da construção do Estado do Bem-Estar Social ou, de uma vez por todas,
enfim… admitamos que o caos é o destino, que não há alternativas, que só
resta esse apocalipse financeiro e a destruição dos recursos naturais,
com todos passivamente assistindo a corrida para o século XXI terminar
num mergulho no abismo.
Juntando o livro A corrida para o século XXI que
você mostra várias configurações culturais, que digamos, resistiria a
esse processo do turbo-capitalismo e a palestra que você nos deu em
novembro de 2011, onde você apresentou para nós o conceito de “Cultura
Refratária”. Nós queríamos que você falasse um pouco sobre isso, que
apesar do processo do turbo-capitalismo essas configurações culturais
autóctones e urbanas, como você mostra, a cidade como um lugar de
nascimento de novas culturas que dá voz dissonante a esse processo.
Queríamos que você falasse um pouco das potencialidades dessas
manifestações.
Nicolau: Esse é o ponto em
que a história e a antropologia convergem definitivamente, em que o
consórcio entre as disciplinas suscitam um método multidimensional de
pesquisa. A tendência predominante do historiador, pela maneira como nós
somos educados, é perceber os processos de mudança e de certa forma
aderir a eles e legitimar verbalmente esses processos de mudança. Você
ao construir a narrativa da análise historiográfica, você constrói
também a justificativa da mudança que você está descrevendo. O que te
torna, de uma certa maneira, alguém comprometido com uma prática que
identifica a história e a historiografia como uma disciplina que faz
parte do progresso das luzes, da marcha civilizatória. E o historiador
como personagem que tem o seu papel ativo e decisivo em revelar o
desdobramento desse processo, dessa marcha.
Quando eu vou olhar para o Rio de Janeiro e o
que me interessa não são os líderes no Palácio do Catete, nem no
Congresso Nacional, nem os intelectuais que estão diretamente ligados
com os processos decisórios, mas gente que está praticamente exilada da
vida pública e falando num deserto de ouvidos moucos, gente que foi
deliberadamente excluída do debate público, o que eu estou procurando é
gente que perceba esse conjunto de uma maneira diferente, que não veja a
história em primeiro lugar como um processo linear e que portanto não
perceba o movimento da história como um movimento que contenha em si
mesmo um elemento progressista, desenvolvimentista ou civilizador. O que
significa, então, tratar com valores que são estranhos à chamada
modernidade, porque a modernidade é uma construção legitimadora desses
processos que são vistos como uma linearidade, que se desdobra
progressivamente como desenvolvimento ou como civilização literalmente.
Essa gente no seu tempo foi justamente
deixada à margem porque eram considerados vozes destoantes, marcadas por
uma tonalidade reacionária, regressiva, passadista, bloqueando as
forças renovadoras. Então em grande parte a galeria dos heróis
nacionais, a galeria dos grandes artistas, dos grandes intelectuais é a
galeria dos comprometidos com a modernidade. Mas você pode pensar numa
situação diferente, pessoas que foram vitimadas por esse processo e que
não viam necessariamente com bons olhos o que estava acontecendo, nem
necessariamente viam o que o que vinha adiante como sendo melhor daquilo
que houvera antes ou o que poderia haver e ser construído como
experiência social ou como uma construção coletiva. Então se você foca
esses personagens excêntricos, eles te dão a oportunidade de pensar a
história de uma maneira que não houve, pensar a história de uma maneira
excêntrica, não flutuando no nada, porque o esteio de onde as pessoas
vão tirar essa sua resistência a esse processo modernizador,
civilizador, é o da sua própria experiência de vida e portanto de uma
experiência que elas projetam para gerações com os quais se sentem
conectados.
E, nesse sentido, não é uma questão de
inverter a diretriz e pensar então que a boa história é a história dos
eventos e das mudanças potenciais que não vingaram, mas sim de assumir a
perspectiva muito presente no pensamento hermenêutico de que o elemento
existencial é decisivo na avaliação dos processos históricos. Desse
modo, se você tem grupos de pessoas que se ressentem de que os processos
históricos lhes são em muitos sentidos formas de degradação da
experiência pessoal e da experiência coletiva, grupal e comunitária, a
sua honestidade de historiador te levaria a tentar entender quais são
esses sentimentos e essas percepções, no sentido de reconstruir aquela
experiência histórica tal qual ela é, indiferente ao processo que a está
absorvendo ou que aos poucos ou abruptamente leva à sua eliminação,
ainda que esse processo seja descrito, jure et facto, como a modernidade ou a civilização.
Foi nesse sentido que eu busquei a palavra
refratário, que era a palavra com a qual na Revolução Francesa se
descrevia e, simultaneamente, se criminalizava, quem não assimilasse os
novos valores da França revolucionária. Como todos nós fomos educados
pelo pensamento iluminista, nós achamos que a França Revolucionária,
sim, representa o futuro da humanidade, porque ela traz os elementos de
valorização da liberdade, igualdade e fraternidade e, portanto a criação
de uma sociedade moderna baseada em constituições, num equilíbrio de
poderes, enfim em tudo aquilo que a gente foi educado a admirar e a
louvar. Por outro lado, aprendemos que a sociedade que foi deixada para
trás era uma sociedade patriarcal, uma sociedade aristocrática, uma
sociedade de estrutura servil e que, portanto, era o padrão de tudo que
há de retrógrado, opressivo e negativo. A gente assimila assim
perfeitamente a dicotomia que a Revolução criou entre o futuro e o
passado. Tudo o que está no futuro é positivo e tudo que está no passado
é negativo. Mas isso é uma construção mental da Revolução Francesa e
uma construção do discurso político, que deu substância ao conceito de
modernidade tão crucial nas ciências sociais.
Se você mergulha na experiência dessas
pessoas que estão resistindo a assimilar os valores impostos pelos novos
dirigentes, chegados ao poder com a Revolução Francesa, você vai ver
que os motivos não são de natureza ideológica, mas são efeito direto de
perda da sua qualidade de vida, são pessoas que vão ter uma destruição
do seu modo de ser, do seu modo de viver, dos seus laços sociais, dos
seus vínculos familiares, da sua língua comunitária, dos seus valores
transmitidos oralmente de geração para geração. O que eles estão
resistindo é tudo isso. É isso que eles não querem perder. E é isso que
não querem trocar por uma nova linguagem, que no fundo é uma linguagem
da sua própria proletarização, a sua transformação em proletários numa
cidade, onde não tem mais nexos sociais, onde eles não têm mais rituais
de valorização do cotidiano e de seus vínculos com a natureza e seus
ciclos, um contexto novo, portanto, onde todos são estranhos e se tratam
uns aos outros como estranhos, o que é um valor crucial do ponto de
vista da nascente cultura liberal.
Então, ser refratário é na verdade defender
uma determinada qualidade de vida mais substantiva, mais cheia de
conteúdo, mais rica de simbolismo cultural, do que aquela pela qual você
está sendo forçado a trocar as suas convicções a as suas afeições. As
pessoas relutam a serem reduzidas a uma experiência social rebaixada,
assinalada por posições fixas, dentro das quais você será enquadrado
sem que as cargas simbólicas e as conectividades que você trazia
historicamente pudessem ser garantidas, mantidas ou respeitadas. Então é
nesse sentido que essas pessoas resistem à revolução ou resistem às
mudanças ou resistem ao futuro, porque sentem nitidamente e são capazes
de exprimir isso, que a mudança lhes torna a vida mais vazia de sentido,
mais vazia de conteúdo humano e de substância simbólico-imaginária. É
esse empobrecimento que eles não querem. É essa redução à condição de
proletário no capitalismo moderno, que eles não querem. E, nesse
sentido, eu acho que a gente pôde se pôr em perspectiva repensar o que
de fato estava em jogo e, se de fato, do ponto de vista daqueles grupos
valia à pena ou não. E como bom historiador você, talvez, seja capaz de
até se identificar com esses grupos ao ponto de chegar à conclusão, que
se você estivesse lá, você também seria refratário, talvez não em tudo,
mas pelo menos numa parte significativa.
Qual era o modo da Revolução Francesa lidar
com os refratários? Eles eram tantos, eles eram massas tão gigantescas
de gente, em todo país, que o processo de eliminação do problema para os
líderes revolucionários tinha que ser resolvido em escala industrial,
incorporando a linguagem mecânica trazida pela industrialização. Então
eles introduziram esse moderníssimo equipamento mecânico: a guilhotina. A
guilhotina é um equipamento mecânico destinado à eliminação do
comportamento refratário e, assim, você pode eliminar milhares de
pessoas por dia de uma maneira anônima, de uma maneira impessoal, de uma
maneira fria, abstrata, massiva e burocrática. Um pouco como a
coletivização forçada do Stalin, a imposição da coletivização dos
refratários também. E quando você descrevia o camponês como refratário,
era imperativo que você dissesse “pequenos burgueses”. Eles não eram
pequeno-burgueses, eles eram literalmente camponeses, só que eles tinham
uma economia comunitária tradicional na Rússia, há milênios, pela qual
eles mantinham os seus próprios animais, tinham os seus próprios
canteiros, a sua própria parte da natureza, em condomínio com outras
famílias. Um sistema que existia, repito, milenarmente e que do dia para
a noite foi decidido, burocraticamente, que se passaria para uma
sociedade de propriedade estatal, em que a cada um seria atribuído ou
designado o que o Estado determinasse.
Então a minha família veio para o Brasil,
porque eram refratários. Eu sou parte da história do mundo que escapou
da eliminação sistemática por ser refratário. Se eu penso na tragédia da
minha família, que foi quase que inteira exterminada por processos
modernos como fuzilamentos em massa ou campos de extermínio, eu penso
que do ponto de vista da modernidade nós somos uma sobra exótica,
escapamos quando não deveríamos ter escapado. É mau para o processo de
modernização, que nós tenhamos escapado, porque nós somos uma espécie de
entulho, de obstáculo, de entrave, de atraso latente, que não faz bem a
ninguém. Então, eu acho que do ponto de vista do momento que nós
estamos vivendo hoje, fica claro pela primeira vez a fragilidade do
turbo-capitalismo, que é preciso repensar qual é de fato o destino que
as sociedades querem dar a si mesmas. Se não é o momento de por em
cheque esses dogmas do progresso, do desenvolvimento, da modernidade, do
consumo, do mercado, do processo civilizatório, qualquer nome que se
dê a isso falando sempre a mesma coisa, se não é o momento de pensar na
experiência humana, na densidade da experiência humana, e tentar então
resgatar valores que tragam essa substância, esse conteúdo, uma
experiência de vida mais coextensiva, mais coesiva, mais solidária, mais
ligada diretamente a natureza. Se não é o momento de perceber afinal
que tudo isso faz diferença e tudo isso, nessa altura, faz uma enorme
falta e que talvez nos refratários haja um resíduo com o qual a gente
possa aprender alguma coisa.
Eu falo isso do ponto de vista de minha
família semi-destruída, mas podemos pensar em comunidades indígenas,
comunidades ribeirinhas, comunidades caipiras, nas periferias das
cidades e suas quebradas tão cheias de vida e de surpresas, enfim… Os
refratários estão por toda parte ainda desarticulados, numa
vulnerabilidade extrema, mas eu acho que aqui as ciências Humanas, com H
maiúsculo, podem fazer diferença, em particular, eu penso na história e
na antropologia.
Há uma série de exemplos nos seus
livros sobre os processos de urbanização, bem como as revoltas dos
movimentos sociais ao longo do século XX. Pensando na “Cultura
Refratária”, acerca de como o “Turbo-Capitalismo” vai envolvendo tudo e
tentando engolir as sociedades e os grupos, como você enxerga os
processos de urbanização e do capitalismo atualmente, tendo em vista a
crise do euro? Tanto na Grécia como nos protestos contra o sistema
capitalista que aconteceram nos Estados Unidos através do movimento
“Occupy”, no qual as pessoas foram às ruas ocupar as praças públicas,
será que podemos encontrar indícios de uma “Cultura Refratária”?
Nicolau: Eu concluí o livro A corrida para o século XXI justamente
enfatizando o papel inspirador, inovador desses movimentos de
resistência ao predomínio dessa cultura do turbo-capitalismo, do
neo-liberalismo, representado sobretudo pelos movimentos
anti-globalização de final do século XX e começo do século XXI. Esses
justamente que foram abafados pela crise política do 11 de setembro.
Então, esses movimentos que representavam uma espécie de reação
sobretudo da juventude e uma juventude que trazia um pensamento
alternativo voltado para um consciência de teor social, ecológico,
humanitário e que se opunham às tendências dominantes no momento mais
forte de cristalização do turbo-capitalismo, eles foram
oportunisticamente abafados pela crise de 11 de setembro. E muito
convenientemente foram tirados da cena histórica por um bom período.
O que a gente vê agora renascendo é ainda
aquela fonte, que em algum momento foi eclipsada, mas é ela mesma que
volta agora com uma força renovada por conta da crise capitalista
internacional, porque antes eles falavam sozinhos, parecia que o sistema
vicejava numa situação de vitalidade extraordinária, para compor um
“Reich de mil anos”, eles eram os únicos que pareciam querer estragar a
festa. Era uma gente vista com maus olhos pela imprensa, com maus olhos
pelas universidades, com maus olhos por todo cidadão decente em toda
parte do mundo. Agora, voltando nessa forma do “Occupy Wall-Street” e
suas múltiplas variantes ao redor do mundo, os temas que eles trazem são
exatamente os temas políticos mais candentes do momento: a
desigualdade, o desequilíbrio nas relações com a natureza, a criação de
uma sociedade atomizada, por um uso discricionário de tecnologias e por
uma situação de iminente colapso em escala mundial.
A mesma mensagem que eles tinham antes, agora
parece muito mais nítida e muito mais aguda no modo como aponta para a
necessidade de construção urgente de alternativas ao que a gente está
assistindo como o desabamento dessa arquitetura do turbo-capitalismo.
Então, eles mais do que nunca são os personagens da vez, eles estavam
aparecendo como um esboço de esperança no final do meu livro, onde eu
os chamo de refuseniks, eles agora, eu acredito, são personagens
centrais. O que eles trazem como alternativa de pensamento, de reflexão
de valores, é a expectativa de uma mudança não apenas na estrutura do
capitalismo, mas de uma mudança no comportamento humano, colocando em
cheque valores como o consumo ilimitado ou como a exploração ilimitada
dos recursos naturais ou como a exploração ilimitada das populações
pauperizadas de regiões remotas ao redor do mundo. Tudo isso agora se
encaixa e faz sentido de uma maneira como naquele momento de esplendor
Turbo-Capitalista não fazia. Então, eu acho que enfim, seria um ótimo
tema para um novo capítulo, numa nova edição da Corrida para o século XXI.
Dentro desse contexto, a Europa e os
Estados Unidos têm se fechado muito para migrações, criando leis
restritivas para imigrantes. Gostaríamos que você falasse um pouco sobre
as transformações tecnológicas e econômicas e as diferenças das
migrações no final do séc. XIX e início do século XX e as migrações
atuais.
Nicolau: Em principio, as
pessoas tendem a ser refratárias à ideia de emigrar, aí de novo o
conceito aparece com toda a força, porque como é óbvio os seus vínculos,
as suas raízes, o seu mundo social, cultural e imaginário está
ancorado num contexto local. E você só pode querer romper com esse
contexto coagido, nunca será por sua própria vontade. Os ricos e bem
sucedidos nunca migram. Quem migram são aqueles deixados sem
alternativa. Portanto, a migração é compulsória, na verdade é um
processo de expulsão, muito mais do que uma emigração. Já foi assim na
grande migração do século XIX, a difusão dos processos industriais
acabou provocando esse imenso êxodo rural e o êxodo rural foi caminhado
para zonas da fronteira de expansão capitalista, onde havia novas áreas
de exploração de terras férteis como o Brasil, Austrália, a Argentina,
ou onde havia áreas de exploração mineral na região dos Andes ou África
do Sul ou onde havia criação de animais, enfim onde novos valores
econômicos estavam sendo criados.
As populações eram empurradas para essas
partes todas, mas é claro num ritmo, numa temporalidade diferente da
atual e em particular num contexto, em que havia uma disposição pra
algum grau de assimilação desses grandes contingentes sociais, com
enormes restrições, com enormes condicionamentos disciplinantes, mas
pelo menos se admitia que se precisava deles, se precisava desses
contingentes para a agricultura argentina, a cafeicultura brasileira,
para a industrialização americana, assim por diante. Todos os países
foram intolerantes e obrigaram a uma argentinização dos imigrantes, um
abrasileiramento dos imigrantes, uma norte-americanização dos
imigrantes, foi um processo doloroso, numa temporalidade mais dilatada,
mas que eventualmente se estabilizou.
E a situação agora reverte porque você tem um
momento do capitalismo, que graças à automação e à informatização, é
enormemente poupador de mão de obra, particularmente de mão de obra não
qualificada. Logo, não há grande demanda, portanto, grande aceitação de
contingentes sociais, sobretudo de grandes contingentes migratórios. Por
outro lado, o processo de difusão do capitalismo se faz com uma
energia, uma dinâmica redobrada, em relação ao final do século XIX e
começo do século XX, o que solapa as sociedades tradicionais e
populações tradicionais, vivendo em áreas agrárias, ou com economias
tradicionais, de forma que essas populações não têm alternativa senão
emigrar, porém, agora para lugares que não as desejam de forma alguma.
Então, esse é novo quadro migratório, ele bate contra uma barreira de
rejeição e de intolerância num grau de exacerbação, que praticamente faz
a gente lembrar da linguagem racista dos anos 1920 e 1930. E isso é o
diferencial da imigração na passagem do século XX para o século XXI.
Caso inédito, o Brasil se tornou um polo
atrativo de contingentes migratórios e pela primeira vez você houve
surgir um discurso de intolerância e rejeição de um país que foi
tradicionalmente um país de absorção de imigrantes, então é uma situação
extremamente delicada e obriga a uma qualificação do debate público
sobre essa transumância, essa circulação de contingentes premidos pelo
capitalismo internacional e que vão encontrando essas muralhas reais ou
legais ou de linguagem racista e discriminatória, numa proporção
alarmante, que nos faz pensar numa reconfiguração do momento da
intolerância nazi-facista.
Com a crise dos paradigmas e a virada linguística como você o ofício do historiador hoje?
Nicolau: Mais difícil do que
nunca, obviamente por isso, porque o debate se tornou tão qualificado
que se exige do historiador simultaneamente uma percepção, uma
sensibilidade, uma erudição e uma versatilidade teórico-metodológica
como nunca se viu antes na profissão. Eu acho que temos cada vez
melhores historiadores, mas é muito mais difícil ser um historiador
capaz de dar conta das demandas da profissão, tais como elas se formulam
por esse enriquecimento das interfaces com as quais a história hoje em
dia tem que operar para manter-se atualizada no contexto das ciências
humanas e no debate geral sobre a cultura humanística e tecnocientífica.
Portanto, eu acho que a responsabilidade dos professores é enorme, eles
têm que se qualificar muito mais para poder apoiar melhor e ter a
capacidade de estimular e inspirar os alunos em múltiplas direções
simultaneamente, suscitando neles o talento em especial para essa
capacidade de flexibilidade e de argúcia sensível para ser capaz não
apenas de se comportar como alguém que constrói o discurso da
modernidade, mas alguém que é capaz de produzir um encontro desse
discurso com as reminiscências das culturas refratárias.
Nesse sentido é um momento muito exigente,
mas muito motivador, enriquecedor e promissor. Acho que teremos gerações
cada vez melhores de historiadores, nesse sentido, que não serão mais
historiadores no sentido em que a palavra história ou historiografia
implicava um confinamento disciplinar, porque eu acho que quanto mais se
romper esse confinamento disciplinar e mais se for capaz de interagir
com as outras ciências sociais, com as ciências humanas, com a crítica,
com as correntes teóricas contemporâneas, portanto, quanto mais ele
perder a preocupação dele de se identificar como historiador, mais
eficazmente ele vai cumprir o papel de alguém que é capaz de olhar para a
experiência humana em escala temporal, de uma maneira que não tenha
preconceitos de nenhuma natureza, em nenhuma direção e nenhum patamar
social, cultural, ético ou ecológico, que seja. Portanto, é
simultaneamente um momento de desmontagem de um determinado modelo de
historiador e de historiografia e de reconstrução de um outro que ainda
está em processo que ainda não se fez. Toda a beleza está na poesia
desse procedimento construtivo.
Dentro dessa questão da universidade
como lugar de formação, como você analisa a relação entre revolução
técnico-científica e a produção de conhecimento na universidade? E por
outro lado, há espaços de produção de cultura refratária na
universidade?
Nicolau: É claro que houve
esse enorme surto de inovação tecnológica e ele teve impacto sobre todos
nós, dentro e fora da universidade. A Universidade tem que ser capaz de
interagir criticamente, é esse o seu papel fundamental, com as
consequências desse impacto. Até que ponto ele traz benefícios ou
malefícios para o conjunto da comunidade? É papel do cientista social
trazer essas questões e não de se alinhar com uma ou outra das força
dominantes como até a pouco era a tendência preponderante. A tecnologia
por si só não tem valores embutidos, ela pode ir numa direção ou noutra,
conforme você produza a direção política ou econômica do encaminhamento
que ela terá. Ela pode ajudar a promover os seres humanos ou pode
solapar esses seres humanos. Você entendendo como ela produz um efeito
ou outro, pode enfatizar um e tirar o seu investimento do outro,
portanto, é crucial que os cientistas sociais sejam interlocutores desse
momento de grande aceleração cientifico tecnológica. Há uma tendência
dentre os praticantes das ciências humanas, de se acantonarem no momento
fundador das ciências sociais modernas, que é de meados do séc. XIX e
começo do século XX e se restringirem ao acervo de conceitos e de
métodos construídos nesse momento fundador, se mantendo de alguma forma
fechados ou obliterados para o que essa reconfiguração acelerada no
nosso presente, saturado de tecnologia e inovações. Eu acho que é essa a
atitude que tem que ser posta em questão, sobretudo no processo
educacional, sobretudo na transmissão, pela presente geração de
professores, do que são as perspectivas profissionais e as determinantes
éticas do nosso campo acadêmico. E, nesse sentido, podemos fazer a
ponte entre as gerações atuais e o momento fundador das ciências sociais
por um lado, mas também com o momento atual e as questões que se põem
para o nosso futuro, de maneira a enquadrar o conjunto, ao invés de
incentivar uma ou outra apenas dessas dimensões. Então, acho que a
responsabilidade do intelectual como educador é decisiva em ter essa
atualização esse aggiornamento com o mundo em transformação acelerada. A segunda parte da questão?
O lugar da cultura refratária dentro da universidade.
Nicolau: Ah, eu acho que
paradoxalmente seria cada vez maior, porque cada vez fica mais claro que
o que nos está dado já não nos satisfaz e pelo contrário nos parece
cada vez mais uma ameaça. Então, a busca por formas alternativas de
construir experiências históricas, que preencham a vida das pessoas de
sentido simbólico, imaginário, de conteúdo humano, de laços sociais e de
vivências ligadas ao meio natural é cada vez mais uma demanda que fazem
as novas gerações. Isso exige do cientista social que ele tenha essas
aberturas e a única maneira de buscar esses nexos, eu acredito, não é
mais dentro dessa marcha da modernidade. Ela necessariamente aponta para
o resgate de alguns elos perdidos nessa dimensão das múltiplas culturas
refratárias. Creio que mais do que nunca esse é um momento de
revitalização desses contatos, dessas buscas e uma vez mais isso coloca
em destaque o papel do antropólogo e o papel do historiador, não no
sentido de concorrência entre as ciências, mas no sentido em que traz
consigo uma inspiração também para uma sociologia, simultaneamente
antropológica e histórica, para uma ciência política, simultaneamente
histórica e antropológica. Não no sentido de criar uma hierarquia das
ciências, umas tendo precedência sobre outras ou superposição sobre
outras, o que afinal seria uma maneira idiota de, ao invés de focar as
demandas da sociedade, colocar em primeiro plano as questões
profissionais e corporativas, o que, acredito, não seja a vocação da
universidade.
Para finalizar, gostaríamos que você falasse sobre a sua pesquisa atual.
Nicolau: É um pouco nessa
linha do pensamento refratário, por isso o conceito se materializou com
muita nitidez nessa reflexão, que se volta para um artista plástico dos
anos 60 e 70, o Hélio Oiticica do Rio de Janeiro. Ele se tornou uma
figura central num processo de renovação das linguagens artísticas, que o
colocou numa posição classificada pela história da arte como de
vanguarda. E se a gente se aproxima e tenta entender qual é, quais são
os elementos de que ele extrai essa inspiração para uma posição
vanguardista, você vai compreender que são todos eles de dimensão
refratária. É porque ele se opõe aquele esforço modernizante
representado simultaneamente pelo governo JK, o desenvolvimentismo ou
pela ditadura militar, segurança e desenvolvimento. Desenvolvimento é o
que há de comum, no chamado momento da redemocratização, e o momento
militar, de forma que não há uma descontinuidade, ao contrário do que o
discurso político nos tenta fazer crer, entre o momento JK e o momento
militar, na verdade há ali um continuum, que embora envolva
uma quebra institucional, mantém um mesmo fundamento. Então, o que o
torna uma pessoa que naquele momento discrepava do contexto, é porque
ele se divorciava completamente dessa tendência dominante, fosse pela
linha do populismo da política pré-golpe ou pela perspectiva da direita
golpista, porque ele se identifica com valores, digamos, não apenas
não-modernos, mas literalmente anti-modernos. Daí que vai nascer a
afinidade dele com a população das favelas das periferias do Rio de
Janeiro e pela cultura coreográfica do samba ou pela revalorização dos
nexos com a presença da natureza no meio urbano. Então, por todo lado
que você olha o Hélio Oiticica, a história da arte tenta colocar ele
numa vanguarda modernizante, quando ele é exatamente o contraponto dessa
vanguarda modernizante. Num certo sentido, o mesmo fenômeno acontece
com o Guimarães Rosa, que tentam colocar como um modernista tardio, ou
regionalista, quando na verdade a atitude fundamental do Guimarães Rosa é
a de reconstruir uma experiência refratária de grande intensidade, de
grande vitalidade imaginária e espiritual. O mesmo que acontece com essa
outra imigrante eslava, equivocadamente escapada dos processos de
modernização conduzidos pelos progroms, que é a Clarice
Lispector, minha co-irmã, ucraniana. Então, o que é que o Brasil tem de
melhor no século XX? Se você for olhar não é o modernismo, não é o
pós-modernismo, são aqueles artistas, aqueles escritores que conseguiram
de alguma maneira reconstruir momentos, ou marcos decisivos dessa
cultura refratária, que ainda até o final do século XX era tão forte no
Brasil e em muitos sentidos, mais forte aqui do que em qualquer outra
parte do mundo ocidental, com exceção talvez de áreas da Índia, da Ásia
do extremo leste da então ex- União Soviética, ou então, obviamente da
África. Nesse sentido, o meu interesse pelo Hélio… Muita gente me
pergunta, como é que você pulou de autores clássicos como Euclides da
Cunha, Lima Barreto ou mesmos de autores vinculados à história da arte
como o Manuel Bandeira, o Blaise Cendras para alguém tão porra-louca
como o Hélio Oiticica. O extraordinário é… ele só é porra-louca, porque
era conectado com o mundo que todos já davam de barato que não tinha
mais razão de ser e de existir e por acaso todos os outros artistas por
quem eu me interessei por toda a minha carreira de pesquisa tinham esse
elemento em comum e o Hélio talvez seja o elemento mais forte, mais
vibrante, pelo menos o mais próximo de nós contemporaneamente, que traz
ainda esse conteúdo com uma força que talvez, por isso, seja capaz de
conectar com as atuais e próximas gerações. E é essa, enfim, minha
ligação vital, experiencial, existencial, histórica e marginal com Hélio
Oiticica.
[1] Além
de Maria Odila da Silva Dias, orietadora, participaram da banca da
defesa de doutorado os professores Sérgio Buarque de Holanda, Ruy Galvão
de Andrada Coelho, Bóris Schnaiderman e Maria Teresa Schorer Petrone.
[2] Atualmente tem uma nova edição, revista e ampliada pela editora Companhia das Letras.
[3] Prof.
Nicolau Sevcenko teve uma grande interlocução com o historiador Eric
Hobsbawm com quem dividiu sala na Universidade de Londres, durante seu
pós-doutorado entre 1986 e 1990.
Fonte: OUTRAS MÍDIAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário